O crime de estelionato, tipificado no art. 171 do Código
Penal, sempre foi processado mediante ação penal pública incondicionada, isto
é, antes da mudança legislativa, a autoridade policial, ao tomar conhecimento
dos fatos, tinha o poder de instaurar o inquérito policial de ofício
A lei 13.964/19, chamada de “Pacote Anticrime”, que passou
a vigorar no dia 23 de janeiro de 2020, trouxe significativas alterações ao
ordenamento jurídico penal. Dentre essas mudanças, a natureza da ação penal no
crime de estelionato, que passou de ação penal pública incondicionada para ação
penal pública condicionada à representação, certamente interessa às empresas e
seus departamentos jurídicos.
O crime de estelionato, tipificado no art. 171 do Código Penal, sempre foi processado mediante ação
penal pública incondicionada, isto é, antes da mudança legislativa, a
autoridade policial, ao tomar conhecimento dos fatos, tinha o poder de
instaurar o inquérito policial de ofício. Da mesma forma, o Ministério Público,
titular da ação penal, não dependia da manifestação de vontade da vítima para
oferecer denúncia contra o autor do fato delitivo.
Agora, a lei 13.964/19 inseriu o parágrafo 5° ao art. 171 do
Código Penal, estabelecendo que o crime de estelionato passa a ser processado,
via de regra, mediante ação penal pública condicionada à representação da
vítima. Esta representação consiste em uma espécie de “autorização” dada pelo
ofendido ou por seu representante legal, com poderes para tanto, à autoridade
policial, ao juiz ou ao Ministério Público, formalizando o seu interesse na
persecução penal.
É importante não confundir o instituto da representação da
vítima com a legitimidade nos crimes de ação penal privada. Nestes, o
Ministério Público transfere para a vítima a legitimidade ativa para a
propositura da ação penal, de modo que, para que haja a instauração do
procedimento, a vítima deve apresentar uma Queixa-Crime. Na ação penal pública
condicionada à representação, a legitimidade continua sendo do Ministério
Público, no entanto, o seu exercício está condicionado à autorização do
ofendido, não cabendo ao ente privado, portanto, o ônus desse processamento.
Com a nova lei, tem-se como requisito imprescindível para a
propositura da ação penal a iniciativa da vítima. Essa representação, todavia,
dispensa maiores formalidades, sendo entendimento prevalente dos Tribunais
Superiores de que é suficiente a demonstração inequívoca de que a vítima tenha
interesse que o Estado investigue o autor do delito. Além disso, a
representação deverá ser feita no prazo de 6 (seis) meses, a contar do
conhecimento da autoria do crime, sob pena de decadência.
É importante destacar que a inovação trazida pela lei
13.964/19 no crime de estelionato trouxe exceções neste particular: quando o
ofendido for a Administração Pública, direta ou indireta, criança ou
adolescente, pessoas portadoras de deficiência mental, maiores de 70 (setenta)
anos ou incapaz, hipóteses em que a ação penal continua sendo pública
incondicionada.
No que tange aos inquéritos policiais e ações penais em
curso, a lei 13.964/19 silenciou sobre tal questão. No entanto, em recente
decisão, o Superior Tribunal de Justiça não conheceu Habeas Corpus que almejava
a aplicação retroativa da nova regra. No entendimento do órgão colegiado, a
exigência de representação não pode ser aplicada para beneficiar o réu nos
processos em curso, mas tão somente nos procedimentos que ainda estão em fase
policial.
Portanto, nas investigações em curso, em tese, a autoridade
responsável deverá intimar a vítima para que ela se manifeste quanto ao seu
interesse em representar, suspendendo-se o procedimento até que haja a efetiva
representação.
Neste sentido, havendo a intimação para que o ofendido
manifeste o seu interesse em representar, abre-se nova discussão acerca de qual
seria o prazo concedido ao ofendido para ofertar a representação.
Ante a ausência de previsão expressa da lei 13.964/19, o
Conselho Nacional de Procuradores Gerais – CNPG editou enunciado específico
sobre o assunto, estabelecendo que “nas investigações e processos em curso, o
ofendido ou seu representante legal será intimado para oferecer representação
no prazo de 30 (trinta) dias, sob pena de decadência”.
Assim, apesar de haver divergências e discussões sobre o
tema, entende-se pela aplicação, por analogia, do disposto no art. 91 da
lei 9.099/95 e do art. 3° do Código de Processo Penal, que, em consonância com o
entendimento esposado no enunciado do CNPG, concede o prazo de 30 (trinta) dias
para que o ofendido se manifeste.
Diante do novo quadro legislativo no crime de estelionato,
partes dos especialistas no assunto entende que a alteração legislativa pode
gerar uma maior impunidade aos autores do delito, assim como também pode ser
prejudicial aos mais humildes, que poderão ver a necessidade de representar
como uma dificuldade de acesso ao Judiciário.
Já outra parte dos especialistas defende que a alteração é
um avanço que poderá ser estendido a todos os outros crimes contra o patrimônio
cometidos sem violência ou grave ameaça. Para essa corrente, além de desafogar
o Judiciário, a necessidade da representação da vítima traz como objetivo
principal o que já é realidade em outros países, qual seja a reparação do dano
e não a prisão do acusado.
Por fim, sendo o estelionato um dos crimes que mais acomete
empresas, é importante que os seus representantes se atentem para a nova
condição de procedibilidade e prosseguimento das ações penais que tratem desse
crime, uma vez que o não oferecimento da representação ocasionará a renúncia ou
a decadência deste direito, com a consequente extinção da punibilidade e
arquivamento do feito.
Fonte: Migalhas