Mais do que uma mera recomendação, tudo indica que a
desjudicialização de atos executivos tenha se tornado uma necessidade no
Brasil. E o Projeto de Lei nº 6.204/19 parece vir levando essa afirmação a
sério. Tanto é assim que tem por objetivo o nada modesto propósito de
desjudicializar praticamente por completo a execução civil de título executivo
judicial e extrajudicial, transformando-a em um só procedimento: o da execução
extrajudicial.
Na prática, a coisa funcionaria mais ou menos assim: o
credor, munido de título executivo judicial ou extrajudicial, e, representado
por advogado, apresentaria um requerimento ao tabelionato de protesto, onde
seria formado um instrumento a ser cumprido pelo "agente de
execução", a quem incumbiria a citação do devedor, a penhora, a avaliação
e o cumprimento dos demais atos de expropriação, incluindo a eventual entrega
do dinheiro àquele e a extinção da execução.
Como resultado, a atuação do juiz seria excepcional,
residual e condicionada à provocação do próprio agente de
execução — no caso de haver dúvidas sobre como proceder —; do
devedor — no caso de querer se opor ao procedimento por meio de
embargos —; e/ou das partes — no caso de se depararem com
decisões do agente que fossem capazes de lhes causar prejuízos.
Sim, a iniciativa é disruptiva e carrega consigo um enorme
potencial desburocratizante. Mas, como qualquer obra humana, não se encontra
imune a críticas e sugestões.
A intenção deste curto e despretensioso ensaio não é
repercutir dados estatísticos ou os ideais que motivaram o legislador
brasileiro a elaborar o projeto, tampouco levantar suspeitas sobre sua
constitucionalidade. Múltiplos trabalhos científicos já se encarregaram dessa
tarefa, incluindo dois escritos pelos próprios subscritores [1]. O que se pretende por aqui é apenas
chamar atenção para uma situação que pode ser sintetizada no seguinte
questionamento: o PL 6204/19 optou por impedir o agente de execução de impor
medidas executivas atípicas para compelir o devedor a cumprir a obrigação ou se
esqueceu de fazê-lo?
É que, reconhecendo a obsolescência do modelo anterior, o
Código de Processo Civil de 2015 incorporou um minissistema de efetivação das
obrigações muito mais eficiente do que aquele consagrado pelo Código de Processo
Civil de 1973. Entre as várias inovações, as que mais interessam por aqui são
duas: a) em vez de enxergar na expropriação o único procedimento para
satisfação da obrigação de pagar quantia por particulares, apostou na
diversificação, possibilitando que variadas medidas executivas sejam empregadas
para o mesmo objetivo; e b) no lugar da tipicidade das técnicas executivas,
adotou um sistema misto, simpático, também, à inventividade e ao senso criativo
do aplicador, o qual se tornou autorizado a desenvolver mecanismos atípicos
para obter o cumprimento da obrigação.
Para que não houvesse dúvida a respeito dessas
possibilidades, o legislador foi bastante enfático. No texto do artigo 139, IV,
incumbiu o juiz de adotar "todas as medidas indutivas,
coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o
cumprimento de ordem judicial". Já no do artigo 536, §1º, autorizou-o a
aplicar, no cumprimento de sentença que reconheça a exigibilidade de obrigação
de fazer ou de não fazer, "entre outras medidas, a imposição de
multa, a busca e apreensão, a remoção de pessoas e coisas, o desfazimento de
obras e o impedimento de atividade nociva, podendo, caso necessário, requisitar
o auxílio de força policial".
Conferindo reforço a essa postura, o Enunciado nº
12 do Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC) dispõe
que: ''A aplicação das medidas atípicas
sub-rogatórias e coercitivas é cabível em qualquer
obrigação no cumprimento de sentença ou execução de título
executivo extrajudicial. Essas medidas, contudo, serão
aplicadas de forma subsidiária às medidas
tipificadas, com observação do contraditório, ainda
que diferido, e por meio de decisão à luz
do artigo 489, §1º, I e II".
E isso tem uma razão clara de ser: desde o anteprojeto que
culminou no texto normativo do CPC/15, a preocupação externada pelos juristas
que o elaboraram recaía sobre a necessidade de conferir meios que
proporcionassem a efetivação dos direitos, com o objetivo de evitar que a
execução restasse infrutífera.
E, para que isso pudesse ocorrer, foi necessário superar o
antigo e obsoleto modelo incorporado ao código revogado.
Se foi esse o rumo que as coisas tomaram, seria ideal que
toda normativa que pretendesse se incorporar ao nosso sistema de direito
positivo o seguisse. No entanto, quando se analisa mais de perto o Projeto de
Lei nº 6.2014/19, percebe-se que a trilha por ele adotada se diferencia
sobremaneira da esperada, já que, ao menos em aparência, toma por principais
referenciais justamente o procedimento da expropriação e o paradigma da
tipicidade das técnicas executivas.
Observe que o procedimento da execução extrajudicial tem por
principal objetivo expropriar o patrimônio do devedor, atividade esta que
ocorre por meio da adjudicação, da alienação e da apropriação de frutos e
rendimentos (CPC, artigo 825).
Não por outro motivo, o artigo 4º do projeto diz que, no
caso, isso ocorrerá através da penhora dos bens do devedor, com a finalidade de
realizar o pagamento ao credor (artigo 4º, IV, V e VI).
À exceção da medida de protesto judicial — que,
embora seja uma medida típica, ostenta índole coercitiva (CPC, artigos 517 e
528, §1º) —, o projeto não faz menção a qualquer outro procedimento
diverso da expropriação, tampouco consagra outra técnica que não a penhora e o
arresto.
Resta saber se a adoção desse posicionamento decorreu de uma
opção legislativa ou se foi fruto do esquecimento do legislador.
Perquirindo-se a justificação apresentada pela senadora
Soraya Thronicke, nota-se que ela teve a preocupação de mencionar que "o
agente de execução conduzirá todo o procedimento, e, sempre que necessário,
consultará o juízo competente sobre dúvidas suscitadas pelas partes ou por ele
próprio e ainda requererá eventuais providências coercitivas".
Porém, parece que essas "providências coercitivas" não
são aquelas técnicas executivas de índole coercitivas, mas sim as assim
denominadas "medidas de força ou coerção" referidas pelo
artigo 20 do Projeto, a serem praticadas pela autoridade policial sob ordem do
juízo.
Ainda que assim não fosse — mas tudo leva a
crer que é — não existem maiores esclarecimentos a respeito da
tipicidade ou atipicidade dessas medidas.
De sua vez, o texto projetado faz menção expressa à
possibilidade de aplicação subsidiária do Código de Processo Civil (artigo 1º).
Porém, não se encarrega de explicitar a forma como isso
aconteceria, o que só aumenta a sensação de incerteza.
Não se nega que, apesar de a maior parte das medidas
efetiváveis pelo agente de execução ostentar índole meramente
material — a exemplo do protesto, da citação, do arresto, da penhora
e da lavratura de certidões —, algumas delas assumem feição, se não
idêntica, bem próxima da jurisdicional, como a determinação de emenda do
requerimento inicial, inclusive sob pena de cancelamento de seu processamento
(artigo 9º), a fixação de honorários ao advogado do credor (artigo
10, caput), a consulta à base de dados (artigo 10, §3º), a análise da
incorreção da penhora (artigo 19), e, a suspensão e a extinção da execução
(artigos 15 e 17).
Contudo, entre a aplicação destas e a tomada de decisão
sobre aplicação da medida executiva X (de índole coercitiva típica ou atípica),
Y (de índole mandamental típica ou atípica) ou Z (sub-rogatória típica ou
atípica), existe uma enorme diferença. Quando menos, seria questionável a
constitucionalidade de um método que autorizasse o próprio agente de execução a
requerer ao juiz a aplicação desta ou daquela medida executiva, mesmo sem
provocação do credor, pois isso possivelmente colocaria sua
impessoalidade — que todo e qualquer prestador de serviço público
deve ter — em xeque (CR/88, artigo 37; L. 8.935/94, artigo 30, II).
Poderia vir à mente, ainda, que o tão-só fato de condicionar a aplicação de uma
medida executiva ao prévio deferimento do Poder Judiciário iria de encontro à própria
desburocratização almejada, pois, por via oblíqua, acabaria havendo
"judicialização" pelo uso de um método que tem na
"desjudicialização" o seu principal propósito.
Por outro lado, autorizar-se o agente de execução a aplicar,
de forma autônoma e independente, toda e qualquer medida coercitiva, típica ou
atípica, talvez ofendesse princípios constitucionais, dos quais a reserva de
jurisdição provavelmente seria o mais emblemático (CR/88, artigo 5º, XXXV).
Afinal, da forma como hoje positivado no nosso sistema, parece ser tarefa
exclusiva do magistrado escolher, com base na ponderação dos valores
contrastantes, a medida que se mostrar mais adequada ao caso empírico, não só
entre aquelas abstratamente previstas, mas até entre as que tenham sido
requeridas concretamente pelo interessado, sobretudo em seus aspectos temporal
e quantitativo (CPC, artigo 139 e 536, §1º).
Além disso, algumas dúvidas de ordem operacional poderiam
aumentar essa sensação de incerteza. O juízo que, em primeiro lugar conhecesse
o requerimento do agente de execução ficaria prevento para o conhecimento da
dúvida e dos embargos eventualmente opostos pelas partes? Partindo-se de uma
leitura do texto do artigo 18, §3º, parece que sim. O credor poderia, ao mesmo
tempo, judicializar a execução, com o objetivo de obter medidas atípicas de
ordem coercitiva e mandamental, e extrajudicializá-la, para obter a penhora dos
bens?
Outros tantos questionamentos poderiam ser imaginados, mas
isso exigiria espaço e formato não disponíveis nessa plataforma.
Bom! O que os autores deste texto gostariam de enfatizar é
que a ideia que subjaz ao projeto é merecedora de aplausos. Todavia, nada
impede que seu texto sofra retoques e acréscimos voltados a aprimorá-lo e
compatibilizá-lo à nova ordem de coisas.
Fica, então, o convite, extensível inclusive aos
elaboradores do projeto, para refletirmos juntos a respeito da previsão da
possibilidade ou não de adoção de medidas atípicas em sede de execução
extrajudicial.
Fonte: Consultor Jurídico