Como
inovação festejada, o Código Civil de 2002 passou a tratar da ação de petição
de herança (petitio
hereditatis) entre os seus arts. 1.824 a 1.828, que é a demanda que
visa a incluir um herdeiro na herança, mesmo após a sua divisão. Na dicção do
primeiro comando citado, o herdeiro pode, nesta ação, demandar o reconhecimento
de seu direito sucessório, para obter a restituição da herança, ou de parte
dela, contra quem, na qualidade de herdeiro, ou mesmo sem título, a possua.
Em
complemento, nos termos do dispositivo seguinte, a ação de petição de herança,
ainda que exercida por um só dos herdeiros, poderá compreender todos os bens
hereditários, tendo caráter universal (art. 1.825 do CC/2002). A figura é
admitida há tempos pela jurisprudência brasileira, tendo o Supremo Tribunal
Federal editado, no ano de 1963, a Súmula 149, que envolve o tema central deste
artigo.
Conforme
explicam Jones Figueirêdo Alves e Mário Luiz Delgado, trata-se de uma ação real,
eis que, por força do art. 80, inc. II, do CC/2002, o direito à sucessão aberta
constitui um imóvel por determinação legal (Código Civil Anotado. São Paulo: Método, 2005, p.
936). Na mesma linha, como se retira de importante julgado do Tribunal de
Justiça do Rio Grande do Sul, “a ação de petição de herança é uma ação de
natureza real, para a qual só tem legitimidade ativa aquele que já é herdeiro
desde antes do ajuizamento, e através da qual ele pode buscar ver reconhecido
seu direito hereditário sobre bem específico que entende deveria integrar o
espólio, mas que está em poder de outrem” (TJRS, Apelação Cível n.
36960-28.2012.8.21.7000, 8.ª Câmara Cível, Santa Rosa, Rel. Des. Rui Portanova,
j. 18.10.2012, DJERS 25.10.2012).
Por
ser uma ação real, e também universal, a petição de herança não se confunde com a
ação reivindicatória, que visa a um bem específico. Aplicando tal forma de
pensar, consta de aresto do Superior Tribunal de Justiça que “ocorre turbação à
posse de bem imóvel quando coerdeiros reconhecidos em ação de petição de
herança molestam a posse anterior de outros herdeiros que exerciam tal direito
com base em formal de partilha. Isso porque a ação de petição de herança tem
natureza universal, pela qual o autor pretende o reconhecimento de seu direito
sucessório, o recebimento da fração correspondente da herança, e não a
restituição de bens específicos. Isso é o que a diferencia de uma ação
reivindicatória, de natureza singular, que tem por objeto bens particularmente
considerados. Desse modo, é equivocado concluir que, por força da ação de
petição de herança, foram transmitidos o domínio e a posse dos bens herdados,
quando, em verdade, transferiu-se o direito à propriedade e a posse comum da
universalidade e não dos bens singularmente considerados. Por força da
procedência da ação de petição de herança, os herdeiros que exerciam a posse
anterior ficam obrigados a devolver, no plano jurídico e não fático, os bens do
acervo hereditário, que voltam a ser de todos em comunhão até que nova partilha
se realize” (STJ, REsp 1244118/SC, Terceira Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, j.
22.10.2013, DJe 28.10.2013).
A
respeito do prazo para a propositura dessa demanda, a citada e antiga Súmula
149 do Supremo Tribunal Federal estabelece que “é imprescritível a ação de
investigação de paternidade, mas não o é a de petição de herança”. O fundamento
da prescrição é relacionado ao fato de a herança envolver direitos subjetivos
de cunho patrimonial, que são submetidos a prazos prescricionais. Além disso,
tem esteio na sempre alegada segurança jurídica, comumente associada à
prescrição.
O
entendimento sumulado é ainda considerado majoritário, para todos os fins,
teóricos e práticos, inclusive na doutrina brasileira. Nesse contexto, na
vigência do CC/1916, a ação de petição de herança estaria sujeita ao prazo
geral de prescrição, que era de vinte anos, conforme o seu art. 177. Na
vigência do Código Civil de 2002, deve ser aplicado o prazo geral de dez anos,
previsto no seu art. 205. Exatamente nessa linha, do Superior Tribunal de
Justiça extrai-se o seguinte: "Controvérsia doutrinária acerca da
prescritibilidade da pretensão de petição de herança que restou superada na
jurisprudência com a edição pelo STF da Súmula n. 149. (...). Ausência de
previsão, tanto no Código Civil de 2002, como no Código Civil de 1916, de prazo
prescricional específico para o ajuizamento da ação de petição de herança,
sujeitando-se, portanto, ao prazo geral de prescrição previsto em cada
codificação civil: vinte anos e dez anos, respectivamente, conforme previsto no
art. 177 do CC/16 e no art. 205 do CC/2002" (STJ, REsp 1.368.677/MG, Rel.
Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, julgado em 05.12.2017, DJe 15.02.2018).
Voltarei a esse acórdão mais à frente.
Em
ambas as hipóteses, entende-se desde os tempos remotos que o prazo tem início
da abertura da sucessão, como regra, que se dá pela morte daquele de quem se
busca a herança (STF, RE 741.00/SE, Tribunal Pleno, Rel. Min. Eloy da Rocha, j.
03.10.1973, DJU 02.01.1974).
Todavia, a questão não é pacífica, pois alguns acórdãos superiores mais
recentes trazem o julgamento de que o prazo deve ter início do reconhecimento
do vínculo parental em demanda própria, ou seja, do trânsito em julgado da
sentença na ação de investigação de paternidade, tema principal deste texto.
Como é notório, na grande maioria dos casos concretos, a petição de herança
está cumulada com esse pedido relativo à filiação.
Nessa
linha, em 2016, surgiu importante julgamento do Superior Tribunal de Justiça
que representa uma quebra dessa primeira corrente, tida como clássica,
concluindo que o prazo de prescrição da ação de petição de herança deve correr
do trânsito em julgado da sentença da ação de reconhecimento de paternidade.
Vejamos a sua publicação, constante do Informativo n. 583 do Tribunal da Cidadania:
“Na
hipótese em que ação de investigação de paternidade post mortem tenha
sido ajuizada após o trânsito em julgado da decisão de partilha de bens
deixados pelo de cujus, o termo inicial do prazo prescricional para
o ajuizamento de ação de petição de herança é a data do trânsito em julgado da
decisão que reconheceu a paternidade, e não o trânsito em julgado da sentença
que julgou a ação de inventário. A petição de herança, objeto dos arts. 1.824 a
1.828 do CC, é ação a ser proposta por herdeiro para o reconhecimento de
direito sucessório ou a restituição da universalidade de bens ou de quota ideal
da herança da qual não participou. Trata-se de ação fundamental para que um
herdeiro preterido possa reivindicar a totalidade ou parte do acervo
hereditário, sendo movida em desfavor do detentor da herança, de modo que seja
promovida nova partilha dos bens. A teor do que dispõe o art. 189 do CC, a fluência
do prazo prescricional, mais propriamente no tocante ao direito de ação,
somente surge quando há violação do direito subjetivo alegado. Assim, conforme
entendimento doutrinário, não há falar em petição de herança enquanto não se
der a confirmação da paternidade. Dessa forma, conclui-se que o termo inicial
para o ajuizamento da ação de petição de herança é a data do trânsito em
julgado da ação de investigação de paternidade, quando, em síntese, confirma-se
a condição de herdeiro” (STJ, REsp 1.475.759/DF, Terceira Turma, Rel. Min. João
Otávio de Noronha, j. 17.05.2016, DJe 20.05.2016).
Em
2018, essa mesma posição foi confirmada pela mesma Terceira Turma do Tribunal,
no aresto há pouco mencionado e que cita a teoria da actio nata subjetiva, segundo
a qual o prazo prescricional deve ter início do conhecimento da lesão ao
direito subjetivo. Como consta do trecho final da sua ementa, "nas
hipóteses de reconhecimento ‘post mortem’ da paternidade, o prazo para o
herdeiro preterido buscar a nulidade da partilha e reivindicar a sua parte na
herança só se inicia a partir do trânsito em julgado da ação de investigação de
paternidade, quando resta confirmada a sua condição de herdeiro. Precedentes
específicos desta Terceira do STJ. Superação do entendimento do Supremo
Tribunal Federal, firmado quando ainda detinha competência para o julgamento de
matérias infraconstitucionais, no sentido de que o prazo prescricional da ação
de petição de herança corria da abertura da sucessão do pretendido pai,
seguindo a exegese do art. 1.572 do Código Civil de 1916. Aplicação da teoria
da ‘actio nata’" (STJ, REsp 1.368.677/MG, Terceira Turma, Rel. Min. Paulo
de Tarso Sanseverino, j. 05.12.2017, DJe 15.02.2018). Essa forma de julgar
consubstancia uma visão que pode ser chamada de contemporânea.
No
final de 2019, todavia, instaurou-se divergência na atual composição do
Superior Tribunal de Justiça, pois surgiu outro acórdão, da sua Quarta Turma,
voltando a aplicar a visão clássica, de que o prazo prescricional deve ter
início da abertura da sucessão. O julgamento se deu nos autos do Agravo no
Recurso Especial n. 479.648/MS, em dezembro de 2019. Conforme notícias
retiradas do site do
Tribunal, uma vez que a decisão ainda não foi publicada quando da elaboração
deste texto, o relator, Ministro Raul Araújo, seguiu os fundamentos
apresentados pela Ministra Isabel Gallotti, na linha de que o entendimento de
que o trânsito em julgado da sentença de reconhecimento de paternidade marca o
início do prazo prescricional para a petição de herança conduz, na prática, à
imprescritibilidade desta ação, causando grave insegurança às relações sociais.
De fato, trata-se de profundo debate que envolve a segurança e a certeza - de
um lado -, e a efetividade da herança como direito fundamental, previsto no art.
5º, inc. XXX, da Constituição da República.
Entre
uma e outra corrente, fico com a segunda, tida como contemporânea,
justamente pelo argumento da necessidade de se efetivar o direito à herança. A
propósito, apesar de não ter sido essa a opção expressa do nosso legislador -
ao contrário do que ocorreu com o Código Civil Italiano, nos termo do seu art.
533, e com o Código Civil Peruano, art. 664 -, entendo que não há prazo para se
demandar a petição de herança, especialmente no caso de estar cumulada com a investigação
de paternidade. Na doutrina, a propósito, essa é a posição de Giselda Maria
Fernandes Novaes Hironaka, para quem “a petição de herança não prescreve. A
ação é imprescritível, podendo, por isso, ser intentada a qualquer tempo. Isso
assim se passa porque a qualidade de herdeiro não se perde (semel heres
semper heres), assim como o não exercício do direito de propriedade
não lhe causa a extinção. A herança é transferida ao sucessor no momento mesmo
da morte de seu autor, e, como se viu, isso assim se dá pela transmissão da
propriedade do todo hereditário. Toda essa construção, coordenada, implica o
reconhecimento da imprescritibilidade da ação, que pode ser intentada a todo
tempo, como já se afirmou” (Comentários ao Código Civil. Volume 20. São Paulo:
Saraiva, 2007, p. 202). A propósito, na mesma esteira, pondera Luiz Paulo
Vieira de Carvalho que, “em nosso sentir, as ações de petição de herança são
imprescritíveis, podendo o réu alegar em sede de defesa apenas a exceção de
usucapião (Súmula 237 do STF), que atualmente tem como prazo máximo 15 anos (na
usucapião extraordinária sem posse social, art. 1.238, caput,
do CC)” (Direito
das Sucessões. São Paulo: Atlas, 2014, p. 282-283).
De
toda sorte, apesar dessa imprescritibilidade, sigo a possibilidade, em outros
sistemas jurídicos, de se alegar a usucapião a respeito de bens singularizados.
Isso faz com que a situação de cada bem seja analisada especificamente,
atribuindo a determinado herdeiro, se for o caso, a propriedade da coisa caso
estejam preenchidos os requisitos da usucapião, em qualquer uma das suas
modalidades.
Como
palavras finais, não se pode negar que o tema é de difícil análise e que gera
intensos debates, sendo fortes os argumentos das duas correntes. Portanto, o
Superior Tribunal de Justiça encontra-se defronte a mais um desafio, que é
pacificar a questão no âmbito da sua Segunda Seção. Aguardemos qual será a
posição seguida pela Corte.
* Pós-Doutorando
e Doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela
PUCSP. Professor Titular permanente e coordenador do mestrado da Escola
Paulista de Direito (EPD). Professor e coordenador dos cursos de
pós-graduação lato sensu em Direito Privado da EPD. Professor
do G7 Jurídico. Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito
Contratual (IBDCONT). Presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família
em São Paulo (IBDFAMSP). Advogado em São Paulo, parecerista e consultor
jurídico.
Fonte:
IBDFAM