CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. REGISTRADOR. CONTRATAÇÃO DE SUBSTITUTO. NEPOTISMO. IMPOSSIBILIDADE.
O registrador e o notário desempenham função pública, e, portanto, suas atividades se subordinam a todos os princípios constitucionais do art. 37, caput, da CF/1988. Em tal hipótese, não lhes é dado contratar parente - no caso, o filho, transformando o serviço registral em sinecura familiar, passível de sucessão universal, sem ofensa aos princípios da moralidade e da impessoalidade. A sucessão do pai pelo filho à testa do serviço registral contraria o princípio republicano.
APELAÇÃO PROVIDA. Apelação Cível - Quarta Câmara Cível Nº 70020382214 - São Borja KáTIA REGINA FLORES DE ALMEIDA - APELANTE; SUCESSãO DE REINALDO ANTÔNIO WELFER E OUTROS, representada por Raquel Letícia Welfer Kirinus APELADA - LOIVIA MARIA WELFER.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos. Acordam os Desembargadores integrantes da Quarta Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado, à unanimidade, dar provimento à apelação. Custas na forma da lei. Participaram do julgamento, além do signatário (Presidente), os eminentes Senhores Des. João Carlos Branco Cardoso e Des. Alexandre Mussoi Moreira.
Porto Alegre, 26 de setembro de 2007.
DES. ARAKEN DE ASSIS, Presidente e Relator.
RELATÓRIO
Des. Araken de Assis (RELATOR) - Adoto, inicialmente, o relatório da sentença de fls. 125/128, proferida pelo Sr. Juiz de Direito DARLAN ÉLIS DE BORBA E ROCHA, e que julgou improcedente a ação popular movida por Kátia Regina Flores de Almeida contra Reinaldo Antônio Welfer e Raquel Letícia Welfer Kirinus, porque a contratação da segunda pelo primeiro, que é registrador civil, configura nepotismo, sob o fundamento de que a contratação de prepostos pelo registrador não sofre semelhante limitação. Inconformada, apela a autora, reiterando seus argumentos e, baseada no parecer do Ministério Público, assinado pela Sr.ª Promotora de Justiça CINTHIA MENEZES RANGEL, pleiteando a reforma da sentença para acolher o pedido. Respondido o recurso, colhido o parecer do Ministério Público em primeiro grau, subiram os autos ao Tribunal em 25.06.2007 (fl. 136 verso), ocorrendo a distribuição em 29.06.2007 (fl. 137).
Foram habilitadas como sucessoras do réu Reinaldo as filhas Loivia e Raquel. Em seu parecer de fls.140/143, lançado em 07.08.2007, a Sr.ª Procuradora de Justiça MARLY RAPHAEL MALMANN opina pelo desprovimento da apelação. É o relatório. VOTOS Des. Araken de Assis (RELATOR) - Eminentes Colegas. 1. Segundo a prova dos autos (fls. 10/14), o titular do registro civil da comarca de São Borja, Reinaldo Antônio Welfer, contratou como substituta, com fundamento no art. 20, §§ 1.°, 2.°, 4.° e 5.° da Lei 8.935, de 18.11.1994, sua filha, Raquel Letícia Welfer Kirinus, o que configura prática de nepotismo, segundo a autora. Para chegar-se à conclusão exata, impõe-se estabelecer a condição jurídica do direito e do registrador à luz do art. 236, caput, da CF/1988. De acordo com o texto, tais serviços "são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público".
No alvitre dominante, o registrador é um particular que colabora com o Poder Público. Na opinião de MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO (Direito administrativo, nº 13.2.3, p. 420, 11ª Ed., São Paulo: Atlas, 1999), o notário e o registrador "exercem função pública, em seu próprio nome, sem vínculo empregatício, porém sob fiscalização do poder público".
Idêntico é o entendimento de CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO (Curso de direito administrativo, p. 181, 11ª Ed., São Paulo: Malheiros, 1999). Em certo sentido, manteve-se a venerável tradição do direito pátrio. Entre nós o notário (registrador) sempre foi considerado um servidor público, como explica a voz insuspeita de CLÁUDIO MARTINS (Teoria e prática dos atos notariais, p. 85, Rio de Janeiro: Forense, 1979), o notário (registrador) sempre foi um servidor público: Para os tribunais brasileiros, o notário, só agora, a partir de abril de 1977, enquadrado como funcionário público, possivelmente qualificado, sempre o foi, e sem nenhuma qualificação, sabido como é o ingresso na carreira só exigia primeiras letras, em regra. É verdade que os doutos nesta matéria identificam as culminâncias da evolução do notariado no chamado "tipo latino", em que o notário exerce uma função pública, não porque servidor público, mas porque desempenha atividade em prol da sociedade e em caráter autônomo (ANTONIO AUGUSTO FIRMO DA SILVA, Compêndio de temas sobre direito notarial, pp. 37/44, São Paulo, 1977).
O célebre EDUARDO BAUTISTA PONDÉ (Origen e historia del notariado, p. 441, Buenos Aires, 1967), em obra verdadeiramente notável, lamenta o estado da legislação brasileira nos seguintes termos: En todos los Estados que integran la nación brasileña, dentro de su régimen federal, las atribuciones de los "serventuarios da justiça" entre los cuales se enumera a los "tabeliaes", están reguladas en el título referido a los servidores de la justicia. Esa concepción del legislador dice de la manera drástica y profunda que hay que resolver el aspecto modificatorio de la legislación notarial brasileña. Mesmo na Espanha, apontada como paradigma na evolução do notariado, o anseio por independência total e absoluta representa uma ilusão. Com efeito, o art. 1º da Lei Orgânica de 1944, com modificações posteriores, definiu o notário como funcionário público, merecendo a severa crítica de JOSE GONZALEZ PALOMINO (Instituciones de derecho notarial, vol. 1, p. 190. Madri, 1948): Que se define al notario como funcionário público, lo cual es inexacto, porque a la vez y tanto es funcionário público como Professor de Derecho, encargado de formar, afirmar y dar forma substancial a la voluntad de los particulares, como porque no es tal funcionário público, o porque no es un funcionário dl Estado sino nu particular que exerce funciones públicas, Sn perder sua caracter de tal particular... É preciso, portanto, considerar os dados legislativos de cada País. Ora, estabelecendo o art. 236, § 3.°, da CF/1988 que o ingresso na atividade registral subordina-se a concurso público ? ou, para os que já ingressaram, a concurso de remoção - a Carta Política deixou claro que o registrador ocupa cargo.
Na definição de cargo - a mais simples e indivisível unidade de competência exercida por agente público (gênero que abrange os particulares que colaboram com o Poder Público), criada por lei e com denominação própria, segundo CELSO ANTÔNIO (ob. cit., p. 182) -, em geral a doutrina inclui, dentre as notas essenciais, a necessidade de remuneração por pessoa jurídica de direito público. No entanto, não é este o alcance do art. 37, I da CF/1988, nem do art. 236, § 3.º, conforme explicava, sob a Carta de 1969, MÁRCIO CAMMAROSANO (Provimento de cargos públicos no direito brasileiro, p. 55, São Paulo, 1984), relativamente à primeira regra: Verifica-se, portanto, que na tradição do nosso Direito Constitucional, a extensão do conceito de cargo público é bem maior que a extensão que o mesmo conceito tem hoje, à luz da legislação ordinária. A depuração principalmente doutrinária e legislativa que o conceito cargo público acabou sofrendo, como também o conceito de funcionário público, que hoje designa, em rigor, apenas uma das espécies de servidores públicos, não nos autoriza, para efeito de interpretação do art. 97 da Constituição vigente, tomar o conceito cargo público em seu sentido mais estrito, sob pena de restringirmos indevidamente o alcance que o dispositivo constitucional na verdade tem, mormente se atentarmos para a finalidade da norma, que só pode ser bem apreendida à luz de todo o sistema constitucional.
É preciso alargar, portanto, a noção de cargo público, abrangendo empregos e funções - que, seguindo tal alvitre (MÁRCIO CAMMAROSANO, ob. cit., p. 56) -, receberam menção explícita no art. 37, I -, e outras "unidades de competência" criadas por lei. É o caso dos notários e dos registradores, em geral, e do falecido réu Reinaldo, em particular. Os notários e os registradores desempenham, como visto, função pública, e não podem se estabelecer livremente. A unidade de competência que a lei lhes afeta, e na qual ingressam por concurso público, é criada por lei, entre o notário e o Estado se origina um vínculo institucional, que permite sua fiscalização. É verdade que, de acordo com a noção corrente de cargo, faltaria o elemento da remuneração pelos cofres públicos. Neste particular, porém, o erro se localiza no conceito, que não apreendeu o alcance constitucional, conforme sustentava MÁRCIO CAMMAROSANO em tema análogo. O registrador é remunerado "à conta de receita pública", anotou o leading case do Supremo Tribunal Federal (RE 178.236-RJ, 07.03.1996, Relator o insigne Ministro OCTAVIO GALLOTTI, RTJSTF, 162/772), ou seja, através de custas e emolumentos fixados em lei. O conceito há de se adaptar a tal particularidade. Em seguida, aparece a questão do provimento efetivo, mencionado no art. 40, caput, da CF/1988, após a EC 20/1998.
Entre as formas de provimento dos cargos, avulta aquela em que isto ocorre em caráter efetivo. De acordo com CELSO ANTÔNIO (ob. cit., p. 217), tais cargos ?são os pressupostos a receberem seus ocupantes em caráter definitivo, isto é, com fixidez?. Também JOSÉ DOS SANTOS CARVALHO FILHO (Manual de direito administrativo, p. 412, 4.ª Ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1999) destaca o caráter de permanência da investidura. E realmente, ao contrário dos cargos de livre movimentação, em que seu ocupante não tem qualquer direito à permanência, porque de livre nomeação - cargos em comissão, ex vi do art. 37, II, in fine -, e à diferença dos cargos vitalícios, do qual o ocupante somente será afastado mediante sentença judicial transitada em julgado, a larga maioria dos cargos, passado certo período, só permite o afastamento após processo administrativo, em que se apure ilícito ou insuficiência de desempenho (art. 41, § 1º). Ora, semelhante característica decorre do art. 35 da Lei 8.935/1994, segundo o qual haverá perda da delegação em virtude de sentença judiciária (inciso I) ou de processo administrativo (inciso II). Não previu a lei, anterior à EC 19/1998, a avaliação negativa de desempenho, porque motivo superveniente na ordem constitucional brasileira. Por sinal, conforme o ato publicado no Diário Oficial de 28.12.1972 (fl. 66), a investidura originária de Reinaldo se deu no -cargo? - a menção é expressa - de registrador.
Também a disciplina da responsabilidade civil não conduz a conclusão diversa. É verdade que o art. 236, § 1.º da CF/1988 remeteu à lei complementar regular a responsabilidade civil do notário e do registrador e o art. 22 da Lei 8.935/1994 atribuiu-lhes o óbvio dever de indenizar por danos causados a terceiros. Embora seja aspecto secundário, e pouco relevante no desate da questão sob julgamento, isto não exclui a responsabilidade do Estado, a teor do art. 37, § 6.º da CF/88. Esta é a lição de CELSO ANTÔNIO (ob. cit., p. 668), para quem tal responsabilidade abrange, in verbis: ...pessoas jurídicas de Direito Público auxiliares do Estado, que, inobstante alheias à sua estrutura orgânica central, desempenham cometimentos estatais sob "concessão" ou "delegação" explícitas (concessionárias de serviço público e delegados de função pública) ou implícitas (sociedades mistas e empresas do Estado em geral, quando no desempenho de serviço público propriamente dito). Conquanto subsidiária a responsabilidade, ensina OSWALDO ARANHA BANDEIRA DE MELLO (Princípios gerais de direito administrativo, v. 2, nº 34.6, p. 367, Rio de Janeiro: Forense, 1974), ela se impõe, na medida em que o Estado responde por atos dos seus servidores públicos. De toda sorte, a circunstância de que o notário e o registrador respondem, com base na culpa, perante terceiros, só pode ser entendida como uma ampliação do seu dever de indenizar, jamais como o desaparecimento do dever de indenizar do Estado.
Assim, o Estado responderá, objetivamente, no caso de insolvência do notário, mantido o direito de regresso, e, aliás, em qualquer hipótese, à escolha da vítima e do lesado. Sobre o assunto já se manifestou a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal (Ag Rg no RE 209.354-PR, 2.3.99, Relator o insigne Chief Justice CARLOS VELLOSO, RDA, 216/183), in verbis: - Natureza estatal das atividades exercidas pelos serventuários titulares de cartórios e registros extrajudiciais, exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público. Responsabilidade objetiva do Estado pelos danos praticados a terceiros por esses servidores no exercício de tais funções, assegurado o direito de regresso contra o notário, nos casos de dolo ou culpa (C.F., ART. 37, § 6º). - Negativa de trânsito ao RE. Agravo não provido. Do conjunto retiram-se duas conclusões: primeira, o registrador desempenha função pública; segunda, o registrador ocupa cargo.
Ora, para suscitar a censura proposta na inicial ? vedação do nepotismo ? basta a primeira condição. Por outro lado, à luz do art. 37, caput, da CF/1988 não basta ao agente público, ou seja, a toda pessoa que desempenha função publica ou presta serviço originariamente público, mas concedido ao particular mediante delegação, a exata adesão ao princípio da legalidade.
É preciso mais: respeitar os princípios da moralidade e da impossibilidade, ou seja, visar o interesse público em todos os seus atos, e, não, a satisfação secundária de interesses familiares. Ora, a contratação de Raquel infringe o art. 37, caput, da CF/1988 e produz efeitos colaterais incompatíveis com o princípio republicano. O serviço notarial ou registral é público. Delegado a particulares, não podem se transformar em sinecura familiar... Falecido o registrador, sem dúvida sua filha Raquel, que é a substituta contratada, assumiu a serventia. Aos olhos do público, ocorre uma sucessão universal do serviço público, de pai para filha. Por tal razão, a Carta Política proíbe a escolha de agente público, no sentido lato, por intermédio de critério subjetivo, baseado na predileção pessoal e, principalmente, no parentesco.
Enfim, a contratação de Raquel, à luz do art. 20 da Lei 8.935/1994, feriu os princípios da moralidade e da impessoalidade. É caso de acolhimento do pedido, mas nos termos preconizadas pela Sr.ª Promotora de Justiça CINTHIA MENEZES RANGEL (fl. 114), porque a ré Loivia figura como sucessora de Reinaldo e sua investidura não foi posta em causa na inicial. 2. Pelo fio do exposto, dou provimento à apelação para julgar procedente a ação popular, pronunciando a nulidade do contrato de trabalho de fl. 12 e do compromisso de fl. 11, e tornando sem efeito, assim, a designação da ré Raquel como substituta do registro civil de São Borja, para todos os efeitos legais, porque ato contrário à Constituição e lesivo à moralidade pública. Sem custas e honorários (art. 5.°, LXXIIII, da CF/1988). Des. João Carlos Branco Cardoso (REVISOR) - De acordo. Des. Alexandre Mussoi Moreira - De acordo. DES. ARAKEN DE ASSIS - Presidente - Apelação Cível nº 70020382214, Comarca de São Borja: "DERAM PROVIMENTO À APELAÇÃO. UNÂNIME."