Com a entrada em vigor do Estatuto da Pessoa com Deficiência – Lei 13.146/2015 -, especialmente com as modificações levadas a efeito no microssistema da capacidade civil (artigos 3º e 4º do Código Civil), emerge uma questão fundamental: o sistema da incapacidade civil era discriminatório ou protetivo?
A resposta a essa questão buscaremos elucidar no presente texto.
A lei mencionada alterou substancialmente o artigo 3º do Código Civil, o qual declinava que eram absolutamente incapazes os que por enfermidade ou deficiência mental não tivessem o necessário discernimento e os que não pudessem, por causa transitória, exprimir sua vontade.
Esse sistema conferia aos operadores notariais a prerrogativa de impedir que alguém, nas condições citadas, pudesse outorgar atos e negócios jurídicos, sem a devida proteção do Estado, mediante o instituto da curatela com a devida tutela judicial para outorga (artigo 1.774 c/c o artigo 1.750 do CCB).
Tratava-se, a nosso ver, de um sistema protetivo, segundo o qual o deficiente ficava albergado das inescrupulosas ações de pessoas perversas que viessem a direcioná-lo para a prática de atos e negócios jurídicos prejudiciais aos seus interesses.
O novo sistema jurídico, instalado pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência, retira do artigo 3º do Código Civil os incisos II e III e inscreve os deficientes em geral entre as pessoas plenamente capazes para praticar todos os atos da vida civil.
A justificativa é dada pelo Grupo de Trabalho para análise de Projetos de Lei que tratam da criação do Estatuto das Pessoas com Deficiência, criado pela Portaria SDH/PR nº 616/2012:
Outro ponto que mereceu grande atenção, e que retomaremos oportunamente neste relatório, diz respeito à personalidade da pessoa com deficiência. Tentou-se superar inadequações observadas no novo Código Civil, onde se verifica um sistema conservador em relação aos direitos da pessoa com deficiência. Em nosso entendimento, a melhor interpretação do texto constitucional bem que permitiria que a lei ordinária – como o Código Civil – avançasse muito, garantindo o exercício da autonomia da vontade da pessoa com deficiência – notadamente àquelas com deficiência intelectual – com salvaguardas adequadas.
Com efeito, é imperioso dizer, na qualidade de operadores notariais, que sempre estivemos funcionalmente obrigados a proteger os interesses dos incapazes e que o novo sistema vai deixá-los totalmente desabrigados da proteção estatal no que diz respeito ao exercício da autonomia privada.
Na prática, quando uma pessoa com deficiência de natureza mental comparecer a um Tabelionato de Notas, a fim de realizar ato ou negócio jurídico, seja de natureza pública, por meio de escrituras ou procurações públicas, seja de natureza privada, pelo reconhecimento de firma, o agente notarial, em tese, deve realizar o ato, pois qualquer vedação a direito de deficiente pode ser interpretada como discriminação, senão vejamos:
Art. 4.º Toda pessoa com deficiência tem direito à igualdade de oportunidades com as demais pessoas e não sofrerá nenhuma espécie de discriminação.
§ 1.º Considera-se discriminação em razão da deficiência toda forma de distinção, restrição ou exclusão, por ação ou omissão, que tenha o propósito ou o efeito de prejudicar, impedir ou anular o reconhecimento ou o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais de pessoa com deficiência, incluindo a recusa de adaptações razoáveis e de fornecimento de tecnologias assistivas.
§ 2.º A pessoa com deficiência não está obrigada à fruição de benefícios decorrentes de ação afirmativa.
Com mais razão ainda, deveremos atuar de forma a assegurar a “plena liberdade contratual” dessas pessoas, sob pena de sermos indiciados por crime de discriminação, nos termos do Estatuto:
Art. 83. Os serviços notariais e de registro não podem negar ou criar óbices ou condições diferenciadas à prestação de seus serviços em razão de deficiência do solicitante, devendo reconhecer sua capacidade legal plena, garantida a acessibilidade.
Parágrafo único. O descumprimento do disposto no caput deste artigo constitui discriminação em razão de deficiência.
Nos instrumentos públicos, quando afirmamos que o agente é “pessoa juridicamente capaz” (por ordem do inciso II do § 1.º do artigo 215 do CCB), estaremos tão somente dizendo que se trata de pessoa maior de dezoito anos. Não engloba a avaliação de capacidade civil por deficiência, por imposição do Estatuto.
Diante do exposto, nos é permitido concluir que o atual sistema deixou os deficientes relegados à própria sorte, podendo ser vítimas de inescrupulosas pessoas que se utilizem da “liberdade” contratual deles para dilapidar patrimônio e direitos.
Para nós, operadores notariais, resta somente assistirmos inertes aos desmandos do novo sistema jurídico, sem nenhum poder para intervir nos atos e negócios jurídicos a fim de proteger os deficientes, sob pena de sermos acusados de discriminação.
Enfim, um sistema que não discrimina, mas também não protege!
Autor: Estatuto da Pessoa com Deficiência: discriminar ou proteger?
Com a entrada em vigor do Estatuto da Pessoa com Deficiência – Lei 13.146/2015 -, especialmente com as modificações levadas a efeito no microssistema da capacidade civil (artigos 3º e 4º do Código Civil), emerge uma questão fundamental: o sistema da incapacidade civil era discriminatório ou protetivo?
A resposta a essa questão buscaremos elucidar no presente texto.
A lei mencionada alterou substancialmente o artigo 3º do Código Civil, o qual declinava que eram absolutamente incapazes os que por enfermidade ou deficiência mental não tivessem o necessário discernimento e os que não pudessem, por causa transitória, exprimir sua vontade.
Esse sistema conferia aos operadores notariais a prerrogativa de impedir que alguém, nas condições citadas, pudesse outorgar atos e negócios jurídicos, sem a devida proteção do Estado, mediante o instituto da curatela com a devida tutela judicial para outorga (artigo 1.774 c/c o artigo 1.750 do CCB).
Tratava-se, a nosso ver, de um sistema protetivo, segundo o qual o deficiente ficava albergado das inescrupulosas ações de pessoas perversas que viessem a direcioná-lo para a prática de atos e negócios jurídicos prejudiciais aos seus interesses.
O novo sistema jurídico, instalado pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência, retira do artigo 3º do Código Civil os incisos II e III e inscreve os deficientes em geral entre as pessoas plenamente capazes para praticar todos os atos da vida civil.
A justificativa é dada pelo Grupo de Trabalho para análise de Projetos de Lei que tratam da criação do Estatuto das Pessoas com Deficiência, criado pela Portaria SDH/PR nº 616/2012:
Outro ponto que mereceu grande atenção, e que retomaremos oportunamente neste relatório, diz respeito à personalidade da pessoa com deficiência. Tentou-se superar inadequações observadas no novo Código Civil, onde se verifica um sistema conservador em relação aos direitos da pessoa com deficiência. Em nosso entendimento, a melhor interpretação do texto constitucional bem que permitiria que a lei ordinária – como o Código Civil – avançasse muito, garantindo o exercício da autonomia da vontade da pessoa com deficiência – notadamente àquelas com deficiência intelectual – com salvaguardas adequadas.
Com efeito, é imperioso dizer, na qualidade de operadores notariais, que sempre estivemos funcionalmente obrigados a proteger os interesses dos incapazes e que o novo sistema vai deixá-los totalmente desabrigados da proteção estatal no que diz respeito ao exercício da autonomia privada.
Na prática, quando uma pessoa com deficiência de natureza mental comparecer a um Tabelionato de Notas, a fim de realizar ato ou negócio jurídico, seja de natureza pública, por meio de escrituras ou procurações públicas, seja de natureza privada, pelo reconhecimento de firma, o agente notarial, em tese, deve realizar o ato, pois qualquer vedação a direito de deficiente pode ser interpretada como discriminação, senão vejamos:
Art. 4.º Toda pessoa com deficiência tem direito à igualdade de oportunidades com as demais pessoas e não sofrerá nenhuma espécie de discriminação.
§ 1.º Considera-se discriminação em razão da deficiência toda forma de distinção, restrição ou exclusão, por ação ou omissão, que tenha o propósito ou o efeito de prejudicar, impedir ou anular o reconhecimento ou o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais de pessoa com deficiência, incluindo a recusa de adaptações razoáveis e de fornecimento de tecnologias assistivas.
§ 2.º A pessoa com deficiência não está obrigada à fruição de benefícios decorrentes de ação afirmativa.
Com mais razão ainda, deveremos atuar de forma a assegurar a “plena liberdade contratual” dessas pessoas, sob pena de sermos indiciados por crime de discriminação, nos termos do Estatuto:
Art. 83. Os serviços notariais e de registro não podem negar ou criar óbices ou condições diferenciadas à prestação de seus serviços em razão de deficiência do solicitante, devendo reconhecer sua capacidade legal plena, garantida a acessibilidade.
Parágrafo único. O descumprimento do disposto no caput deste artigo constitui discriminação em razão de deficiência.
Nos instrumentos públicos, quando afirmamos que o agente é “pessoa juridicamente capaz” (por ordem do inciso II do § 1.º do artigo 215 do CCB), estaremos tão somente dizendo que se trata de pessoa maior de dezoito anos. Não engloba a avaliação de capacidade civil por deficiência, por imposição do Estatuto.
Diante do exposto, nos é permitido concluir que o atual sistema deixou os deficientes relegados à própria sorte, podendo ser vítimas de inescrupulosas pessoas que se utilizem da “liberdade” contratual deles para dilapidar patrimônio e direitos.
Para nós, operadores notariais, resta somente assistirmos inertes aos desmandos do novo sistema jurídico, sem nenhum poder para intervir nos atos e negócios jurídicos a fim de proteger os deficientes, sob pena de sermos acusados de discriminação.
Enfim, um sistema que não discrimina, mas também não protege!
Autor: Ricardo Guimaraes Kollet - Tabelião e Registrador do Serviço Notarial e de Registro de Belém Novo