O CNJ tem competência
constitucional para alterar a legislação vigente, vedar a celebração de
contratos de alienação fiduciária por instrumento particular e o acesso de
títulos ao registro imobiliário?
Depois de reconhecer a
validade de norma administrativa do TJ/MJ que restringira o
registro "dos atos e contratos relativos à alienação fiduciária de
bens imóveis e negócios conexos" apenas aos firmados por escritura pública
"ou instrumento particular, desde que, neste último caso, seja celebrado
por entidade integrante do SFI - Sistema de Financiamento
Imobiliário, por Cooperativas de Crédito ou por Administradora de Consórcio de
Imóveis" o Conselho Nacional de Justiça decidiu, nos autos do Pedido de
Providências 0008242-69.2023.2.00.0000, vedar "a celebração de ato
particular, com os efeitos de escritura pública, por qualquer outro agente não
integrante do SFI, pois os dispositivos legais acima transcritos, normas
específicas e excepcionais não revogaram a regra geral do Direito Privado,
consagrada no art. 108 do Código Civil, quanto à essencialidade da escritura
pública para validade dos negócios jurídicos que visem à constituição,
transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor
superior a trinta vezes o maior salário-mínimo vigente no país."
Para conferir eficácia
à decisão determinou a alteração do Provimento CNJ 149, de 30/8/23 e a
adequação dos normativos das corregedorias gerais de Justiça dos Estados e do
Distrito Federal, que passarão a vigorar, no prazo de trinta dias, acrescido do
disposto no Capítulo VI, do Código Nacional de Normas da Corregedoria Nacional
de Justiça do CNJ para o Foro Extrajudicial - da seguinte forma:
CAPÍTULO VI
Da alienação fiduciária
em garantia sobre imóveis
Seção I do título
Art. 440 - AN. A
permissão de que trata o art. 38 da 9.514/97 para a formalização, por
instrumento particular, com efeitos de escritura pública, de alienação
fiduciária em garantia sobre imóveis e de atos conexos, é restrita a entidades
autorizadas a operar no âmbito do Sistema de Financiamento Imobiliário - SFI
(art. 2º da lei 9.514/97, incluindo as cooperativas de crédito.
Parágrafo único. O
disposto neste artigo não exclui outras exceções legais à exigência de
escritura pública previstas no art. 108 do Código Civil, como os atos
envolvendo;
Administradoras de
Consórcio de Imóveis (art. 45 da lei 11.795, de 8/10/08);
Entidades integrantes
do Sistema Financeiro de Habitação (art. 61, § 5º, da lei 4.380, de
21/8/64".
Não se encontrará na
decisão comentada razões efetivamente jurídicas que a justifiquem e o argumento
nuclear acolhido (toda escritura pública confere segurança jurídica e todo
instrumento particular insegurança jurídica) prefigura-se destituído de
comprovação fática minimamente aceitável, além de resultar desestruturado pela
própria decisão que transfere a "insegurança jurídica" do instrumento
particular para a 'qualidade' das partes contratantes:
"A respeito da
atribuição de efeitos de escritura pública a instrumento particular, não se
pode olvidar a importância e imprescindibilidade da tutela pública em negócios
privados para conferir-lhes juridicidade e autenticidade a qual se revela pela
presença nesses atos jurídicos, de instituições financeiras integrantes do
Sistema de Financiamento Imobiliário."
A verdade é que r.
decisão afronta diretamente o espírito da lei e a intenção seguidamente
reiterada pelo legislador de conferir aos negócios imobiliários celeridade,
simplicidade, constituição descomplicada, custo reduzido e caráter satisfativo.
Nesse sentido, a
redação original da lei 9.514/97 admitiu a utilização do instrumento particular
nas operações celebradas com pessoa física, afastando - expressamente - a
limitação prevista no art. 134, II do CC (art. 108, do código vigente):
Art. 38. Os contratos
resultantes da aplicação desta lei, quando celebrados com pessoa física,
beneficiária final da operação, poderão ser formalizados por instrumento
particular, não se lhe aplicando a norma do art. 134, II, do CC.
Já em 2001, para
contornar a interpretação enviesada de alguns autores e a resistência dos
registradores de imóveis, a redação do art. 38 da lei foi alterada pela MP
2.223 de forma a arrolar os contratos abrangidos pela exceção legal, inclusive
"aqueles constitutivos ou translativos de direitos reais sobre
imóveis" e explicitar a não aplicação da regra geral do Código Civil,
passando a viger com o seguinte texto:
Art. 38. Os
contratos de compra e venda com financiamento e alienação fiduciária, de mútuo
com alienação fiduciária, de arrendamento mercantil, de cessão de crédito com
garantia real e, bem assim, quaisquer outros atos e contratos resultantes da
aplicação desta lei, mesmo aqueles constitutivos ou translativos de direitos
reais sobre imóveis, poderão ser celebrados por instrumento particular, a eles
se atribuindo o caráter de escritura pública, para todos os fins de direito,
não se lhes aplicando a norma do art. 134, II, do Código Civil.
Os mesmos motivos
exigiram duas alterações no referido artigo 38 durante o ano de 2004, para
ajustes e atribuição textual aos atos e contratos resultantes da aplicação da
lei 9.514 do caráter de escritura pública para todos os fins de direito. A
primeira delas, pela lei 10.931, em 2/8/04 e a segunda, pela lei 11.076, de
30/12/04, advindo a redação ainda vigente:
Art. 38. Os atos e
contratos referidos nesta Lei ou resultantes da sua aplicação, mesmo aqueles
que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos
reais sobre imóveis, poderão ser celebrados por escritura pública ou por
instrumento particular com efeitos de escritura pública.
Se é verdade que a
redação imperfeita do vigente do art. 38 suprimiu - de forma atécnica e
indevida - a parte que atribuía aos contratos referidos o caráter de escritura
pública para todos os fins de direito, não há na evolução da norma em questão,
nem se depreende da leitura daqueles dispositivos, qualquer justificativa para
o entendimento ou interpretação que permita pressupor que a forma plúrima
elegida na origem tenha sido escamoteada pelo legislador ou limitada a
instrumentos provindos do mercado financeiro.
É relevante destacar
que o CNJ detém competência administrativa para fiscalizar e normatizar o Poder
Judiciário e, por via de consequência, fiscalizar os serviços notariais e
registrais, que por sua vez, estarão obrigados a cumprir as normas técnicas
dali emanadas, de tal forma que. a decorrido o prazo estipulado no provimento
minutado que integra a decisão referida, restará vedado o acesso ao registro
imobiliário dos instrumentos públicos - ainda que expressamente admitidos pela
lei de regência da alienação fiduciária de bem imóvel.
Da mesma forma, é
pertinente frisar que falta ao CNJ competência constitucional para alterar a
legislação vigente, que a decisão acima transcrita contraria o ainda vigente
art. 38 da lei 9.514/97 e que, ao vedar o acesso do cidadão ao registro
imobiliário, confronta diretamente direitos e garantias fundamentais
assegurados pela Constituição Federal.
Finalmente, a decisão
merece reparos sendo pertinente ponderar que não cogitou o legislador do art.
38 da lei 9.514 de revogar a regra geral do Direito Privado (art. 108 do Código
Civil) e, sim, de estabelecer a exceção prevista em lei e admitida pelo
dispositivo legal. Ademais, conforme já aclarado, a norma administrativa
provinda do CNJ pode vedar ao agente público que proceda ao registro dos
títulos apresentados em desacordo com o decidido, mas não deveria - em respeito
ao princípio constitucional da legalidade - obstar "a celebração de ato
particular, com os efeitos de escritura pública, por qualquer outro agente não
integrante do SFI".
Fonte: Migalhas