A cada
lembrança da época em que enfrentou uma séria doença no coração, os olhos de
Osmar Caetano dos Anjos, 51 anos, enchem-se de lágrimas. Foram três anos
de inúmeras passagens hospitalares entre o diagnóstico de doença de Chagas à
realização do transplante, quando só lhe restava um mês de vida e a saúde estava
totalmente fragilizada. Quase 12 anos depois de ter renascido, o personagem que
abre essa matéria para comemorar o primeiro mês de lançamento da campanha “Um
Só Coração: Seja Vida na Vida de Alguém”, avalia como essencial a iniciativa do
Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em parceria com o Colégio Notarial do Brasil
– Conselho Federal (CNB/CF).
Neste período, 4.447 pessoas deram início à formalização da sua
vontade de ser doador. Elas preencheram digitalmente e de forma gratuita a
Autorização Eletrônica de Doação de Órgãos (Aedo) em um dos 8.344 cartórios de
notas do Brasil. O número de pessoas que já manifestaram o desejo de doarem
órgãos é 60% superior às mais de 3 mil doações efetivadas durante todo ano
passado, de acordo com dados do Ministério da Saúde. “O
provimento que regulamenta o procedimento de doação de órgãos assegurou a
importância de que todos os cidadãos tenham acesso gratuito a um mecanismo
seguro que fomente e agregue o maior número de doadores de órgãos e tecidos com
o objetivo de que seja respeitada a declaração de vontade do doador,” destaca o
corregedor nacional de Justiça, ministro Luis Felipe Salomão.
Em abril, ao lançar a campanha, o presidente do Supremo Tribunal
Federal e do CNJ, ministro Luís Roberto Barroso, afirmou que, em 2023, de mil
pessoas que morreram no país, 14,5 eram potenciais doadoras, mas apenas 2,6
tiveram a doação de órgãos efetivada. Atualmente, há mais de 42 mil
pessoas que aguardam na fila por um transplante de órgãos no Brasil, 500 delas,
são crianças. Somente no ano passado, 3 mil pessoas morreram à espera da doação
de um órgão. A maioria das pessoas na fila única nacional de transplantes
aguarda a doação de um rim, seguido por fígado, coração, pulmão e
pâncreas.
Com a Aedo, quem desejar ser doador de órgãos poderá formalizar a
sua vontade por meio de um documento oficial, feito digitalmente. “Essa ação
pretende fomentar ainda mais as doações”, reforçou o ministro. Antes da Aedo,
só havia o desejo manifesto à família. São os familiares que acabam decidindo
pela doação ou não.
“Precisei da empatia dos parentes da minha doadora para
sobreviver”, relembra Osmar.
O contraditório dessa situação é que uma família precisa perder um
ente querido para dar vida a outra pessoa. “É transformar o luto dos que
morreram na alegria dos que podem se beneficiar desses órgãos”, pontuou o
ministro Barroso, durante o lançamento da campanha.
Osmar herdou o coração de uma mulher de 31 anos que morreu devido
a um acidente vascular cerebral (AVC). Ao lado do seu leito, na UTI do
Instituto de Cardiologia e Transplantes do Distrito Federal (ICDFT), um rapaz
recebeu o fígado da mesma doadora. “Foram duas pessoas salvas, eu estava no meu
limite”, conta com a voz embargada. Três meses após a cirurgia, passou a
substituir as pedaladas que fazia antes de adoecer, por caminhadas. Atualmente
corre mais de uma hora diariamente.
Com profundo respeito e agradecimento pelo gesto que salvou sua
vida, Osmar valoriza cada pequeno detalhe no seu dia a dia, desde o amanhecer
ao lado da esposa Denise e dos filhos, Maria e Samuel. Empenhado em valorizar
as ações que ampliem a doação de órgãos, dia que o tema ainda é tabu no Brasil.
“É uma conversa que as pessoas não querem ter, preferem adiar”,
reflete.
Ato grandioso
Era isso que fazia a recepcionista Tânia Francisca Alves de Sousa,
57 anos, quando o filho Rhangel, de apenas 8 anos, insistia em informar a
intenção de ser doador de órgãos. “Não sei de onde ele tirava isso, sempre
falava e eu desconversava, tratava com insignificância algo que era tão
grande”, relembra emocionada a mãe.
Há três anos ela beneficiou diversas pessoas autorizando a
retirada dos órgãos do filho, de 30 anos, que teve morte cerebral confirmada
quatro dias após ter sofrido um atropelamento na BR-020, na altura de Sobradinho,
no Distrito Federal, a poucos metros de casa. “Não tive dúvida de atender ao
pedido do meu filho, que eu conhecia tão bem, mas foi um processo doloroso”,
relembra a mãe.
Os órgãos doados: coração, pâncreas, fígado, rins, pulmão,
córneas, pele, intestinos e tecidos musculoesqueléticos, beneficiaram pacientes
não apenas do Distrito Federal, mas de Minas Gerais e Goiás. Isso foi o que ela
soube. Tânia confessa que gostaria de conhecer alguma das pessoas que receberam
os órgãos, mas a certeza que pôde ajudar alguém como o filho queira, “por
incrível que pareça, trouxe um conforto para a família”, assegura.
Em
um momento de dor pela perda do filho, Tânia teve forças para realizar o sonho
dele, que sempre se declarou um doador de órgãos: “Como mãe, dei continuidade
ao seu legado. Ele continuou ajudando mesmo após sua morte” – Foto: Luiz
Silveira/Ag. CNJ
“Eu pensava como iriam devolver o corpo do meu filho para ser
enterrado, mas tudo transcorreu de forma tão respeitosa para que a gente não
sofresse mais, fomos acolhidos de todas as formas”, fala ao lado do marido,
Antônio. A família recebeu o corpo de Rhangel após todos os procedimentos. “Ele
estava com a fisionomia tão serena que aquela imagem me tranquilizou um pouco”,
conta saudosa.
A dor da perda não desaparece, “aprendemos a conviver com ela”,
salienta Tânia, que está nesta caminhada ao lado do marido, de outros dois
filhos e de três netos, duas delas filhas de Ranghel. Desde a morte do rapaz, a
mãe tem aprendido a cada dia valorizar o que a vida traz de melhor. “Meu filho
era uma pessoa totalmente desprendida de bens materiais, andou por alguns
descaminhos, mas só prejudicou a si, porque ele sempre ajudou a todos que
podia”, assegura.
“Como mãe, dei continuidade ao seu legado. Ele continuou ajudando
mesmo após sua morte”, diz. Em uma caixa, que ela chama de tristeza, guarda os
documentos desde o momento do atropelamento, reserva também um espaço para
acomodar uma das cartas que recebeu de um hospital pelas doações dos órgãos.
Ela faz questão de ler um trecho tocante: “a grandeza do gesto de doar só pode
ser avaliada por aqueles que receberam os órgãos”.
Foi a partir da doação dos órgãos de seu filho, conta, que se deu
conta da importância desse assunto. “É um gesto maravilhoso, forte, necessário
e bonito. Foi difícil tomar a decisão, mas pensei: ‘E se fosse um dos meus
filhos precisando de um órgão?’. Com certeza eu estaria desesperada por
encontrar um doador, uma família que se compadecesse da minha dor”,
pondera.
Entusiasta
Felipe relembra que a formulação da Aedo foi desenvolvida pelo
Colégio Notarial e abraçada pelo CNJ. Ele enfatiza que a iniciativa do cidadão
de se transformar em um doador “é um ato profundamente humanitário e, com a
Aedo, ganha o respaldo de estar registrado em um documento público validado por
um tabelião”.
Geraldo não só defende a importância do preenchimento do
formulário, como incentiva todos à sua volta a fazer o mesmo. Foi assim que o
seu primo Gustavo de Souto Pereira Costa, 34 anos, soube da possibilidade de
assegurar o desejo, que busca ser respeitado após sua morte. O estudante de
psicologia é doador de sangue desde os 18 anos, ato que ele repete, em média,
quatro vezes por ano.
Para mostrar a facilidade de preencher a Aedo,
Gustavo mostra que fez no próprio celular. “Não demorou mais de 20 minutos,
desde informar os dados pessoais até a videoconferência com funcionários do
setor encarregado por dar legitimidade ao documento”, assegurou.
O estudante
aproveita para questionar, o que impede qualquer pessoa de fazer um bem
imensurável que não vai custar nada nem trazer nenhum prejuízo à vida do
doador. Ele mesmo responde, “estar consciente da importância de uma decisão
transformadora na vida de muitas pessoas”.
“Esse não
costuma ser um assunto corriqueiro na família, entre os amigos e muitos perdem
a oportunidade de manifestar o seu desejo, deixando de beneficiar diversas
pessoas”, avalia. Gustavo conta que comentou sobre a autorização com a avó e
ela também manifestou o desejo, mas ficou em dúvida se poderia ser doadora em
virtude da idade avançada. “Há sempre possibilidade de contribuir. Temos
de ser empáticos com o próximo, ajudar sem ver a quem”, resume o jovem.
O lançamento do formulário Aedo foi regulamentado pelo Provimento
n. 164/2024 da Corregedoria Nacional de Justiça. O interessado em preencher a
autorização eletrônica disponível gratuitamente deve acessar o site
www.aedo.org.br e seguir o passo a passo. Pelo sistema, o cidadão pode escolher
qual órgão deseja doar – medula, intestino, rim, pulmão, fígado, córnea,
coração ou todos.
O documento é validado juridicamente. A Aedo possibilita que o
desejo do doador fique registrado em uma base de dados acessada pelos
profissionais da Saúde. Médicos e enfermeiros poderão consultar a Central
Nacional de Doadores de Órgãos pelo CPF da pessoa que morreu e verificar se era
doador de órgão e apresentar a família logo que o óbito é
constatado.
O doador de órgãos preenche o formulário no site www.aedo.org.br,
onde seleciona o cartório que deseja deixar o documento arquivado. O tabelião
da respectiva unidade agenda uma videoconferência para identificar o
interessado e coletar a sua manifestação de vontade. Por fim, o solicitante e o
notário assinam digitalmente a AEDO, que fica disponível para consulta pelos
responsáveis do Sistema Nacional de Transplantes. A plataforma está acessível
24 horas por dia, sete dias por semana, de qualquer dispositivo com acesso à
internet.
Fonte:
Notícias
CNJ