O presente artigo tem por escopo uma reflexão, de forma
simplificada, sobre uma nova perspectiva de aquisição de imóveis através da
usucapião
Como cediço, a aquisição de imóveis em nosso ordenamento
jurídico ocorre de 2 modos: originário ou derivado. Antemão tratarmos sobre o
cerne do assunto, forçoso diferenciar ambos os institutos. Por aquisição
originária, entende-se aquela em que o agente possui contato direito com a
coisa, não guardando vínculo com o antigo proprietário e/ou gravames que
eventualmente estejam registrados ou averbados na transcrição/matrícula do
imóvel (Ex: legitimação fundiária, aluvião, avulsão, dentre outros). Por outro
lado, a aquisição derivada decorre do vínculo entre o agente e o antigo
proprietário da coisa (Ex: sucessão hereditária, compra e venda etc.)1. A
principal diferença entre ambos, de forma didática, se dá no fato que na
aquisição originária, o possuidor adquire a coisa livre de quaisquer ônus que
eventualmente recaiam sobre a coisa, ao passo que, na derivada, estes deverão
ser suportados pelo adquirente.
Historicamente, a doutrina classifica a usucapião como forma
originária de aquisição da propriedade na medida em que o possuidor adquire o
bem pelo transcurso do tempo em posse da coisa, sendo a sentença meramente
declaratória de seu direito. Nesta senda, parte da doutrina contemporânea vem
entendendo a possibilidade de a usucapião ser interpretada como forma de
aquisição derivada da propriedade, nos casos em que a posse decorra de uma
relação jurídica, sendo esta relação motivo fundamental para a usucapião. Neste
sentido:
(...) Partindo da visão da aquisição como um processo, será
derivada a usucapião que decorrer de atos jurídicos que tomarem como referência
a situação jurídica de propriedade formal anterior, ao passo que será
originário o direito que não levar em consideração a relação jurídica anterior
de propriedade.2
Com o advento da usucapião extrajudicial, positivada no art.
216-A da lei 6.015/73, inserido no ordenamento jurídico pelo art.
1.071 do CPC/15, tal entendimento foi firmado no
provimento 65 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que
disciplinou o instituto e, em seu artigo 21 dispõe que:
Art. 21. O reconhecimento extrajudicial da usucapião de
imóvel matriculado não extinguirá eventuais restrições administrativas nem
gravames judiciais regularmente inscritos. (grifo nosso)
§ 1º A parte requerente deverá formular pedido de cancelamento
dos gravames e restrições diretamente à autoridade que emitiu a ordem.
§ 2º Os entes públicos ou credores podem anuir expressamente
à extinção dos gravames no procedimento da usucapião.3
Como se pode extrair do artigo acima transcrito, o usucapiente
que optar pela via extrajudicial, terá seu direito declarado, via de regra, de
modo derivado, devendo, se for o caso, formular o pedido de cancelamento dos
gravames e restrições diretamente à autoridade que emitiu a ordem (art. 21, §
1º, provimento 65, CNJ).
Nesta linha de raciocínio, destaca-se alguns exemplos que
seriam basilares para a compreensão e aplicabilidade do entendimento:
I. Na hipótese em que o usucapiente possua o imóvel há mais
de 15 anos e neste imóvel exista uma servidão de passagem e/ou eventuais
gravames contraído pelo antigo proprietário, devidamente registrado no fólio
real da coisa, sendo pelo usucapiente respeitado. Com o transcurso do tempo,
preenchido os requisitos para a usucapião, será declarado seu domínio. Neste
caso, seria inviável a defesa no sentido de que tais ônus seriam cancelados,
tendo em vista que o usucapiente foi conivente com a situação;
II. Na usucapião Ordinária (art. 1.242 do Código Civil) e
usucapião ordinária por posse-trabalho (art. 1.242, parágrafo único do Código
Civil). Em casos tais, o domínio do usucapiente, via de regra, advém de uma
relação obrigacional (geralmente caracterizada por um contrato de compromisso
de compra e venda etc.), logo, em casos específicos (citemos como exemplo os
casos de usucapião ordinária em que o possuidor é impedido de registrar seu
título aquisitivo devido a fração mínima de parcelamento do solo de imóveis
rurais e/ou casos em que os loteamentos ou matrículas estão
"canceladas" por ordem judicial, dentre outros casos), não seria
viável interpretá-la como forma originária, pois estaria preterindo eventual
situação fática/jurídica até então suportada pelo usucapiente;
III. Usucapião "por abandono do lar" (art. 1.240-A
do Código Civil). Nestes casos, tal situação demonstra-se ainda mais evidente
na medida que, segundo a melhor doutrina, um dos requisitos para esta
modalidade de usucapião, seria o prévio registro, logo, a mulher ou homem que
for "abandonado" por seu cônjuge, após 2 anos (preenchidos os demais
requisitos), terá direito a usucapião "da parte correspondente" ao
seu consorte, sendo está, uma forma derivada de aquisição da propriedade.
Ora, em casos tais, com o devido respeito, não seria
plausível defender que seriam formas de aquisição originária, com as
consequências daí provenientes, tendo em vista que o agente possuí a coisa por
um vínculo obrigacional precedente, sendo por ele respeitado durante todo o
tempo em que possui o bem.
Dessarte, esta mudança de paradigma no entendimento
demonstra-se necessário posto que o usucapiente poderia utilizar o instituto
como meio de fraude para extinguir eventuais ônus e gravames incidentes sobre o
bem e/ou como forma de simulação a fim de que não sejam recolhidos os tributos
devidos sobre as relações jurídicas de transmissões anteriores. Ademais, ao
defender o instituto apenas sob o viés doutrinário clássico, entendendo-o como
forma originária, estaria o poder público deixando de recolher tributos (Ex:
ITBI, ITCMD) sobre as transações imobiliárias e prejudicando eventuais terceiros
interessados que possuam direitos registrados/averbados no folio real do
imóvel. Repisa-se que, tal entendimento, seria cabível apenas aos imóveis
adquiridos por uma relação obrigacional anterior ou no decorrer da posse, em
que o agente possua vínculo com a coisa e seu antigo proprietário, sendo estes
motivos determinantes para o pleito da usucapião.
Ademais cabe ressaltar que tal posicionamento, como podem
sugerir, não seria uma alteração no entendimento visando prejudicar o
procedimento da usucapião, ajudando os mais abastados em detrimento a população
de baixa renda, mas sim um novo viés sobre o instituto, desestimulando práticas
como a "grilagem" e estimulando o cumprimento de direitos e deveres
existentes na aquisição de imóveis, trazendo maior segurança jurídica às
transações imobiliárias.
Fonte: Migalhas