Diante desse cenário, revela-se, pois, imprescindível,
uma discussão acerca da revisão contratual, trazendo-se à baila a
aplicabilidade ou não da teoria da imprevisão aplicada aos contratos de locação,
se considerada a crise decorrente da pandemia como acontecimento extraordinário
e imprevisível
Introdução
A pandemia do novo coronavírus - covid-19, vem trazendo
enorme insegurança e por vezes, inviabilidade de manutenção das relações
locatícias, seja pelo intervencionismo estatal hodierno, mediante
legislações estaduais e municipais que coíbem a manutenção funcional de
inúmeras empresas, ou ainda, impondo restrições ao funcionamento das demais,
resultando imediatamente na redução integral do faturamento, ou a redução
drástica em alguns casos.
Diante desse cenário, revela-se, pois, imprescindível, uma
discussão acerca da revisão contratual, trazendo-se à baila a aplicabilidade ou
não da teoria da imprevisão aplicada aos contratos de locação, se considerada a
crise decorrente da pandemia como acontecimento extraordinário e imprevisível.
Em que pese a quantidade de contratos que estão sendo
afetados pela necessidade de atender as determinações restritivas emanadas do
poder público como medida de combate à pandemia, nos restringiremos a discutir
por ora, as implicações que incidirão nos contratos de locação não residencial,
em especial, aqueles envolvendo shoppings centers, haja vista a impossibilidade
dos comerciantes de auferirem rendimentos nesse período, trazendo para a
classe, prejuízos sem precedentes.
Todavia, é preciso considerar que, enquanto perdurarem as
consequências da pandemia da covid-19, que determinou a paralisação compulsória
das atividades comerciais e econômicas não essenciais, tanto locador, quanto
locatário, estão sendo obstados do cumprimento integral dos deveres
contratados.
O locador fica impedido do exercício de sua obrigação de
destinação do imóvel à locação (art. 22, I, II, da lei 8.245/91) e o locatário não pode cumprir com o
pagamento da despesa do aluguel em razão da sua impossibilidade de usufruir
livremente o imóvel locado para exercitar sua atividade econômica ou comercial,
e por via de consequência, impedido de auferir ganhos suficientes ao pagamento
de suas obrigações.
Nas relações locatícias que envolvem shopping centers,
chamamos a atenção para o fato de que a situação é ainda mais complexa do que
aquela decorrente de uma relação comum, qual seja, aquela entre locador e
locatário, pois na presente relação jurídica surge a figura do administrador, o
que dificulta a simples aplicação da teoria da imprevisão ao caso concreto, eis
que a relação tem como integrantes, o locador (proprietário do imóvel), a
administradora do conglomerado comercial (sublocadora) e os lojistas
(sublocatários).
Da revisão contratual, segundo a teoria da imprevisão e
onerosidade excessiva
Partindo-se de tal premissa, necessário se faz um
aprofundamento sobre a teoria da imprevisão e onerosidade excessiva, cuja qual
fora adotada pelo Código Civil, estabelecendo a possibilidade de
resolução ou de revisão contratual em hipóteses de excepcionalidades,
imprevisíveis ou ajustadas previamente pelos contratantes.
Entrementes, a força obrigatória do contrato, pode vir a ser
mitigada quando durante o lapso de tempo contratual ocorrerem fatos que alterem
as condições iniciais, gerando o desequilíbrio na relação jurídica e afetando o
seu adimplemento por qualquer dos contratantes, circunstância essa que
evidencia a denominada Teoria da Imprevisão que pode ser classificada como a
exceção ao princípio do cumprimento obrigatório do contrato.
Isso quer dizer que, a modificação de circunstâncias
inerentes ao contrato pode ensejar onerosidade excessiva ao cumprimento das
obrigações a uma das partes e injusta vantagem à outra, consentindo, portanto,
a revisão das cláusulas pactuadas pelo interessado, visando restabelecer o
equilíbrio contratual entre as partes.
Nesse sentido, importante ressaltar que, o contrato alberga
as obrigações das partes e certifica uma obrigação de adimplemento em que os
contratantes se vinculam e se responsabilizam por sua execução. Deste fato
advém o princípio da obrigatoriedade do contrato, fortemente inspirado pelo
princípio da pacta sunt servanda. Repise-se que, em caso de contrato de trato
sucessivo como é o caso da locação, - por algum motivo superveniente e desproporcional
-, o contrato pode ser revisto com base na teoria da imprevisão.1
Considerando, outrossim, o ideário da segurança jurídica que
se pretende garantir aos contratantes, tem-se no princípio da força obrigatória
dos contratos (pacta sunt servanda), o intuito de se impor efetividade aos
contratos, de modo que a legislação traz em seu bojo sanções para aquele
que deixa de cumpri-los, escusando-se apenas a inadimplência fruto de caso
fortuito ou força maior (art. 393, CC)”2
E, nesta perspectiva, o artigo 4783 do Código Civil se
revela persuasivo ao evidenciar, em resumo, que, nos contratos de execução
continuada, se o pagamento se tornar excessivamente oneroso para uma das
partes, em razão de fatos extraordinários e imprevisíveis, assente-se a sua
revisão, sendo, portanto, essa, a essência do artigo, daí a chamada Teoria da
Imprevisão nos contratos.
A Lei de Locações (lei 8.245/91)4, assim, se rende às
especificidades do Código Civil, que complementa e regulamenta aquilo que não
contém previsão expressa na lei específica, de modo a permitir as renegociações
de contratos comerciais em períodos críticos, independentemente das ações
específicas, previstas no artigo 58 e seguintes da Lei de Locações/inquilinato.
A revisão do contrato no direito civil fundamenta-se,
principalmente, em seus artigos 317 e 478, os quais, muito embora sejam
concebidos como arestas de um mesmo vértice (a cláusula rebus sic standibus)5,
representam, segundo a doutrina, teorias revisionais distintas e,
consequentemente, cada dispositivo legal tem requisitos e efeitos distintos.
O art. 478 do Código Civil adota a teoria da imprevisão
oriunda do direito francês, eis que, além da vicissitude do evento, reivindica
a extraordinariedade da possibilidade de prejuízo, simultaneamente à de lucro,
com a comprovação dos efeitos ruinosos do fato superveniente na circunstância
subjetiva do credor.
Por outro lado, o código civil em seu art. 317, se mostra
mais próximo da teoria da excessiva onerosidade do direito italiano, eis que
substitui a ideia do fato extraordinário pela desproporcionalidade
exteriorizada entre as prestações. Refere-se a constatação objetiva do
desequilíbrio superveniente, estranho às partes, que não poderia ser esperado
legitimamente, resultando em excessiva onerosidade e enorme sacrifício a uma
das partes contratantes, sem que seja necessário esmiuçar a situação subjetiva
das partes envolvidas6.
O pedido fundado no artigo 317, tem como objetivo o reajuste
no valor da prestação quando esta se torne manifestamente desproporcional em
razão de seu cumprimento por motivo imprevisível, sem, no entanto, se
desprezar, o preenchimento dos seguintes requisitos: (I) a comprovação da
desproporcionalidade manifesta e (II) o nexo de causalidade entre a prestação e
o motivo imprevisível alegado7.
No que lhe concerne, os argumentos fundados no artigo
478,8 se prestariam à resolução contratual diante da dificuldade extrema
no seu cumprimento sem maiores danos, não dispensando o preenchimento dos
seguintes os requisitos (I) a demonstração do agravamento do sacrifício
econômico que o devedor irá suportar9; (II) a vantagem manifesta para a parte
adversa10; (III) o nexo de causalidade dos dois requisitos com o fato
extraordinário e imprevisível.
A teoria da imprevisão, pautada nos artigos 478 a 480 do Código
Civil, ampara a resolução ou a revisão contratual na hipótese de ocorrência de
um evento superveniente e imprevisível que cause desequilíbrio em sua base
financeira, tornando a obrigação excessivamente onerosa a uma das partes, bem
como deflagrando extrema vantagem para a outra, denotando a possibilidade de
que seja desencadeada a mitigação da força do obrigatória dos contratos.
Pois bem, muito tem se discutido acerca da aplicabilidade da
teoria da imprevisão aos contratos de locação no cenário da pandemia da
covid-19, contudo, nosso ordenamento tem mitigado o requisito
consubstanciado na extrema vantagem para a outra parte, sendo que tal
requisito já fora objeto do Enunciado 365 da IV Jornada de Direito Civil.
Segundo o referido Enunciado seria desnecessária a
comprovação de lucro por uma das partes, bastando apenas que seja comprovado o
prejuízo e o desequilíbrio, em consonância àquilo que já fora discutido na IV
Jornada de Direito Civil, culminando com a aprovação do enunciado 365 do CJF.
Veja-se que, diante do atual cenário pandêmico, tal
enunciado deve ser levado em consideração, principalmente, na hipótese de
locação de shoppings centers, que ordinariamente têm como sublocadoras as
administradoras que sublocam as lojas. Por essa perspectiva, de bom alvitre
salientar que não se trata meramente de auferir lucros em detrimento do outro,
mas de uma questão de subsistência empresarial entre as partes contratantes,
eis que ambas deixam de auferir rendimentos, tendo como consequência,
inclusive, um possível encerramento das atividades do shopping center.
Nesse sentido, não há como conceber que em uma eventual
revisão contratual se considere tão somente a onerosidade excessiva de uma das
partes, sem ao menos se ponderar os riscos à outra parte, que na hipótese de
redução do valor pago ou em caso de suspensão integral dos pagamentos
poderá ter inviabilizada sua atividade econômica que afetará diretamente o
próprio locatário.
Decisões judiciais sobre suspensão ou redução do valor do
aluguel
Diante da situação complexa em que vivemos, o Poder
Judiciário vem enfrentando essa questão, sendo obrigado a analisar inúmeros
pedidos pela aplicação da Teoria da Imprevisão para obter a revisional ou
resolução dos contratos de aluguel. Assim, muitas têm sido as demandas judiciais
em busca da revisão contratual, resultando por vezes, em suspensão dos
pagamentos, ou ainda na redução do valor pago, ou por outro, a não aplicação da
referida teoria pela ausência de comprovação de ocorrência de extrema vantagem
ao locador, de modo que, não bastando a demonstração da crise, se torna
imperioso evidenciar um enriquecimento injusto ao locador.
Diante disso, quando tratadas questões contratuais
fundamentadas na teoria da imprevisão com o intuito de se justificar os inadimplementos
contratuais fundados na pandemia, deve o Poder Judiciário analisar
pormenorizadamente cada caso, a fim de se evitar a banalização do instituto e
até mesmo insegurança jurídica.
Negociação
Dada a complexidade da situação, de suma importância que,
antes mesmo de uma demanda judicial por parte daquele que se sente prejudicado,
seja intentada a resolução da problemática, mediante negociação entre as
partes, com vistas ao retorno do equilíbrio à relação contratual, eis que
algumas atividades econômicas se sujeitarão em maior escala aos impactos
advindos da grave crise decorrente da pandemia. Pois, consoante já afirmado, em
se considerando que diversas foram as ações adotadas pelo poder público, no
intuito de se evitar a expansão da pandemia, ocorreram sérias restrições ao
desenvolvimento das atividades, afetando as relações comerciais regidas por
contratos de trato continuado, principalmente, no tocante ao adimplemento das
obrigações.
Oportuna a menção ao caso do PoloShop Alto da XV, em
Curitiba, que segundo a administradora, em decorrência da crise originada pela
pandemia do novo coronavírus, e por consequência dos decretos que determinaram
a suspensão das atividades dos shoppings centers, ocorreu a suspensão dos
pagamentos pelos locatários lojistas, restando impossível que a administração
do empreendimento suportasse o valor do aluguel do imóvel. O atual cenário
versado no encerramento das atividades das lojas, com a ausência de geração de
receitas para a administradora, acabou tornando ainda mais complicada a
situação da empresa que enfrenta há anos na justiça um processo revisional
ajuizado em face da proprietária do imóvel.
Dado o ineditismo da pandemia, imprescindível se revela a
adoção, pelas partes contratantes, antes mesmo de buscarem a tutela
jurisdicional, - que não traz certeza da satisfação do resultado almejado -,
buscar-se extrajudicialmente uma resolução equitativa, em respeito aos
princípios da transparência, lealdade e boa-fé que regem os contratos.
Por certo que, diante da criticidade do cenário econômico do
país e da incerteza quanto ao término da pandemia, se mostra sensata a busca de
soluções extrajudiciais fundadas no bom senso, na boa-fé entre as partes antes
mesmo da judicialização da avença.
A referida renegociação pode ser fundamentada no artigo 22,
I, da Lei de Locações, bem como no artigo 23, II, do mesmo dispositivo, quando
propiciam às partes a livre disponibilidade do imóvel locado, tanto para o
desenvolvimento das atividades previstas no contrato, dever do locatário, como
para os fins da relação locatícia em si, dever do locador.
A lei 8.245/91 (Lei do inquilinato) em seu art. 18, dispõe
uma hipótese resolutiva para que as partes entrem em um consenso sobre o valor
do aluguel, segundo o referido dispositivo: “É lícito às partes fixar, de comum
acordo, novo valor para o aluguel, bem como inserir ou modificar cláusula de
reajuste”.
Tem-se, portanto, que uma das primeiras providências na
atual conjuntura consiste no envio notificação extrajudicial ao locador, com a
formalização por escrito do aviso de desequilíbrio econômico decorrente da
pandemia do Coronavírus, a qual deve trazer ínsita em seu bojo uma proposta de
revisão das cláusulas contratuais, inclusive, se possível, já com a proposta de
valores, vigência do aditamento e outras disposições para que o locador possa
se situar quanto à proposta apresentada.
Demonstrar-se-á mediante tal providência, a fidelidade do
locatário ao princípio da boa-fé objetiva, cumprindo assim os deveres de
informação, de transparência e de tentativa de negociação extrajudicial,
norteando as partes para que se orientem pelo bom senso e solidariedade diante
dessa grave crise sanitária.
Por fim, diante de todas as digressões invocadas no presente
artigo, conclui-se que os contratantes podem pactuar cláusulas temporárias para
o adimplemento do aluguel, ou seja, até que os efeitos da pandemia da covid-19
sejam superados. Tais cláusulas podem, por exemplo, ter por escopo a redução do
valor do aluguel, a instituição de nova data para o pagamento, o elastecimento
dos prazos de pagamento, dentre outras tantas hipóteses que serão objeto de
consenso entre as partes visando a continuidade do contrato.
Em um momento complicado como o que estamos vivendo, no qual
todos estamos sendo afetados sem qualquer distinção, a solução mais adequada
será a NEGOCIAÇÃO, de sorte que as partes possam compor, operacionalizando por
si mesmas, as condições para superação da crise.
Saliente-se que os contratantes podem mediante a negociação,
impor quaisquer condições que não sejam contrárias ao que dispõe o art. 10411,
incisos de I a III do Código Civil, ou conter quaisquer das nulidades
constantes nos art. 166 e seguintes, sendo, todavia, necessário, que as partes
sejam assistidas por um profissional habilitado (advogado) de confiança dos
interessados, objetivando a instrumentalização da tratativa em documento
escrito e válido.
Ressalte-se que, o resultado da transação não pode ser
considerado novação ao contrato já existente, mas única e tão somente um
aditamento com acréscimo de disposições necessárias à manutenção do negócio
jurídico existente.
Todavia, persistindo eventual postura irredutível do locador
com uma negativa na negociação, não restará outra alternativa ao locatário,
senão o ajuizamento da competente ação revisional, nos termos do disposto no
art. 68 e §§ da lei 8.245/91, perante o Poder Judiciário.
Fonte: Migalhas