Afirmar a gravidade da crise mundial em razão da pandemia de
Covid-19 é chover no molhado. O que ainda não sabem, nem mesmo os
especialistas, é o tamanho do problema.
Nos últimos dias, um assunto ganhou considerável espaço na
mídia: diversos países se veem obrigados a participar de um verdadeiro leilão –
do tipo quem dá mais – com fábricas chinesas detentoras de 90% (noventa por
cento) da produção mundial de equipamentos de proteção (EPIs) e 1/5 de
respiradores artificiais, ferramentas essenciais no combate à Covid-19.
Chama ainda mais atenção que nem os contratos já celebrados
foram preservados, pois as notícias são de que as fábricas chinesas estão
cancelando contratos de compra e venda de EPIs e respiradores para realizar
outros negócios, mais vantajosos.
Vê-se, com isso, uma clara aplicação da Teoria do
Inadimplemento Eficiente do Contrato (efficient breach theory). Teoria bastante
presente no ordenamento jurídico de outros países, mas, pelo menos até o
momento, rechaçada pelo brasileiro.
A Teoria do Inadimplemento Eficiente do Contrato sugere que
o contratante, diante de uma oportunidade mais lucrativa, possa descumprir
deliberadamente o pacto já firmado, honrando com o pagamento da multa
contratual prevista.
Richard Posner, jurista americano à quem a teoria é
comumente associada, explica que “a parte é tentada a quebrar o contrato
simplesmente porque o lucro da quebra excederia o lucro decorrente de
cumprimento da obrigação. Ele o fará se o lucro exceder a expectativa de lucro
da outra parte no cumprimento e, ainda, os danos decorrentes da quebra” (tradução
livre)1.
Exatamente o modo de proceder das fábricas chinesas
noticiado pela mídia2. Embora o pacto contratual já tivesse sido firmado,
muitas companhias optaram por inadimplir a obrigação, indenizando o primeiro
comprador mediante pagamento de multa previamente fixada, para celebrar outro
contrato, mais lucrativo.
É dizer, valendo-se da Teoria do Inadimplemento Eficiente do
Contrato, o devedor (da obrigação contratual) que encontra uma situação capaz
de, economicamente, justificar o inadimplemento da obrigação diante do credor,
rompe o contrato originário para contratar com terceiro.
O que se vê, portanto, é que a Teoria do Inadimplemento
Eficiente do Contrato está visceralmente ligada ao lucro financeiro que é
escopo das organizações privadas. Não fosse pela ganância, seria fácil chegar à
conclusão de que o contrato primevo seria mantido, seja pela ética, seja pela
facilidade das partes envolvidas.
Não se sabe em que moldes foram entabulados os contratos de
compra e venda com as fábricas chinesas3, mas, diante desse cenário, uma
pergunta ecoa: a Teoria do Inadimplemento Eficiente do Contrato foi incorporada
pelo ordenamento jurídico brasileiro?
Pelo menos até o momento, não. E as justificativas são
muitas.
A primeira das barreiras diz respeito à função social do
contrato, normatizada no art. 421 do Código
Civil4.
Isso porque, consoante Enunciado 22 da I Jornada de Direito
Civil, “a função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil,
constitui cláusula geral que reforça o princípio de conservação do contrato,
assegurando trocas úteis e justas”.
Assim, o vínculo obrigacional, na medida do possível, sempre
deverá ser mantido, sendo certo que a conservação ou preservação do vínculo é
um importante subprincípio da função social do contrato5.
À vista disso, a rescisão contratual deve ser considerada a
última das hipóteses pelos contratantes.
Some-se a isso a boa-fé objetiva normatizada no art. 422 do
Código Civil6. Um verdadeiro dever legal que os contratantes possuem,
devendo-se pautar sempre pela cooperação e lealdade.
Em festejada obra coordenada pelo Ministro Cezar Peluso,
Nelson Rosenvald explica que a boa-fé objetiva compreende “um modelo de conduta
social, verdadeiro standard jurídico ou regra de conduta, caracterizado por uma
atuação de acordo com determinados padrões sociais de lisura, honestidade e
correção de modo a não frustrar a legítima confiança da outra parte”7.
Confrontando essas diretrizes com o inadimplemento
deliberado realizado pelas fábricas chinesas, percebe-se que foi contrariada a
boa-fé objetiva do contrato8, uma vez a contratação impõe às partes o dever de
cooperar para a boa execução do sinalagma9.
Cumpre destacar que o inadimplemento deliberado, visando
apenas e tão-somente o lucro e violando o dever de boa-fé objetiva, pode ser
interpretado como ato ilícito, nos termos do art. 187 do Código Civil10,
ficando a parte, nesse caso, obrigada a reparar todos os danos que der causa,
conforme art. 927 do mesmo códex11.
Além disso, a escolha deliberada do devedor pelo
inadimplemento contratual e, por conseguinte, da aplicação da multa contratual
(cláusula penal), apresenta, prima facie, desarmonia com outras normas do
Código Civil.
Sobre isso, é comum encontrar interpretações no sentido de
que o art. 408 do CC12 vedaria a aplicação da Teoria do Inadimplemento
Eficiente do Contrato por, supostamente, condicionar a aplicação da multa à
configuração de culpa13.
Entretanto, filia-se aqui à parte majoritária da doutrina no
sentido de que não há necessidade de demonstração do elemento culpa para
incidência da cláusula penal, pois a expressão “culposamente”, de que se vale o
artigo, deve ser havida como noção de mera imputação.14
A esse respeito, é lapidar o escólio de Gustavo Tepedino:
“... andaria bem o novo legislador se mantivesse a locução
anterior uma vez que a inserção do termo ‘culposamente’ poderia sugerir um novo
requisito para aferição da aplicação da cláusula penal, este, contudo, de
natureza objetiva. Tal solução, contudo, deve ser afastada interpretativamente,
em homenagem à coerência do sistema”15
A despeito de a Teoria do Inadimplemento Eficiente do
Contrato não encontrar óbice no artigo supracitado, o mesmo não se pode dizer
do art. 410 do Código Civil16.
Com efeito, a inteligência do art. 410 do CC é cristalina ao
assinalar que a cláusula penal estipulada para o inadimplemento total da
obrigação deve, quando for o caso, ser convertida em benefício do credor (da
obrigação contratada).
Veja-se, portanto, que “a escolha só favorece ao credor e
nunca ao devedor, que deverá prestar fielmente o prometido. Em consequência,
não poderá o devedor pretender liberar-se da obrigação, oferecendo ao credor a
pena convencionada”.17
No caso de aplicação da Teoria do Inadimplemento Eficiente
do Contrato é o devedor (da obrigação contratual) que está intencionalmente se
liberando da obrigação pelo simples pagamento da cláusula penal. Essa
faculdade, no entanto, não é conferida pela legislação brasileira.
Fonte: Migalhas