Em 31.12.19 a Organização Mundial de Saúde (OMS) recebeu o
primeiro alerta das autoridades chinesas acerca do surgimento de um vírus que
causou uma série de casos de pneumonia de origem desconhecida, tendo se
constatado, já no início de janeiro deste ano, tratar-se do Covid-19, um novo
tipo de coronavírus1. Com a rápida disseminação do vírus nos continentes
asiático e europeu, não tardou até que em 26.2.20 se confirmasse o primeiro
caso de contaminação no Brasil2. Em 11.3.20 a OMS declarou a situação de
pandemia de Covid-193.
Desde então as autoridades nacionais e internacionais têm
implementado medidas rigorosas para a contenção da propagação do vírus,
seguindo as orientações da OMS. No Brasil, a exemplo das práticas adotadas em
outros países, inúmeros decretos foram expedidos pelos governos estaduais e
municipais determinando o fechamento ou restrição de funcionamento de comércio,
restaurantes, bares, indústria, setor de serviços e inclusive a construção
civil4. A tendência para as próximas semanas, com o aumento do número de casos
de contaminação, é que cada vez mais estejam autorizados a funcionar apenas os
serviços essenciais, reforçando-se à população a orientação de que se mantenha
em isolamento social e evite a circulação, tudo no esforço de conter a
disseminação do vírus.
Tais medidas acarretam inegáveis impactos à economia e à
possibilidade de cumprimento dos contratos firmados, impondo a necessária
reflexão acerca dos efeitos da pandemia sobre a execução dos contratos.
Nesse cenário, sobressai a aplicação das noções de caso
fortuito e força maior, previstas no art. 393 do Código Civil 5, verificados
"no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou
impedir". Registra-se que existe debate doutrinário acerca da necessidade
ou não de diferenciação dos conceitos de caso fortuito e força maior6, ponto
que não será abordado neste artigo por não ser este o enfoque pretendido e
sobretudo porque a utilidade de tal diferenciação parece dispensável na
hipótese de pandemia, na qual não se verifica controvérsia no sentido de que se
caracteriza como um evento extraordinário cujos efeitos não é possível evitar.
Conforme prevê o art. 393 do Código Civil, a primeira
consequência da aplicação das hipóteses de caso fortuito e força maior ao inadimplemento
contratual é que o devedor não responderá pelo prejuízo resultante, salvo se
houver estipulação contratual em sentido contrário. Veja-se que a cláusula de
alocação de riscos é especialmente usual em contratos civis-empresariais de
operações de maior porte e, nesse caso, deve prevalecer o convencionado,
sobretudo porque em tais situações presume-se que os contratantes são partes
experientes, com amplo conhecimento e assessoria sobre o negócio. Registra-se
que, no caso de o contrato prever que o devedor responda pelo prejuízo
resultante de caso fortuito e força maior, importante que o credor atente para
a possibilidade de aplicação da doutrina da mitigação dos prejuízos, já
difundida no direito contratual brasileiro, a lhe impor o ônus de mitigar o seu
próprio prejuízo dentro do razoável, sob pena de ser privado da indenização
pelos danos evitáveis7.
A impossibilidade de cumprimento da obrigação, quanto à
classificação, pode ser definitiva ou temporária e,
ainda, absoluta – quando acarreta a extinção da obrigação, com a
liberação do devedor ou relativa – quando se verifica dificuldade ou
onerosidade no cumprimento da obrigação que, no entanto, por si só não a
extingue.
Assim, a segunda consequência que decorre das hipóteses de
caso fortuito e força maior é a possibilidade de resolução do contrato quando a
utilidade da prestação se perde ou se torna impossível o cumprimento da
obrigação. De outra banda, nos casos em que a impossibilidade de cumprimento da
obrigação caracterizar-se como temporária e relativa, a revisão contratual é
uma alternativa à resolução, a exemplo do que dispõem os arts. 3178 e
4789 do Código Civil, repactuando-se o contrato, a fim de reequilibrar o
seu sinalagma funcional. Nesses casos, podem-se adotar soluções tais como prazos
de suspensão do exercício da prestação, repactuação de valores, a exemplo das
medidas adotadas no Rio de Janeiro, onde lojistas e proprietários de shoppings
center acordaram a possibilidade de pagamento de aluguel proporcional ao
período em que o shopping permaneceu aberto, com a cobrança de taxa de
condomínio reduzida10. Independentemente da via adotada, as soluções devem ser
buscadas pautadas nos princípios do equilíbrio contratual, da boa-fé objetiva e
da cooperação entre as partes.
Necessário frisar, ainda, que a impossibilidade de
cumprimento, em princípio, deve ser superveniente à obrigação contratual.
Veja-se que, na medida em que desde janeiro deste ano se tem notícia da
existência do coronavírus e de sua capacidade de disseminação, já não se sustenta
o caráter de imprevisibilidade da pandemia para contratações firmadas a partir
de então, o que deve sopesado no momento da interpretação do contrato.
Por fim, embora estejamos em um momento inicial da pandemia,
no qual ainda não é possível prever todos os desdobramentos e impactos
econômicos, sociais e jurídicos, o fato é que a crise econômica a ser
enfrentada e os inúmeros descumprimentos contratuais são realidades postas com
as quais o Direito terá de lidar mediante a análise das consequências do descumprimento
caso a caso, conforme o modelo, elementos contratuais e o impacto gerado na
relação concreta pelo acontecimento extraordinário da pandemia.
Fonte: Migalhas