A partir do momento em que alguém torna-se
pessoa pública, infelizmente, a sua vida privada acaba transformando-se em
pública também, mesmo depois da morte. Tanto que a milionária herança deixada
pelo apresentador de televisão Gugu Liberato virou matéria de noticiários e
tema de discussão em redes sociais. Não poucos são aqueles que têm se arvorado
no direito de opinar se houve ou não injustiça no suposto testamento deixado
pelo apresentador. Na manifestação de última vontade, em tese, a sua aparente
companheira teria sido preterida.
Por óbvio, não
caberá aos opinadores, mas ao Judiciário pacificar a questão, dizendo o direito
de cada um - filhos, companheira(?), mãe, sobrinhos, etc. Mas, a situação posta
é oportuna, à medida em que oferece, a nós "mortais", algumas lições
importantes.
Inicialmente, não se
pode perder de vista - e isso por certo será objeto de discussão prévia nas
chamadas vias ordinárias, lá no inventário do apresentador - que pelas normas
sucessórias brasileiras ninguém é inteiramente livre para testar. Se existem
herdeiros legítimos necessários – quais sejam os descendentes,
cônjuges/companheiros (a depender do regime de bens), ou ascendentes, todos
aqueles postos pela lei (artigo 1.829 do Código Civil), o autor da herança só
poderá dispor em testamento da metade de seus bens, ou seja, da metade da parte
a ele disponível, após a meação. Reserva-se a outra metade para ser partilhada
entre os herdeiros, a fim de que não sejam de todo prejudicados pela
liberalidade do testador em favor de terceiros.
No caso da
personalidade ora lembrada, o que também está gerando polêmica é se a mulher,
mãe dos filhos dele, com a qual se diz não era casado, tem ou não direito a uma
parcela da herança. Se ela era companheira ou não, se viviam realmente em união
estável... Mas, deixando a polêmica particular de lado, é possível algumas
reflexões.
O Código Civil não
privilegiava companheiros em igualdade com cônjuges, tratando-os de forma
diferenciada, podemos até dizer discriminatória. Tal anormalidade levou o
Supremo Tribunal Federal (STF), no Recurso Extraordinário 878.694/MG (Tema
809), em repercussão geral, declarar a inconstitucionalidade do artigo 1.790 do
CC, dispositivo criador da diferenciação.
Decidiu a Suprema
Corte que "no sistema constitucional vigente, é inconstitucional a
diferenciação de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros, devendo ser
aplicado, em ambos os casos, o regime estabelecido no artigo 1.829 do Código
Civil". Desde então, companheiros passaram a concorrer com descendentes e
ascendentes do autor da herança em igualdade de condições.
Outro ponto que se
sobressai seria a existência ou não de união estável. Em casos tais há herdeiros,
especialmente descendentes oriundos de relacionamentos anteriores, e mesmo
pais, irmãos, etc, que acabam se levantando em questionamento da união para, em
última análise, tentar um quinhão maior da herança, afinal, quanto maior o rol
menor será a porção para cada um.
Para o
reconhecimento da união estável, morar em endereços diferentes por si só não
descaracteriza a condição, prevalecendo o ânimo, a intenção de constituir
família. Não cabe aqui conjecturar a existência ou não de contratos, pois isso
demandaria uma outra análise.
É preciso, sim,
saber se existia convivência do casal de forma contínua e duradoura. Lembrando
que não há regra quanto o tempo desse convívio para que ocorra o seu
reconhecimento. De um modo geral têm-se como requisitos para a caracterização a
estabilidade da união, a sua continuidade, a sua publicidade e o propósito de
constituir família.
Em sendo admitida a
união estável com certeza haverá repercussão patrimonial. E no caso,
aplicar-se-á o regime da comunhão parcial de bens. Aqui nasce outro ponto de
discórdia: haverá meação nos bens
adquiridos de forma onerosa na constância do “casamento” e concorrência com
outros herdeiros quanto aos bens particulares do “de cujus".
Exemplificando, há o
episódio público de um ator e diretor de televisão que morreu em 2012. Depois
de prolongada briga judicial entre três filhas de relacionamentos anteriores do
morto e a última companheira, no ano passado a Justiça reconheceu a união
estável. Com isso ela deverá ficar com a meação e parte da herança (lá pelas
bandas de R$ 20 milhões) e a parcela restante dividida entre as filhas.
Na prática,
contendas entre herdeiros, e muitas vezes entre herdeiros legítimos e
testamentários, servem apenas para lavagem de roupas sujas acumuladas na
própria família e para arrastar a tramitação de um inventário por anos a fio.
Para aqueles que preferem a pacificação há a opção do inventário extrajudicial,
permitido pela Lei 11.441/07.
Não havendo menores
ou incapazes e sendo todos concordes quanto a partilha, este é o caminho mais
fácil e mais rápido. Pela lei, quando havia testamento só se podia eleger a via
judicial. Agora, tribunais têm admitido interpretação mais elástica para
aceitar que mesmo com testamento, e desde que haja concordância entre as partes
envolvidas quanto aos termos, seja possível a via simplificada.
Fonte:
Correio do Estado