A divergência em duas decisões do
Superior Tribunal de Justiça - STJ sobre adoção de netos pelos avós gerou
discussões entre os operadores do Direito nesta semana. Em fevereiro de 2018, o
Tribunal afirmou que em circunstâncias excepcionais os avós podem adotar o
próprio neto (REsp 1635649), apesar da vedação prevista no artigo 42,
parágrafo 1º, do Estatuto da Criança e do Adolescente. No entanto, em ação
julgada em setembro deste ano, o STJ negou adoção do bisneto pelo bisavó (REsp 1796733), em face do mesmo disposto do ECA.
O art. 42, §1º, do ECA, citado em
ambos os casos, estatui, como regra geral, a proibição da adoção de
descendentes por ascendentes, objetivando tanto a preservação de uma identidade
familiar como para evitar a eventual ocorrência de fraudes. Mas afinal, ele
precisa ser seguido à risca ou existem circunstâncias excepcionais?
Para Flávia Brandão, presidente
do Instituto Brasileiro de Direito de Família - IBDFAM seção Espírito Santo, a
adoção é um procedimento regulado por dispositivos próprios com vários
critérios.
“Nos termos do art. 42, §1°, do
ECA, ascendentes e irmãos não podem adotar. Desta forma fica clara a conclusão
que avós não podem adotar seus netos. No Brasil, o número de avós que criam
seus netos é elevado e a vontade da adoção se mostra presente. Com base no
princípio do melhor interesse do menor essa regra foi mitigada, tanto assim a
decisão de 2018”, afirma.
No entanto, ela afirma que não é
uma regra geral. Por isso, esta é uma decisão excepcional e que demanda
bastante cuidado do julgador, tomando como referência o caso concreto.
“As famílias modernas mudaram de
perfil. Situações existem em que os avós efetivamente criam seus netos como
pais e o menor está no contexto familiar na posição de filho”, diz.
Para a advogada, o vínculo de
parentesco se estabelece nesses casos a partir desse contexto social e não por
imposição legal apenas. “Desta forma temos que o ECA, no art. 42, §1°, veda a
adoção. Mas na busca pelo melhor interesse da criança temos uma legislação
afirmativa a favor e devemos observar o artigo 227 da Constituição Federal,
assim como os arts 3°, 6° e 15º, assim como a Convenção Internacional dos
Direitos das Crianças”, ressalta.
Caso de 2018 repetiu entendimento de 2014
Patricia Novais Calmon, advogada
e membro do IBDFAM, lembra que a decisão favorável do STJ a adoção dos netos
pelos avós, em 2018, repetiu um entendimento proferido em 2014 (REsp 1635649).
Em ambos os julgamentos, o STJ
reputou possível a pretendida adoção por ascendentes, levando em consideração o
fato de ser o neto gestado a partir de abuso sexual sofrido pela sua mãe, onde,
em virtude do forte abalo psíquico e/ou idade desta, os avós se
responsabilizaram integralmente pelos cuidados da criança.
Ela lembra que, inclusive, nos
dois casos o papel intrafamiliar e social exercido pelo adotando era de filho
(dos avós) e irmão (da mãe biológica). “Trata-se de um nítido caso de
parentalidade socioafetiva previamente constituída desde tenra idade, a
demandar uma resposta positiva pelo Poder Judiciário, que possui métodos
hermenêuticos distintos do gramatical para interpretar o texto da lei. É
possível, portanto, aplicar o método sistemático, onde se extrai a norma a
partir da análise de todo o ordenamento jurídico, além de ser plenamente viável
o exercício da ponderação no caso de colisão entre normas jurídicas”, destaca.
Nos casos tratados em 2014 e em
2018, houve a colisão entre a regra prevista no art. 42, §1º, do Estatuto da
Criança e do Adolescente, que dispõe expressamente que “não podem adotar os
ascendentes e os irmãos do adotando” e, por outro lado, do princípio do melhor
interesse da criança.
“Deve-se recordar que este
princípio é norteador de toda a interpretação dos direitos das crianças e dos
adolescentes, decorrendo da proteção integral prevista no art. 227 da CR/88,
sendo amplamente reconhecido no âmbito internacional. Realizando um louvável
exercício de ponderação entre as duas normas jurídicas acima mencionadas, o STJ
considerou que, excepcionalmente, seria possível a referida adoção por
ascendentes”, diz.
A advogada diz que de fato os
fundamentos utilizados para vedar a adoção por ascendentes remetem a causas de
natureza patrimonial, social e pragmática, conforme citado no julgado de 2018.
Já nos casos em que se viabilizou a adoção, excluindo-se as preocupações com os
aspectos puramente patrimoniais em si, que não devem prevalecer de forma
absoluta no atual modelo de Direito das Famílias - pautado no afeto e não mais
em um cenário patriarcal e patrimonialista de pouco tempo atrás -, e,
principalmente, por presumir a má-fé dos envolvidos, não existe razão hábil
para a negativa de reconhecimento do vínculo de filiação por parte do
Judiciário.
“Isso porque inexistiria a
referida ‘confusão na estrutura familiar’, pois o adotando já se encontrava no
exercício do seu papel intrafamiliar e social de filho/irmão e, ainda, pelo
fato de ser através da aplicação do instituto da adoção que o adotando teria a
sua própria dignidade respeitada e reconhecida, de pertencimento efetivo ao
núcleo familiar ao qual já está inserido, sem um descompasso com as construções
sociais predeterminadas e nominais de membros de família. Portanto, a medida
seria útil a garantir os direitos dos envolvidos”, afirma.
Não houve dissonância com a decisão de 2019
A advogada diz que nos julgados
que admitiram a adoção por ascendentes (de 2014 e 2018), verifica-se uma
expressa menção sobre a excepcionalidade da medida. Por isso, ela diz que não
parece ter havido, de fato, uma dissonância jurisprudencial a respeito do tema
da decisão tomada em setembro deste ano.
Isso porque, no caso de 2019, o
adotando já era maior de idade e tinha sido criado pelos avós em razão de
carência de recursos financeiros por parte de sua mãe, o que é uma realidade
comum no Brasil. Bem diferente, por exemplo, do caso de 2014, onde a mãe
biológica ficou gestante aos 8 anos de idade em razão de abuso sexual e, por
conta da sua idade e pelo trauma desenvolvido, os avós se responsabilizaram
integralmente pelos cuidados do neto, conferindo-lhe tratamento de filho e
irmão de sua mãe biológica.
“Deve-se ressaltar que a decisão
de 2019 foi exarada pela Terceira Turma do STJ em julgamento por maioria, tendo
voto vencido da ministra Nancy Andrighi e do ministro Ricardo Villas Bôas. No
julgado de 2014, o ministro relator, Moura Ribeiro, foi favorável à adoção por
ascendentes, tendo decidido de forma diferente no caso de 2019, por não entender
que se tratavam das mesmas situações fáticas a viabilizar a ponderação entre
normas jurídicas. Assim, denota-se uma tendência de flexibilização da vedação
legal por parte do referido órgão colegiado em casos excepcionais”, sinaliza.
A favor da adoção por avós
Patrícia Calmon diz ser a favor
que os avós possam adotar os netos. No entanto a análise do caso concreto se
impõe e é imprescindível. De acordo com ela, a adoção é reconhecida pela
doutrina como um ato de amor. Portanto, aferindo-se no caso concreto que existe
efetivo vínculo de parentalidade socioafetiva entre os envolvidos,
principalmente quando se estiver diante de situações excepcionalíssimas como
naquelas apontadas nas decisões de 2014 e 2018, a adoção se mostra como
essencial para preservar os direitos dos envolvidos, seja no aspecto social ou
afetivo.
“Adentrando a análise do caso,
essencial que os demais requisitos objetivos e subjetivos para a adoção sejam
aferidos, sendo o mais importante deles o previsto no art. 43 do Estatuto da
Criança e do Adolescente (aplicável de forma subsidiária à adoção de maiores),
que assim prevê: ‘A adoção será deferida quando apresentar reais vantagens para
o adotando e fundar-se em motivos legítimos’”, lembra.
Assim, fundando-se em motivos
legítimos, como, por exemplo, a existência de parentalidade socioafetiva e, não
sendo o caso de má-fé comprovada dos envolvidos, que pretendem desvirtuar a
finalidade do instituto apenas buscando benefícios pecuniários, um destes
requisitos mostra-se preenchido.
Ela ressalta que alia-se, ainda,
o fato de se apresentar a adoção como uma vantagem real para o adotando,
conferindo-lhe dignidade, inserção e pertencimento àquele núcleo familiar.
Frise-se: tais requisitos devem ser aferidos pelo juiz no caso concreto.
“Nesses moldes e preenchendo os
requisitos para a adoção, sou plenamente favorável à adoção por ascendentes e à
flexibilização da vedação legal. Contudo, tudo isso só pode ser verificado de
acordo com as nuances do caso concreto”, finaliza.
Fonte: IBDFAM