Por mais que avancemos nos
dispositivos inteligentes, ler os termos já é, e será ainda mais, a única
certeza de que teremos que o carro inteligente do futuro seguirá nos levando
para casa, e pela rota mais eficiente, sem paradas desnecessárias pelos pontos
comerciais do proprietário do serviço.
Quatorze de agosto de 2020 é a data em
que usuários e empresas de internet farão escolhas talvez sem volta. Entra em
vigor a lei 13.709/18. Lei essa que não é só número, tem nome e
sobrenome, chamada Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). Basta
acrescentar uma informação (nome), e o dado outrora desinteressante (número)
ganha outro valor, outra atenção, pois sabe-se que falamos da lei que obrigará
empresas a revisarem todo o tratamento de dados pessoais que esta obtém e
processa.
Se os dados pessoais quando isolados
já são por sua natureza intrinsecamente ligados às nossas percepções de
privacidade e intimidade, a associação destes entre si pode gerar efeitos
surpreendentes em tempo de Big Data, Deep Learning e Deep
Fakes. “Profunda” e “grande” define bem a medida da penetração da linguagem das
máquinas e suas redes neurais no comportamento e nos interesses humanos,
utilizada na sugestão da nossa próxima série televisiva favorita, passando pela
agenda inteligente que nos avisa do trânsito antes de chegarmos a um
compromisso recorrente, mesmo que este não esteja anotado em uma agenda
(digital ou não), à sugestão automática do texto de resposta a um e-mail
profissional que acabamos de receber.
Viver no futuro é ter um despertador
que toca sem termos que programá-lo, pois este “sabe” que temos um compromisso
às 8h. Entrar em um carro autônomo sem precisar tirar o celular do bolso para
chamá-lo, tampouco para informar o destino, graças à nossa face armazenada em
seus servidores. A mesma face que é utilizada para destravar os mais recentes
smartphones - e os aplicativos bancários que temos instalados neles também.
A face, a voz, a retina e as digitais
de um indivíduo, dados biométricos que permitem identificá-lo de forma única,
serão cada vez mais utilizados em sistemas neurais, que trarão todo tipo de
facilidade moderna a essa pessoa, assim como tornarão seus gostos,
comportamentos, deslocamentos, relacionamentos e conta bancária cada vez mais
rastreáveis, mapeáveis e previsíveis. O valor de oferecer um pacote de fraldas
com descontos para um pai de primeira viagem recém-saído da maternidade é tão
alto quanto o pacote de viagens oferecido estrategicamente três, quatro meses
antes das férias programadas daquele profissional.
Nenhum dos cenários descritos acima é
perfeitamente correto ou completamente errado. Depende do acordo que o usuário
faz com o prestador de serviços de tecnologia da informação. Poderá pagar pelo
serviço e pedir máxima confidencialidade de seus dados pessoais, com restrições
severas ao compartilhamento dessas informações com terceiros, ou poderá
utilizar o serviço sem desembolso financeiro, remunerando o prestador de
serviços exatamente com as informações pessoais que lhe entregou, autorizando-o
a utilizar esses dados para seus mapeamentos e desenvolvimento de produtos, bem
como compartilhamento com terceiros, desde que informe com clareza ao usuário
desses usos. O almoço grátis seguirá não existindo, com a LGPD ou não. E, bem
contratado, o processo é positivo para ambas as partes.
A virtude principal da LGPD é trazer
uma obrigação severa, no mesmo (rígido) nível europeu, de que todo aquele que
coleta, armazena ou trata informações pessoais, especialmente sensíveis, deve
seguir padrões mínimos de segurança com relação a tais informações, bem como
deixar extremamente claro ao usuário em suas políticas de privacidade e termos
e condições de uso como utilizará e com quem compartilhará tais informações.
Mas de que vale a carta amorosa que
nunca foi lida pela musa de correspondida admiração?
A defesa que mais toca ao usuário
final, esse indivíduo cuja biometria e gostos pessoais a LGPD tenta proteger,
dependerá exclusivamente dele, e não da Autoridade Nacional de Proteção de
Dados, pois é ele que terá o poder de aceitar, ou não, as políticas de
utilização de dados pessoais oferecidas por seus aplicativos favoritos. Estará
pronto para a partir de 14 de agosto de 2020 ler cuidadosamente cada
atualização de termos e condições dos serviços de seu interesse, parando de
utilizar aqueles que informem que farão uso indesejado de suas informações? A
alegação de que tais serviços operam no formato de adesão, sem possibilidade de
negociação, é válida enquanto apenas um usuário discorda. Nenhum serviço quer perder
milhares de usuários, uma das principais métricas para sua cotação na bolsa e
sorrisos de acionistas, por conta de uma política de privacidade inadequada.
Cabe à sociedade retomar, ou passar a
adquirir, hábito valioso: a leitura crítica. Por mais que avancemos nos
dispositivos inteligentes, ler os termos já é, e será ainda mais, a única
certeza de que teremos que o carro inteligente do futuro seguirá nos levando
para casa, e pela rota mais eficiente, sem paradas desnecessárias pelos pontos
comerciais do proprietário do serviço.
*Marcelo
Bulgueroni é doutor em Direito Digital pela USP. Sócio fundador do
escritório Bulgueroni Advogados
Fonte:
Migalhas