A Constituição afirma serem
patrimônio cultural brasileiro “os bens de natureza material e imaterial,
tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade,
à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira”
(artigo 216). E incumbe ao poder público, com a colaboração da comunidade,
promover e proteger o patrimônio cultural brasileiro, mediante inventários,
registros, vigilância, tombamento, desapropriação e outras formas de
acautelamento e preservação (artigo 216, § 1º).
Não
existe uma lei nacional estabelecendo o regime jurídico do inventário no
Brasil. A norma jurídica que mais se aproximou de disciplinar o inventário do
patrimônio cultural foi a Portaria
Iphan 160/2016.
De
acordo com essa portaria, o inventário é um instrumento de identificação,
documentação e produção de conhecimento e informação de bens culturais (artigo
1º). Ele é um instrumento mediato de proteção do patrimônio
cultural, porque integra iniciativas voltadas à produção de conhecimento que
podem ou não redundar em medidas de proteção imediatas (artigo 1º, § 1º). Para
realizar a proteção imediata do patrimônio cultural, o inventário deverá estar
expressamente definido em norma própria, que estabelecerá seus efeitos sobre os
bens inventariados (artigo 1º, § 2º).
A Portaria
Iphan 375/2018,
que institui a Política de Patrimônio Cultural Material do Iphan, reforçou o
caráter protetivo indireto do inventário, ao classificá-lo como um instrumento
de identificação (artigo 12, I), processo que objetiva localizar, conhecer e
caracterizar os bens culturais materiais (artigo 11). Ela reitera que o
inventário é um instrumento mediato de proteção do patrimônio
cultural (artigo 12, § 2º) e que deve estar expressamente definido em norma
própria, que estabelecerá seus efeitos sobre os bens inventariados, para ser
instrumento de proteção imediata (artigo 12, § 3º).
Além
disso, ela arrola a identificação ao lado do reconhecimento e da proteção como
espécies do gênero “patrimonialização de um bem cultural material” (artigo 6º,
§ 2º), sendo o tombamento instrumento de proteção do patrimônio cultural
aplicável aos bens materiais em geral (artigo 27, I) e o cadastro (artigo 27,
II), a valoração (artigo 27, III) e a proibição de exportação (artigo 27, IV)
instrumentos de proteção aplicável a bens materiais específicos.
Decisão
da Justiça mineira
Nessa
linha de raciocínio, a 1ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de
Minas Gerais corretamente decidiu que o
inventário não gera para o Poder Público nem para o proprietário do imóvel as
mesmas obrigações de preservação que o tombamento, especialmente quando não
regulamentado no município:
APELAÇÃO
CÍVEL – AÇÃO CIVIL PÚBLICA – MUNICÍPIO DE PATROCÍNIO – IMÓVEL INVENTARIADO –
RECONHECIMENTO DA IMPORTÂNCIA HISTÓRICA E CULTURAL – AUTORIZAÇÃO E DEMOLIÇÃO
HÁ MAIS DE 20 ANOS – AUSÊNCIA DE DANO MORAL COLETIVO – CONDENAÇÃO DO MUNICÍPIO
À ELABORAÇÃO DE REGISTRO DOCUMENTAL DO IMÓVEL COMO INSTRUMENTO DE PROTEÇÃO A
MEMÓRIA DO BEM – SENTENÇA MANTIDA – RECURSO DESPROVIDO
1.
O inventário é o procedimento por meio do qual a administração pública
identifica e cadastra os bens de valor histórico-cultural, não gerando ao poder
público – ou ao proprietário do imóvel – as mesmas obrigações de preservação
asseguradas para as hipóteses de tombamento, especialmente quando não
regulamentado no município, devendo ser analisadas as condições peculiares de
cada caso.
2.
Na hipótese em que a demolição de bem inventariado foi autorizada e realizada
há mais de vinte anos, o lapso temporal entre a data dos fatos e o ajuizamento
da ação, apesar de não implicar prescrição do direito — em razão da natureza do
provimento buscado — sugere ausência de efetivo dano moral coletivo, ainda que
o imóvel de fato tenha importância histórica e cultural.
Como
o inventário não é uma forma de intervenção estatal na propriedade privada,
pode ser feito tanto por entes públicos quanto por entes privados. Todavia,
“quando implicar restrições no direito de propriedade privada, o inventário
deve passar obrigatoriamente pelo crivo do Poder Público e atender a todos os
requisitos formais e materiais previstos para as intervenções do Estado” [1].
Nada
obstante, alguns
juristas atribuem
ao inventário sentido e alcance diverso, conferindo-lhe natureza tutelar muito
próxima daquela do tombamento, só que “de efeitos jurídicos muito mais
brandos”.
Preservação
do patrimônio cultural
O
tombamento é a mais conhecida e estudada das formas de acautelamento e
preservação do patrimônio cultural, disciplinado em nível federal pelo Decreto-Lei
25/1937.
Seu objeto são os bens materiais (coisas), móveis ou imóveis, dotados de
excepcional valor arqueológico, etnográfico, bibliográfico, paisagístico,
histórico ou artístico (artigos 1º e 4º). O tombamento pode ser de duas
espécies: voluntário, quando o proprietário pede ao poder público para
inscrever a coisa como parte integrante do patrimônio cultural ou quando ele
anui com a inscrição da coisa por iniciativa do poder público (artigo 7º); ou
compulsório, quando o proprietário se recusa a anuir com a inscrição da coisa
(artigo 8º). E quanto aos efeitos, as coisas tombadas não poderão, em caso
algum, ser destruídas, demolidas ou mutiladas, nem, sem prévia autorização
especial do poder público, ser reparadas, pintadas ou restauradas (artigo 17).
Os
paladinos da aproximação entre inventário e tombamento recorrem à analogia com
a Lei 11.904/2009, que institui o Estatuto de Museus, para justificar que os
bens inventariados não podem ser destruídos ou degradados. Contudo, essa
analogia é indevida por vários motivos.
Em
primeiro lugar, os museus são “instituições sem fins lucrativos que conservam,
investigam, comunicam, interpretam e expõem, para fins de preservação, estudo,
pesquisa, educação, contemplação e turismo, conjuntos e coleções de valor
histórico, artístico, científico, técnico ou de qualquer outra natureza
cultural” (artigo 1º). E os bens que compõem o acervo dos museus são
necessariamente, por definição legal, bens culturais (artigo 39).
Em
segundo lugar, a imunidade jurídica ao perecimento e à degradação do acervo
museológico é corolário da natureza cultural imanente desses bens, e não um
efeito jurídico do inventário, que é apenas uma forma de manter
sistematicamente atualizada a documentação de tais bens (artigo 39, § 2º).
Em
terceiro lugar, ao definir os inventários museológicos como “patrimônio
arquivístico de interesse nacional” (artigo 40), o Estatuto de Museus só
reforça o caráter mediato dessa medida protetiva do patrimônio cultural.
E em
quarto lugar, o inventário museológico é elaborado de ofício sobre os bens do
próprio inventariante, ao passo que o inventário não museológico recai amiúde
sobre a propriedade alheia.
Eficácia
do inventário
Se
se admitisse essa analogia, os efeitos jurídicos do inventário seriam tão
intensos para os particulares quanto os do tombamento, já que em ambos os casos
a faculdade de disposição do proprietário ficaria severamente restringida.
Porém, com um agravante: ao contrário do tombamento, a eficácia do inventário
não estaria condicionada à notificação do proprietário para que, querendo,
apresentasse impugnação, nem à averbação do inventário na matrícula do imóvel,
se for o caso de bem de raiz.
Essa
corrente doutrinária encontra eco — indevido — na jurisprudência nacional, com
destaque para o REsp
1.547.058/MG,
julgado pela 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça em 6 de dezembro de 2016:
PROCESSUAL
CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. PATRIMÔNIO CULTURAL. BEM DE VALOR HISTÓRICO.
INVENTÁRIO. IMÓVEL DA DÉCADA DE VINTE. CONDENAÇÃO POR DANO MORAL COLETIVO.
OFENSA AO ART. 535 DO CPC/1973 NÃO CARACTERIZADA. ACÓRDÃO COM FUNDAMENTOS
CONSTITUCIONAIS E INFRACONSTITUCIONAIS. AUSÊNCIA DE INTERPOSIÇÃO DE RECURSO
EXTRAORDINÁRIO. SÚMULA 126 DO STJ. LEI MUNICIPAL 2.449/1989. INCIDÊNCIA DA
SÚMULA 280/STF. DESCARACTERIZAÇÃO DO BEM APÓS O INVENTÁRIO. REVISÃO DO
CONTEXTO FÁTICO E PROBATÓRIO. SÚMULA 7/STJ.
[…]
2.
Nada a acrescentar ou retificar na análise que o Tribunal de origem fez do
regime jurídico do patrimônio cultural. O tombamento constitui apenas um entre
vários institutos de proteção de bens de valor histórico e artístico, sendo um
deles o inventário, que, isoladamente, já assegura proteção legal.
Uma vez inventariado, o bem deve ser salvaguardado pelo Estado, pelo
proprietário e pela sociedade em geral. Por outro lado, a notificação, que
deflagra o tombamento provisório, impõe ao proprietário dever de abstenção
absoluta de realizar qualquer intervenção no bem sem expressa, inequívoca e
válida autorização da autoridade competente.
[…]
5.
Por fim, sobre o dano em si, verifico que o Tribunal a quo, dentro das
especificidades do caso concreto e amparado no conjunto fático-probatório
constante dos autos, concluiu que “as provas documentais e testemunhais foram
todas apreciadas, de modo que se verificou a destruição do imóvel após o
inventário (em 1998) e, ainda, após o embargante ter sido notificado do
procedimento de tombamento, este deflagrado em 2007”. Nesse aspecto, é
inviável analisar a tese defendida no Recurso Especial, a qual busca afastar as
premissas fáticas estabelecidas pelo acórdão recorrido, pois inarredável a
revisão do conjunto probatório dos autos. Aplica-se o óbice da Súmula 7/STJ.
6.
Recurso Especial não provido.
Nesse
recurso especial, interposto por um proprietário de imóvel contra acórdão da 7ª
Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais que o condenou ao
pagamento de indenização por danos morais coletivos pela demolição de imóvel
inventariado e sob tombamento provisório, a 2ª Turma assentou a seguinte
premissa hermenêutica em matéria de patrimônio cultural: “o tombamento
constitui apenas um entre vários institutos de proteção de bens de valor
histórico e artístico, sendo um deles o inventário, que, isoladamente, já
assegura proteção legal”.
Sem
embargo, afirmar que o tombamento é somente uma das formas previstas de
acautelamento e preservação do patrimônio cultural brasileiro não passa de um
truísmo. Isso está literalmente escrito no artigo 216, § 1º, da CRFB e não
agrega nada à exegese constitucional. O que releva saber é o alcance dessa
proteção legal que o inventário isoladamente já asseguraria.
Na
visão da 2ª Turma, por um lado, o bem inventariado “deve ser salvaguardado pelo
Estado, pelo proprietário e pela sociedade em geral”, não podendo ser destruído
ou dilapidado. Por outro lado, o inventário não chegaria ao ponto de ser um
tombamento, que impõe uma “abstenção absoluta de realizar
qualquer intervenção no bem sem expressa, inequívoca e válida autorização da
autoridade competente”.
Pergunta-se,
então: o que o proprietário do bem inventariado, com dever de abstenção
relativa, pode fazer que o proprietário do bem tombado, com dever de abstenção
absoluta, está proibido de fazer? A 2º Turma passou longe de esclarecer.
A 7ª
Câmara Cível relatou que, após o inventário em 1998, o proprietário do imóvel
conhecido como Relicário “realizou diversas obras sem qualquer anuência do
Poder Público”. Ora, o dever de abstenção absoluta não seria apenas do
proprietário da coisa tombada? O dever de não realizar obras sem a expressa
anuência do Poder Público não equivaleria a uma abstenção absoluta?
Conforme
o voto condutor do acórdão da segunda instância, chancelado pelo REsp
1.547.058/MG, “independentemente da inexistência de lei regulamentadora,
entendo que o bem de valor cultural inventariado merece a proteção do Estado,
de tal sorte que o seu proprietário tem o dever de protegê-lo”. Além disso, “o
bem inventariado como patrimônio cultural, a meu ver, submete-se — conforme os
ditames da Constituição — a medidas restritivas do livre uso, gozo e disposição
do bem, tornando-se, por outro lado, obrigatória a sua preservação e
conservação”.
Voluntarismo
judicial
Deveras,
sem uma lei ou mesmo um regulamento fixando claramente o regime jurídico do
inventário, os trechos transcritos não passam de voluntarismo judicial,
porquanto reconhecem restrições ao direito de propriedade apenas com base em
argumento de autoridade. Entre o inventário ter fundamento imediatamente
constitucional, prescindindo de intermediação legislativa (eficácia plena), e
ele possuir efeitos restritivos sobre o jus abutendi do
proprietário equivalentes aos do tombamento vai uma grande distância. De fato,
isso é um grande salto argumentativo.
Fica
nítido, assim, o desacerto desse julgado na parte em que manteve a condenação
do proprietário do relicário por danos morais coletivos com base no inventário.
No entanto, como a coisa também estava em processo de tombamento, esse, sim,
com efeitos restritivos sobre a faculdade de disposição do proprietário, a
condenação se justifica — apenas — quanto aos danos supervenientes ao
tombamento provisório.
Logo,
em que pese a autoridade do REsp 1.547.058/MG, é incorreto equiparar as
consequências jurídicas do inventário de bens culturais às do tombamento. Nem
todas as formas de acautelamento e preservação do patrimônio cultural
brasileiro, cuja menção é meramente ilustrativa no texto constitucional,
acarretam ao proprietário deveres de preservação e conservação. A educação
patrimonial e as diversas formas de vigilância do patrimônio cultural material
são exemplos disso.
Ao
mesmo tempo em que a CRFB salvaguarda o patrimônio cultural brasileiro, ela
inscreve essa proteção dentro de um sistema de regras e princípios igualmente
dignos de tutela jurídica. Portanto, o direito fundamental ao ambiente
ecologicamente equilibrado (artigo 225) — nele incluso o ambiente cultural —
deve coexistir harmonicamente com outros direitos e garantias fundamentais,
tais como o direito de propriedade (artigo 5º, XXII) e o princípio do devido
processo legal (artigo 5º, LIV).
O
Supremo Tribunal Federal, desde há muito, pacificou a tese
da inexistência de hierarquia entre normas constitucionais originárias. Trata-se de
expressão particular do princípio da unidade da constituição, segundo o qual a
constituição deve ser interpretada de modo a se evitarem contradições entre
suas normas, considerando-as em sua totalidade, e não como normas isoladas e
dispersas.[2]
Dentro
dessa perspectiva, não é lícito, a pretexto de se proteger o patrimônio
cultural, mesmo que de maneira bem intencionada, equiparar o inventário de bens
culturais ao tombamento. Acaso feita tal equiparação, que impõe severa
restrição ao direito de propriedade privada, ela haveria de respeitar, pelo
menos, as mesmas garantias de que gozam os proprietários nos processos de
tombamento.
[1] Cfr. SOARES,
Inês Virgínia Prado. Direito ao (do) patrimônio cultural brasileiro. Belo
Horizonte: Fórum, 2009, p. 287.
[2] Cfr. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição, 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 1.223-1224.