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1 ano da enchente: mutirões levaram cidadania e dignidade a milhares de gaúchos

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"Éramos um exército de acolhimento e ação". A frase da Corregedora-Geral de Justiça, Desembargadora Fabianne Breton Baisch, resume o sentimento que tomou o Palácio da Justiça, em Porto Alegre, durante a enchente que assolou o Rio Grande do Sul há 1 ano. Localizado em uma parte alta do Centro Histórico, não alagada, o prédio que sempre foi conhecido por estampar a imponente estátua da Deusa Themis na fachada, passou a ser chamado de "Palácio da Resistência".  "Era o único prédio que tinha luz no meio da escuridão", lembra a magistrada. Mas não só isso: de lá foram organizadas ações que ajudaram milhares de gaúchos que perderam tudo na catástrofe a recomeçar suas vidas e iniciativas que também nortearam as comarcas de todo o estado para que a prestação jurisdicional não fosse interrompida. Uma verdadeira luz no caminho de quem precisava de um norte para recomeçar.

E, pensando nisso, “Recomeçar É Preciso” e “Justiça Itinerante Emergencial” foram os dois projetos centrais da CGJ que, através da participação de magistrados, magistradas, servidores e servidoras voluntários e voluntárias, alcançaram milhares de pessoas, resgatando cidadania e dignidade, com a emissão de mais de 60 mil documentos durante um mês e meio.

Além disso, a CGJ realizou reuniões on-line com magistrados do Interior, que tiveram os Foros atingidos, oferecendo apoio material e emocional.  "Entendemos que a proximidade, ainda que virtual, era um imperativo naqueles momentos de incertezas, dúvidas e medo. E ouvimos cada um em suas aflições, dificuldades, procurando auxiliá-los em suas demandas, que, na verdade, eram de todos nós", destaca a Corregedora-Geral.

Em parceria com o CJUD, foi criado um projeto de enfrentamento de crise, ministrado por uma psicóloga especialista no assunto, voltado ao público interno, servidores e Juízes-Corregedores, atuantes na linha de frente, preparando-os para cuidar das pessoas que precisavam de ajuda. Depois, já mais apropriada da situação, a Corregedoria propôs a criação do Núcleo Enchentes 2024, centralizando as demandas resultantes da catástrofe climática.

Recomeçar é preciso

O cenário devastador da enchente trouxe logo à tona um problema para as pessoas que perderam tudo: a falta dos documentos civis (certidões de nascimento, casamento e óbito). No mês de maio estava previsto para ocorrer a Semana Nacional do Registro Civil, voltada para a emissão de documentos básicos de pessoas em vulnerabilidade social, que acabou cancelada no RS, em razão das fortes chuvas. Com recursos e sistemas limitados naquele momento, o Juiz-Corregedor Felipe Só dos Santos Lumertz, que coordena a matéria extrajudicial na Corregedoria, teve a ideia de utilizar um formulário on-line que era disponibilizado aos voluntários dos abrigos temporários e, posteriormente, enviados aos cartórios de registro civil. "Depois, eu recolhia os formulários, pegava as certidões impressas nos registros civis de Porto Alegre e mandava para os voluntários entregarem novamente nos postos onde haviam atendido", lembra o magistrado.

A ideia deu certo e se estendeu pelo Interior. Em Santa Maria, a ação foi coordenada pelo Juiz Thiago Tristão Lima, que considerou a experiência como uma das mais marcantes e humanas da sua trajetória no Judiciário. "Coordenar essa ação significou, antes de tudo, escutar. Estivemos nos abrigos, nas ruas, nas unidades básicas de saúde, nos bairros mais afetados, nos presídios e nas casas de passagem. Fomos até onde as pessoas estavam", afirma. "Ao final, foram 582 documentos emitidos em 20 dias de atuação. Mas o número mais importante não está nas estatísticas. Está nos olhos marejados de quem recebeu uma nova certidão, de quem pôde finalmente pedir ajuda do governo, recomeçar um vínculo, retomar a vida", destaca.

Justiça Itinerante Emergencial

Em outra frente de atuação, o projeto Justiça Itinerante, já conhecido por levar prestação de serviços jurisdicionais aos bairros da Capital, ganhou a sua versão "Emergencial", com foco nas populações atingidas pela enchente. "A estratégia que adotamos foi mobilizar equipes para atender diretamente nos locais onde a população atingida estava concentrada. Atendemos em abrigos temporários em diferentes bairros e municípios; em locais estratégicos, como o Shopping Praia de Belas e na Arena do Grêmio; e em e ginásios adaptados como abrigos", cita o Juiz-Corregedor Alejandro Rayo Werlang, coordenador do projeto. Nesses locais, em conjunto com diversos órgãos, como as Defensorias Públicas Estaduais e da União, Ministério Público, Justiça Federal, entre outros, foram oferecidos serviços como emissão de documentos e certidões, orientações jurídicas sobre questões relacionadas às enchentes, encaminhamentos para serviços específicos, resolução de questões familiares emergenciais e auxílio com processos relacionados a benefícios sociais emergenciais.

"Essa abordagem permitiu que o Poder Judiciário mantivesse sua presença e atuação mesmo com a infraestrutura afetada, aproximando os serviços jurídicos das pessoas quando elas mais precisavam. Essa experiência demonstrou a capacidade de adaptação do Poder Judiciário diante de situações extremas, colocando a população vulnerável como prioridade absoluta e encontrando meios alternativos para garantir o acesso à justiça mesmo nas condições mais adversas", avalia o Juiz-Corregedor.

A Juíza Patrícia Antunes Laydner atuou nas duas ações. Primeiro, na regularização de documentos civis. "A partir desse trabalho, os voluntários foram constatando que haviam outras necessidades nos abrigos. Foram realizados divórcios, reconhecimento de paternidade, regularização de documentação de curatela, enfim, uma série de medidas para as pessoas que estavam ali abrigadas", explica. "Trabalhar nessas duas frentes foi, por um lado, uma forma de minimizar a dor e dar um auxílio para aquelas pessoas que estavam passando por aquele momento tão complicado, mas também uma forma da gente mostrar a presença do Judiciário próximo à sociedade em um momento de calamidade", considera a magistrada.

Solidariedade

Para a Corregedora-Geral da Justiça, Desembargadora Fabianne Breton Baisch, as ações realizadas apontam para um "Poder Judiciário solidário, humanizado, proativo, e comprometido com a população". Das lições deixadas pela tragédia, o Juiz-Corregedor Felipe Lumertz caracteriza a  Justiça como um agente ativo. "O Judiciário, pode, na parte extrajudicial, ter um perfil propositivo, realizador de direitos", considera. "O Judiciário pode — e deve — sair dos gabinetes e ir ao encontro da população, principalmente em momentos de emergência social. E mais do que isso: é possível articular diferentes órgãos em prol de uma causa comum. O "Recomeçar é Preciso" foi mais do que uma ação institucional. Foi um gesto coletivo de humanidade", acrescenta o Juiz Thiago Tristão.

Com quase 20 anos de Judiciário, a servidora da CGJ, Sheila Bernardes, viveu, durante a enchente, momentos marcantes, que a emocionam ao lembrar. Ela resgatou o pai, morador da zona norte de Porto Alegre, uma das áreas mais atingidas da cidade, e também precisou se refugiar no Litoral durante o período crítico da enchente. Assim como ela, quase todos os colegas da Corregedoria tiveram que sair temporariamente de casa. Mesmo assim, o trabalho, que se concentrou através de grupo de WhatsApp, foi "full time" (em tempo integral), como ela mesma define. E o resultado, garante a servidora, foi o fortalecimento da união da equipe.

Ela lembra que, nos mutirões de registro civil junto aos abrigos, novas demandas surgiam a cada momento, ampliando ainda mais a atuação dos voluntários. "Embora tenha sido um período de muita dificuldade, a gente conseguiu, com o nosso trabalho, trazer algum alento para as pessoas que foram atingidas, entregando a possibilidade deles terem de volta o seu documento e de enxergar a sua cidadania", considera Sheila. Para a servidora, a união foi o ingrediente essencial para que o trabalho fosse realizado com tanto êxito. "Foi fundamental a parceria, a união e a solidariedade entre os colegas. Foi o período, profissionalmente falando, mais difícil da minha vida. E se não fossem os meus colegas, não teria conseguido entregar o trabalho que entreguei. Tenho certeza que esse também é o sentimento da maioria deles".

A Assessora Rozicler Portela da Silva Nothen, ao contrário, não precisou sair de casa e, esse "privilégio", como ela define, a motivou a se dedicar ainda mais. "Eu olhava para os meus colegas que estavam trabalhando tanto quanto eu, e eles vivendo numa situação tão difícil, eu me sentia uma privilegiada e me doava mais ainda. Porque eu eu via o quanto eles não deixaram de servir, colocando as suas dores e os seus problemas de lado", ressalta. Nos abrigos, ver a dor de quem perdeu tudo foi doloroso, porém, transformador. "A gente vivenciou um novo olhar sobre o servir naquele cenário, estando mais próximo das pessoas que servimos", afirma Rozicler. "Foi lindo e foi dolorido. Entramos naquele período de uma forma e saímos de outro. Serviu para crescermos como pessoas e como se cidadãos".

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Fonte: TJRS