Em um
mundo cada vez mais imerso na era digital, nossas interações, transações e até
mesmo legados têm evoluído para se manifestarem de formas virtualmente
tangíveis. Esse progresso, muitas vezes aludido como Era da Informação, não só
expandiu nossos horizontes em termos de conectividade e inovação, como também
gerou novos paradigmas para a gestão de ativos.
Surge,
assim, o conceito de patrimônio digital, um conjunto abrangente de bens e
informações eletrônicas que, ao mesmo tempo em que potencializam oportunidades,
também introduzem desafios sem precedentes na interseção entre tecnologia e
direito.
No
Brasil, embora essa categoria emergente de bens seja um reflexo da globalização
digital, ela ressoa de maneira única no cenário jurídico, apresentando dilemas
que vão desde a sucessão do patrimônio digital até a proteção post mortem de
dados e informações. Com a entrada em vigor da Lei Geral de Proteção de Dados
(LGPD) e os enunciados do Conselho da Justiça Federal, as fronteiras desse
território ainda estão sendo mapeadas, necessitando de um olhar atento e
reflexivo para equilibrar inovação, direitos individuais e prerrogativas legais
em um ambiente digital em constante mudança.
A
emergência do patrimônio digital no contexto brasileiro
A era
digital trouxe consigo uma série de transformações na forma como nos
relacionamos, trabalhamos e, inclusive, no modo como acumulamos bens. No
contexto brasileiro, essa evolução não foi diferente. A emergência do
patrimônio digital tornou-se um tema central em debates jurídicos, econômicos e
sociais. Os bens digitais têm despertado grande interesse quando se discute sua
natureza jurídica. Eles podem ser categorizados em três grupos distintos:
patrimoniais, existenciais e patrimoniais-existenciais.
Os bens
digitais patrimoniais são aqueles com natureza predominantemente econômica,
pois geram consequências de ordem financeira. São exemplos dessa categoria as
moedas virtuais, NFTs, websites, aplicativos, cupons eletrônicos, milhas
aéreas, jogos de videogame digitais e as bibliotecas, videotecas e discotecas
virtuais.
Já os
bens digitais existenciais são aqueles que carregam um valor sentimental e são
preservados em sistemas de armazenamento em nuvem, bem como em servidores
descentralizados, data centers e outros dispositivos de armazenamento. Eles têm
uma natureza estritamente pessoal e não são voltados para questões econômicas,
causando impactos que transcendem o patrimônio. Podemos citar como exemplos os
arquivos de fotografias pessoais em nuvens ou redes sociais, vídeos pessoais,
seja retratos ou com a própria voz do sujeito, e correspondências virtuais
trocadas com terceiros, seja através de e-mails ou outros serviços de
mensagens.
Por fim,
os bens digitais patrimoniais-existenciais representam uma combinação das duas
categorias anteriores. São bens híbridos que possuem tanto características
econômicas quanto pessoais. Isso ocorre porque, à medida que o conteúdo
inserido no ambiente virtual pelo titular desperta interesse em outros, ele
começa a gerar receita. Exemplos dessa categoria são perfis em redes sociais
que, devido à sua audiência, são convertidos em recursos financeiros através de
processos de monetização, como acontece com criadores de conteúdo em
plataformas como blogs, YouTube, X (anteriormente conhecido como Twitter),
Twitch e Instagram.
A herança
digital é caracterizada pela doutrina como o "acervo resultante de todo o
conteúdo criado e armazenado em rede pela pessoa falecida". No âmbito
doutrinário, estabeleceram-se principalmente dois entendimentos a respeito. De
acordo com uma primeira perspectiva, a transmissão de todos os conteúdos seria
a regra geral, exceto se o próprio usuário manifestasse, em vida, vontade
contrária. Essa abordagem alinha-se à herança tradicional, preconizando uma
transmissão imediata, em linha com o princípio de saisine, e irrestrita,
abarcando todos os bens do patrimônio digital no inventário. Doutrinadores como
Aline de Miranda Valverde Terra, Milena Donato Oliva, Filipe Medon, Laura
Schertel Mendes e Karina Nunes Fritz são adeptos dessa visão.
Por outro
lado, uma segunda corrente doutrinária ressalta a impossibilidade de
transmissão de certos conteúdos, principalmente quando tais implicam na
violação aos direitos da personalidade. Assim, bens digitais de caráter
existencial ou patrimonial-existencial estariam excluídos. Especificamente
sobre os últimos, o aspecto existencial não se incorporaria ao inventário,
embora o viés patrimonial pudesse ser objeto de transmissão post mortem, tendo
em vista a proteção dos direitos da personalidade, que persistem mesmo após a
morte do titular. Gabriel Honorato e Livia Teixeira Lea são alguns dos
doutrinadores que apoiam esta última interpretação.
Em 2022,
na 9ª Jornada de Direito Civil, o debate sobre a herança digital tomou
protagonismo, levando o Conselho da Justiça Federal a aprovar o enunciado 687
sobre o assunto. Este enunciado estabelece que "O patrimônio digital pode
integrar o espólio de bens na sucessão legítima do titular falecido,
admitindo-se, ainda, sua disposição na forma testamentária ou por
codicilo".
No
entanto, mesmo com a expressividade deste enunciado, é imprescindível salientar
que a legislação brasileira, até o momento, não contempla de forma específica e
integral a questão da herança digital. Os enunciados emitidos pelo CJF, embora
não detenham o caráter vinculante de uma lei, funcionam como faróis no
intrincado mar jurídico. São recomendáveis e servem de referencial, orientando
a elaboração de decisões, peças processuais, estudos e publicações sobre o
tema. Eles emanam o aroma de um "bom direito", espelhando as
tendências contemporâneas e as aspirações da sociedade e da esfera jurídica.
Ademais,
é importante destacar que, apesar da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) ter
entrado em vigor em setembro de 2020, essa não se estende aos dados de pessoas
falecidas. Nesse sentido, a Nota Técnica nº 3/2023/CGF da ANPD, referenciando o
artigo 5º, V, da LGPD e o artigo 6º do CC/02, confirma que a lei não se aplica
a indivíduos falecidos. Em virtude da inexistência de uma legislação específica
para essa situação, as plataformas digitais possuem autonomia para decidir o
destino de perfis e bens digitais após a morte do titular, conforme seus
respectivos termos e condições contratuais (Peck, 2023).
Autonomia
das plataformas
A
evolução da era digital introduziu uma variedade de plataformas que,
atualmente, detêm vastos volumes de informações e memórias dos usuários. Cada
plataforma possui sua própria abordagem sobre como lidar com o legado digital
de um usuário após seu falecimento. Por exemplo, o Facebook oferece a opção de
converter um perfil em uma "página de homenagem" e o Google
introduziu a funcionalidade "Conta Inativa", permitindo decisões
preestabelecidas após períodos de inatividade. No entanto, esses são apenas
exemplos isolados dentro de um mar de políticas variadas.
Quando os
usuários se cadastram em uma plataforma digital, muitas vezes concordam com
termos que decidem o destino de sua herança digital, sem plena consciência de
suas implicações. Em diversas ocasiões, herdeiros se deparam com desafios ao
tentar acessar ou gerenciar ativos digitais de entes queridos, sendo impedidos
por políticas da plataforma ou barreiras legais, particularmente em serviços
baseados fora do Brasil.
A
complexidade em torno da herança digital e as distintas políticas das
plataformas ressaltam a necessidade urgente de diretrizes mais claras e
consistentes. É imperativo encontrar um equilíbrio que respeite a autonomia das
plataformas, os direitos dos usuários e o valor inestimável da memória digital,
reconhecendo-a como uma categoria significativa de patrimônio no mundo moderno.
Instrumentos
de proteção do patrimônio digital
O
testamento e o codicilo são instrumentos do direito sucessório brasileiro que
permitem que o indivíduo manifeste sua vontade quanto à destinação de seus bens
após a morte, mas possuem distinções claras.
O
testamento (Código Civil, artigos 1.862 a 1.880) é o ato mais formal pelo qual
alguém dispõe sobre a totalidade ou parte de seu patrimônio para após sua
morte. Pode ser público, cerrado ou particular, nas formas ordinárias, bem como
marítimo, militar e aeronáutico, nas modalidades extraordinárias, abrangendo
disposições patrimoniais e não patrimoniais.
Já o
codicilo (Código Civil, artigos 1.881 e 1.885) é uma forma mais simples de
disposição testamentária, geralmente voltada para questões menores ou
instruções específicas, como destinações para missas ou recomendações
particulares. Também se presta à disposição de bens de pequena monta, não havendo,
contudo, entendimento doutrinário acerca do máximo percentual a nele ser
disposto. Pode ser revogado por outro codicilo ou por testamento.
Na
atualidade, a legislação brasileira não aborda explicitamente a questão da
herança digital; nem o Código Civil, nem o Marco Civil da Internet (Lei nº
12.965/2014), nem a LGPD (Lei nº 13.709/2018) tratam do assunto. Nesse
contexto, o testamento, uma ferramenta consagrada no direito brasileiro, emerge
como um meio significativo para proteger o patrimônio digital. Contudo, sua
adequação se faz imperativa para atender às peculiaridades e desafios impostos
pelo ambiente digital.
A
possibilidade de um codicilo, tido como "pequeno testamento", incluir
cláusulas que proíbem o uso de voz e imagem via inteligência artificial está em
discussão. Ainda que um testamento possua uma cláusula explícita, questiona-se
as consequências jurídicas quando esse desejo é violado após a morte do
testador. Em situações em que um herdeiro autoriza o uso indevido da imagem e
voz de um artista falecido, outros herdeiros podem buscar medidas legais. O
cenário se complica se o infrator é único herdeiro ou se todos concordam com o
ato. Em circunstâncias nas quais a IA poderia prejudicar a obra do falecido de
modo impactar o patrimônio cultural, os artigos 127 e 216 da CF e o artigo 176
do CPC legitimam a intervenção do Ministério Público, alinhando-se ao princípio
da função social e à constitucionalização do Direito Civil (GAGLIANO; Moraes,
2023, p. 15).
Ademais,
no Brasil, a proteção jurídica do patrimônio cultural é assegurada por diversos
instrumentos legais. A Constituição de 1988, em seu artigo 216, destaca o dever
do poder público, com o apoio da comunidade, de defender e conservar o
patrimônio cultural brasileiro. Além disso, o Decreto-lei nº 25 de 1937
estabelece diretrizes específicas para a proteção do patrimônio histórico e
artístico nacional. No que tange à legitimidade ativa para a proteção deste
patrimônio, destaca-se a atuação de órgãos como o Iphan em âmbito federal e as
secretarias estaduais e municipais de cultura. Ademais, o Ministério Público,
com base no artigo 129, III da CF/88, detém legitimidade para propor ações
civis públicas que visem à salvaguarda patrimonial. A comunidade e entidades
civis, apoiadas no artigo 216 da CF/88, também possuem legitimidade, permitindo
que cidadãos ou associações com interesse manifestado na preservação atuem em
defesa do patrimônio. Por fim, titulares de direitos diretamente relacionados
ao bem cultural em questão podem agir juridicamente em favor de sua
preservação.
Conclusão
A imersão
da sociedade na era digital transformou fundamentalmente a maneira como
vivemos, interagimos e, agora, como legamos nossa herança. No âmago dessa
transformação, a herança digital emerge como um campo de significado e
relevância crescentes, impondo ao cenário jurídico brasileiro a tarefa de se
adaptar e responder a este fenômeno emergente. Como examinado, as abordagens
autônomas das plataformas, embora variadas e em constante evolução, são
frequentemente insuficientes para capturar a complexidade e a singularidade das
questões em jogo. Enquanto alguns gigantes da tecnologia têm feito esforços
para reconhecer e abordar essa realidade, o espectro legal geral ainda está
buscando seu equilíbrio.
A
legislação brasileira e os enunciados do CJF, apesar de representarem passos
importantes na direção certa, ainda têm um longo caminho a percorrer para
oferecer uma abordagem holística sobre o patrimônio digital. As ferramentas
jurídicas existentes, como testamentos e codicilos, apresentam oportunidades,
mas também necessitam de modernização para abordar eficazmente os desafios
específicos do mundo digital.
Ao
olharmos para o futuro, o crescimento exponencial da presença digital das
pessoas exige que os profissionais do direito, os legisladores e as próprias
plataformas se antecipem e desenvolvam frameworks mais robustos, garantindo a
proteção, privacidade e transmissão eficaz dos bens digitais. Este é não apenas
um desafio legal, mas um imperativo ético e cultural, assegurando que a
memória, os direitos e os desejos dos indivíduos sejam respeitados e mantidos
no vasto ciberespaço.
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Referências
AUTORIDADE
NACIONAL DE PROTEÇÃO DE DADOS. Nota Técnica nº 3/2023/CGF/ANPD. Disponível em:
https://www.gov.br/anpd/pt-br/assuntos/noticias/NotaTecnica3CGF.ANPD.pdf.
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GAGLIANO,
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PECK,
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Devanildo
de Amorim Souza é pesquisador do
Grupo de Altos Estudos sobre Computação em Nuvem do Legal Grounds Institute,
mestre em Direito pelo Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas
(FMU-SP), graduado em Direito (FMU), advogado e pesquisador do Núcleo de
Pesquisa e Extensão O Trabalho além do Direito do Trabalho, da Faculdade de
Direito da Universidade de São Paulo .
Luiz
Eduardo Alves de Siqueira é
pós-doutorando pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP),
doutor e mestre em Integração da América Latina pela Universidade de São Paulo
(USP), graduado em Direito pela USP e professor universitário.
Fonte:
ConJur