Na semana passada o artigo de
autoria de Dandara Pinho, jogou luzes sobre as violações dos direitos à moradia
e de acesso à terra sob a perspectiva dos impactos do racismo estrutural e, em
que pese o fato de buscarmos não repetir tema nesta coluna, a recente decisão
liminar emanada pelo ministro André Mendonça nos autos da ADPF 342 - que gerou
um certo frenesi -, nos convida a pautar novamente o acesso à terra, só
que dessa vez, sob a perspectiva do fenômeno da estrangeirização das terras
rurais no Brasil.
A ADPF n. 342 foi ajuizada pela
Sociedade Rural Brasileira - SRB requerendo a declaração de não recepção pela
Constituição Federal, do artigo 1º, § 1º, da lei 5.709, de 7 de outubro de
1971, que institui restrição à aquisição de imóvel rural por pessoa jurídica
brasileira com a maior parte do capital social pertencente a estrangeiros.
Vejamos que se trata de uma restrição e não de vedação.
A centralidade da discussão é o
risco de o Brasil renunciar a qualquer controle sobre o processo de
estrangeirização de terras no país e suas consequências no aprofundamento de
uma das maiores e mais antigas desigualdades instaladas no Brasil, o acesso à
terra, assentindo, assim, com uma nova forma de neocolonialismo, conforme
classificam alguns estudiosos.
O afrouxamento ou liberação
total nesse processo de aquisição de terra, significa a consolidação da
marginalização de grupos populacionais, como os povos originários, os quilombolas
e os sem terra, onde sempre vence o mais forte, o mais rico, em detrimento
dessa população que historicamente tem seus direitos vilipendiados.
O pedido de ingresso do
Conselho Federal da OAB na ADPF 342, na condição de amicus curiae, foi aprovado
à unanimidade por seu pleno e baseou-se em parecer elaborado pela Comissão
Nacional de Direitos Humanos (CNDH), a qual tenho a honra de presidir. O pedido
foi deferido pelo relator, Ministro André Mendonça, que na oportunidade
concedeu medida liminar pela suspensão de todos os processos jurídicos e
administrativos cujo o objeto da demanda se baseie na Lei 5.709/1971[1].
Compreendemos que o dispositivo
em questão da Lei 5.709/1971, em aspectos algum conflitua com a Constituição
Federal de 1988, pelo contrário, sua recepção pela Carta magna se dá a medida
em que a imposição de restrições vela pela soberania nacional, pela proteção do
meio ambiente, das populações rurais, da soberania alimentar, valores estes
constitucionalmente assegurados.
Necessário destacar que o
fenômeno da estrangeirização de terras não é novo e não se concentra apenas no
Brasil, mas também, em países cujos fartos recursos naturais chamam a atenção
do capital para a exploração predatória desses locais.
Em pesquisa minuciosa sobre a
estrangeirização de terras no Brasil, o pesquisador e professor Geraldo Neto
registrou que[2]:
A partir do ano de 2008, em
decorrência da crise financeira (e de alimentos) e do aumento da produção de
agrocombustíveis (SAUER, 2010), um fenômeno foi inserido nas discussões da
questão agrária: a estrangeirização de terras (FERNANDES, 2011), pois tornou a
disputa pela terra um fenômeno global (SAUER, 2010). Desde então, a temática
propicia discussões na mídia, na academia, nas funções estatais (Executivo,
Legislativo e Judiciário) e em atores e sujeitos sociais, como os movimentos
sociais e sindicais do campo, o Banco Mundial, as organizações patronais,
dentre outros.
A professora e geógrafa Lorena
Izá Pereira, elaborou conceito adotado na literatura brasileira acerca do
tema[3]:
Compreendemos a
estrangeirização da terra como um processo de apropriação de terras e de seus
benefícios (recursos naturais, água, qualidade do solo, biodiversidade,
recursos minerais, entre outros). Tal apropriação pode ser realizada através da
compra do imóvel rural, do arrendamento, do contrato de parceria, do contrato
de gaveta, das estratégias das corporações em constituírem empresas em nome de
terceiros e que possuam uma identidade nacional, das táticas de fusões e
joint-venture entre empresas nacionais e transnacionais, das empresas de
capital aberto e com ações Free Float1, da concessão pública para a exploração,
do uso de superfície, como caso do Brasil que, inclusive, está presente no
Código Civil, no Artigo 1.369.
Ainda em sua pesquisa, Geraldo
Neto apresenta os conceitos desenvolvido por Sérgio Sauer e Sérgio Pereira
Leite (SAUER, LEITE, 2011a; SAUER, LEITE, 2011b) quanto ao termo
estrangeirização de terras como um fenômeno associado ao aumento de
investimentos estrangeiros na agricultura feitos em articulação com o
agronegócio e que vem adquirindo muitas terras na América Latina.
Os estudos apontam que a
estrangeirização de terras é um fenômeno global e o Brasil tem papel central
neste processo, pois atua nas transações globais por terras e seus derivados
enquanto alvo do interesse de países e suas multinacionais e na promoção da
apropriação destes recursos em outros países (SAUER, BORRAS, 2016:25), como no
Paraguai (FERNANDES, 2011) e em Moçambique (PEREIRA, 2014).
As consequências negativas do
fenômeno, sobretudo para os sujeitos coletivos de direito, quais sejam, os
movimentos sociais e sindicais, comunidades indígenas, comunidades
remanescentes de quilombo, comunidades rurais e povos tradicionais.
Geraldo Neto ainda destaca que
o fenômeno da estrangeirização de terras "reforça o neocolonialismo e
aumenta a dependência brasileira em relação à economia
internacional", afeta a soberania alimentar e o domínio sobre a
produção de alimentos necessários para a sobrevivência da população, isso
porque "As transações econômicas que marcam a estrangeirização operam para
a produção de poucas commodities", precariza as relações de trabalho no
campo, amplia o desemprego com a automação dos processos agroindustriais. E afirma,
ainda, que:
"O interesse global pelas
terras brasileiras causa o aumento no preço das terras gerando impactos na
política de reforma agrária, tendo em vista, que as indenizações para ressarcir
as desapropriações para fins sociais ficam mais caras, o que provoca o
acirramento das disputas territoriais."
Como consequência, temos a
elevação do preço da terra que provoca o aumento da concentração fundiária,
contribuindo, ademais, para a ampliação do monopólio na produção de
agroenergias e alimentos. A expansão das fronteiras agrícolas afeta as
comunidades rurais e seus territórios, contribuindo, muitas vezes, para a
expropriação das populações do campo.
É preciso lembrar que o
desenvolvimento do Brasil no pós-abolição é marcado por conflitos agrários e
pelas disputas de terras envolvendo trabalhadores rurais, pequenos agricultores
e o latifundiário. Até os dias atuais o governo brasileiro foi incapaz de fazer
uma reforma agrária que diminuísse as desigualdades no acesso à terra.
Noutro giro, na busca pela
efetivação do direito à terra, estão os povos originários e as comunidades
quilombolas, que por décadas permanecem à margem da história no que tange ao
acesso a esse direito.
Em breve digressão histórica,
cita-se a Lei de Terras 601 de 18 de setembro de 1850, aprovada apenas duas
semanas após a Lei Eusébio de Queirós[4] no período do Império, que instituiu
no país a regulamentação do direito de propriedade por meio da compra e venda
ou concessão pela Coroa.
A lei impedia que os
escravizados pudessem adquirir a posse da terra através do trabalho e, em
contrapartida, previa subsídios do governo à vinda de colonos do exterior para
trabalhar no país. Eis aí um dos fundamentos das desigualdades social e racial
brasileira que perpetuou a propriedade nas mãos de quem já possuía quantidade
expressiva de recursos econômicos, elevou o preço da terra e impediu que fosse
adquirida por meio do trabalho, prejudicando de maneira incalculável os
trabalhadores rurais.
O processo de não
reconhecimento dos territórios indígenas e quilombolas e da negação do direito
à propriedade a esses grupos é classificado pela Prof. da UFBA, Tatiana Emília
Gomes de racismo fundiário[5]. Registra-se que nos debates da Constituição de
1946, chegou-se a aventar o reconhecimento dos territórios quilombolas e
indígenas, contudo, sob o fajuto argumento da onerosidade que tal política
geraria aos cofres públicos, a medida não constou do texto constitucional
aprovado.
Apenas com a Constituição de
1988, por meio da inserção do Art. 68, nos Atos das Disposições Transitórias
(ADCTs) é que se reconheceu o direito à propriedade da terra para as
comunidades quilombolas:
"Art. 68 Aos remanescentes
das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a
propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos
respectivos"
Porém, o dispositivo foi
regulamentado apenas em 2003, por meio do Decreto 4.887 de 20 de novembro de
2003, que estabeleceu o procedimento para identificação, reconhecimento,
delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades
dos quilombos. E como se não bastasse a incrível lentidão do Estado brasileiro
na promoção e efetivação dos direitos das comunidades quilombolas, o referido
Decreto foi alvo de Ação Direta de Inconstitucionalidade ajuizada pelo partido
Democratas[6].
A morosidade secular e
proposital do Estado na promoção de políticas públicas que viabilizassem às
comunidades quilombolas o direito à propriedade de suas terras chega a ser um
escárnio de tão aviltante que é, e produz efeitos deletérios materiais e imateriais
incalculáveis que subjugam a condição humana e, de vida desses povos que, por
vezes, estão a mercê da grilagem de terra e do poderio econômico dos grandes
latifúndios.
O Estado tem o dever de
zelar pelos direitos e princípios basilares do estado democrático de direito,
tais como, a igualdade, a dignidade humana, a construção de uma sociedade livre
e solidária e a autodeterminação dos povos conforme disposto nos Arts.1º, 2º e
3º da Carta Maior.
E em que pese já haver
transcorrido vinte anos da regulamentação desse direito, em 2019, a Coordenação
Nacional da Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombola-CONAQ
registrou que só cerca de 5% das 3,2 mil comunidades quilombolas reconhecidos
no Brasil são demarcados[7], verificando-se que a demora para demarcação de
terra extrapola o razoável.
Já no levantamento da Funai de
2019, haviam 118 territórios no país em diferentes fases do processo
demarcatório. Desse total, 74 estão em estágio mais avançado e estão
autorizados para serem demarcados, aguardando apenas homologação por meio de
decreto presidencial.
Registra-se que no governo do
ex-presidente Jair Bolsonaro não houve demarcação de terras indígenas ou
quilombolas.
Dessa forma, as desigualdades
em relação aos povos originários e às comunidades quilombolas precisam ser
equacionadas urgentemente e flexibilizar a restrição de aquisição de imóvel
rural por pessoa jurídica brasileira com a maior parte do capital social
pertencente a estrangeiros, contida no do artigo 1º, § 1º, da lei 5.709, de 7
de outubro de 1971, seguramente vai na contramão dessa necessidade premente,
além de reforçar a marginalização desses povos, acentuando ainda mais
desigualdades estruturais.
Para além das questões
jurídico-processuais e de soberania, há ainda os notórios efeitos prejudiciais
da ausência de controle sobre aquisição de terras por empresas de capital
majoritariamente estrangeiro, para o Estado e para a sociedade brasileira,
conforme pleiteado na ADPF 342, que vão desde soberania alimentar e do domínio
sobre a produção de alimentos necessários para a sobrevivência da população,
além de ser considerada mais uma forma de neocolonização, em que o país, sem
controle sobre essas áreas, delegaria a empresas e Estados estrangeiros a
decisão por priorizar atividades agrícolas em detrimento de outras.
Por fim, há que se pontuar que
a ausência de restrições teria como efeito prático a constituição de empresa
brasileira por estrangeiro interessado em adquirir propriedade rural no Brasil,
com seu controle acionário, para que, desta forma, pudesse adquirir terras de
forma irrestrita, fugindo das limitações legais que lhe seriam impostas caso
pretendesse realizar a compra diretamente, sem a intermediação de empresa
brasileira equiparada à estrangeira, em evidente burla ao Artigo 190 da
Constituição Federal.
A OAB tem inscrita em seu DNA
(art. 44 do EOAB) a defesa intransigente do estado democrático de direito, da
justiça social e dos direitos humanos e, a nosso ver, a estrangeirização
ilimitada de terras afronta a garantia da soberania nacional, da ordem
econômica, da distribuição de terras, da função social da propriedade, da
soberania alimentar e etc. São por essas razões que nossa atuação na ADPF 342 é
de fundamental importância.
__________
[1] Disponível aqui.
[2] NETO, Geraldo Miranda.
Estrangeirização de Terras: um estudo da atuação das entidades representativas
do agronegócio na disputa normativa sobre a aquisição e o arrendamento de
terras por estrangeiros. Geraldo Miranda Neto. Rio de Janeiro: Editora Lumen
Juris, 2020. A obra é fruto de sua dissertação de mestrado, disponível aqui.
[3] Idem 1.
[4] A Lei Eusébio de Queirós n.
581, de 4 de setembro de 1850, proibiu o tráfico de africanos para trabalho
escravo.
[5] Disponível aqui. Acessado
em 04.03.2023
[6] Em 2018, ADIn 3239
foi julgada improcedente pela maioria de votos (8) e declarou a validade do
Decreto 4.887/2003, garantindo, com isso, a titulação das terras ocupadas por
remanescentes das comunidades quilombolas, porém estabeleceu-se o marco
temporal de CF de 1988. Disponível aqui.
[7] Disponível aqui.
Silvia Souza é advogada, conselheira Federal da OAB/SP e
presidente da Comissão Nacional de Direitos Humanos do CFOAB. Pós-graduada em
Direitos Humanos, Diversidades e violência pela Universidade Federal do ABC.
Mestranda em Direito pela UnB.