Introdução
A propriedade fiduciária
imobiliária foi introduzida em nosso sistema pela lei Federal 9.514/1997
("Lei do SFI") e estabeleceu naturezas distintas para os direitos do
fiduciário e do fiduciante, bem como regramento especial e específico no que se
refere ao modo de execução dessa modalidade de direito real de garantia
imobiliária, em caso de inadimplemento do fiduciante.
Este estudo pretende analisar
se o Código de Defesa do Consumidor ("CDC") deve ou não ser aplicado
às relações fiduciárias imobiliárias, bem como avaliar a fixação do Tema 1095
pelo Superior Tribunal de Justiça ("STJ") e, especialmente a partir
dele, em quais circustâncias deve ou não ocorrer a aplicação do diploma
consumerista.
O tema relativo à aplicação do
CDC aos negócios jurídicos em que é contratada a propriedade fiduciária como
garantia real imobiliária não é novo. É preciso fazer a conjugação de determinados
elementos para uma melhor interpretação e conclusão sobre ser ou não possível
aplicar as regras consumeristas à referida espécie de garantia real fiduciária.
Alguns autores afirmam que se
deve aplicar o CDC às relações jurídicas decorrentes da alienação fiduciária de
coisa imóvel, em razão da expressa previsão contida no art. 53 da lei Federal
8.078/1990[1].
A leitura do dispositivo legal
referido indica expressamente a aplicação do CDC às garantias fiduciárias e
declara nulas as cláusulas que estabeleçam, nas situações de resolução
contratual por inadimplemento do devedor consumidor, a perda total das parcelas
pagas ao credor. Há, no aludido texto normativo, referência direta à alienação
fiduciária em garantia, geralmente instituída nos contratos de compra e venda
definitiva de imóveis apoiados em um segundo negócio jurídico de financiamento
concedido pelo vendedor ou por um terceiro (instituição financeira, por
exemplo) a ser pago pelo comprador em prestações sucessivas.
Eduardo Arruda Alvim[2] destaca
que o quanto estipulado pelo caput do art. 53 já seria inegavelmente nulo de
pleno direito pela regra geral contida no inciso IV do art. 51 do próprio CDC,
mas o legislador, na opinião do autor, ao especificar a regra da proibição das
perdas de todas as prestações ou do decaimento, pretendeu evitar controvérsias
nas interpretações de tais situações, provavelmente pela recorrência do tema no
cotidiano das relações de consumo.
José de Mello Junqueira[3]
afirma que inexiste qualquer antinomia entre o art. 53 do CDC e as disposições
da Lei do SFI, especialmente em relação ao § 2º do art. 27.
Já para Cláudia Lima
Marques[4], os contratos decorrentes da Lei do SFI estão incluídos no campo de
aplicação do CDC. Registra expressamente a autora:
Para o consumidor, parece-me,
salvo melhor juízo, altamente prejudicial a criação desta nova base de direito
real (propriedade fiduciária de imóvel), pois a possibilidade de alienação
fiduciária da 'sonhada casa própria' beneficia desnecessariamente o
fornecedor-credor, ao evitar o atual trâmite judicial exigido para as
hipotecas[5].
A autora deixa evidente sua
preocupação com a celeridade do procedimento extrajudicial. Chega a afirmar que
o credor tem um benefício desnecessário ao não utilizar o trâmite judicial
regido pelo Código de Processo Civil nas execuções hipotecárias.
Não entendemos que o
procedimento judicial da execução hipotecária represente maior segurança
jurídica ao devedor. Este, na execução da propriedade fiduciária, possui
ferramentas jurídicas suficientes para garantir sua defesa, pois poderá desde
purgar a mora perante o registrador imobiliário, usar seu direito de
preferência até o segundo leilão ou se valer do acesso ao Poder Judiciário em
qualquer etapa da execução da garantia fiduciária, se for o caso, conforme
garantia constitucional de acesso à justiça.
Vale consignar que, mesmo no
âmbito da execução judicial, o devedor não tem asseguradas garantias
semelhantes, a não ser pela via dos embargos. No processo de execução o devedor
é chamado para pagar a dívida e não para contestar o direito expresso no título
executivo.
O argumento de que o trâmite
judicial exigido para a execução das hipotecas é garantia de segurança ao
devedor parece não ser suficiente ao mercado atual, pois pensar que o fator
lentidão representaria segurança pode, em contrapartida, acarretar injustiças
ao credor na recuperação do seu crédito. Ademais, como dito, não sobra ao
devedor, para exercer o seu direito de defesa na execução forçada, outras
alternativas além do recurso de embargos, o qual dependerá, para ter efeito
suspensivo, de prova de que a execução já esteja garantida por penhora,
depósito ou caução suficientes (CPC, art. 919, § 1º).
É preciso lembrar que a própria
execução hipotecária foi alterada para imprimir maior celeridade na recuperação
do crédito. A lei Federal 5.741/1971, entre outras alterações, permite a
suspensão da execução somente mediante prova de pagamento da dívida feita em
sede de embargos. Mesmo na execução judicial da garantia real hipotecária,
pretendeu-se diminuir o tempo para satisfação do crédito.
Nesse contexto, importante
analisar se as disposições do CDC devem ou não ser aplicadas às relações
fiduciárias imobiliárias.
Clique aqui e confira a coluna na íntegra.
__________
[1] Esse dispositivo legal
estabelece que nos: [...] "contratos de compra e venda de móveis ou
imóveis mediante pagamento em prestações, bem como nas alienações fiduciárias
em garantia, consideram-se nulas de pleno direito as cláusulas que estabeleçam
a perda total das prestações pagas em benefício do credor que, em razão do
inadimplemento, pleitear a resolução do contrato e a retomada do produto
alienado".
[]2 ARRUDA ALVIM NETO, José
Manoel de; ALVIM, Thereza; ALVIM, Eduardo Arruda Alvim; MARINS, James. Código
do Consumidor comentado. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: RT, 1995. p. 261.
[3] JUNQUEIRA, José de Mello.
Alienação fiduciária de coisa imóvel. São Paulo: ARISP, 1998. p. 51.
[4] MARQUES, Claudia Lima.
Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 9. ed. São Paulo: RT, 2019. p.
493.
[5] Importa destacar, também, a
posição adotada por Oliveira Yoshikawa, da qual discordamos, no sentido de que
a consolidação da propriedade no fiduciário, em caso de inadimplemento do
fiduciante, por se desenvolver em mecanismo extrajudicial, tem natureza de
autotulela, pois não apresenta o efetivo controle de um terceiro com
imparcialidade que, no caso, seria o registrador imobiliário. Não concordamos
com essa posição, pois, além de o fiduciante ter acesso ao Poder Judiciário a
qualquer momento, o procedimento de alienação extrajudicial está exaustivamente
previsto na Lei do SFI, do qual o fiduciário não poderá se desviar se quiser
garantir uma perfeita e tranquila execução da garantia que contratou. Ademais,
no Código de Processo Civil, em especial pela redação dada aos arts. 825, II e
879, I, é possível notar que o legislador pretendeu possibilitar ao credor,
antes da venda em hasta pública (venda forçada), a alienação por iniciativa
particular, o que demonstra conformidade de entendimentos do legislador entre
os textos legais, pois a alienação extrajudicial que é feita nos termos da Lei
do SFI é considerada uma alienação privada. OLIVEIRA YOSHIKAWA, Eduardo
Henrique de. Execução extrajudicial e devido processo legal. São Paulo: Atlas,
2010. p. 40.
Fonte: Migalhas