Embora o tema tenha ressurgido
modernamente com destaque em decorrência da grande expansão que apresentaram os
ativos digitais - "criptoativos" -, sobretudo na última década, fato
é que a necessidade de se criar métodos para garantir a integridade e autoria
de um dado documento se faz presente há séculos nos serviços notariais e
registrais encarregados, justamente, de prover, com alto grau de acuidade, as
comunicações jurídico-sociais que por eles trafegam de "fé pública".
Em outras palavras, a tão
sonhada segurança da "blockchain", ou de outras tecnologias com o
mesmo intuito, tem seu correlato funcional "analógico" nos serviços
notariais e cartoriais[1]. Aquilo que modernamente se apresenta como
"criptografia" poderia, sem tanto glamour, ver suas raízes remontadas
- "versão beta" - à antiga "esfragística".
Não é coincidência que a
"Lei orgânica" dos notários e registradores - Lei 8.935, de 18 de
novembro de 1.994 -, a medida provisória que criou a Infraestrutura de Chaves
Públicas Brasileira - ICP-Brasil - e permitiu a assinatura digital reconhecida
em lei de forma ampla - MP 2.200-2, de 24 de agosto de 2001 -, e a recente lei
das assinaturas digitais - Lei 14.063, de 23 de setembro de 2020 - se refiram,
todas elas, à necessidade de garantir "a autoria e a integridade do
documento"[2], "a autenticidade, a integridade e a validade jurídica
de documentos em forma eletrônica"[3] ou a "publicidade,
autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos"[4].
De forma geral, todas as leis
visam, nesse aspecto, evitar a negação da informação pelo emissor, após ser ela
recepcionada pelo receptor[5]. Em outras palavras, permitem ao receptor ter a
segurança de que a informação recebida é exatamente aquela expedida, e foi, com
suficiente grau de certeza, emitida por aquele que se diz, no mesmo documento,
ter sido o seu autor.
Da mesma forma, tanto o sistema
"ICP-Brasil", quanto o sistema notarial possuem, em grandes linhas, a
mesma estrutura arquitetônica, sendo garantidos, em última análise, por uma
hierarquia de certificação pública que possui um grande banco de dados de seus
possíveis usuários[6].
Assim, pela estrutura ICP, os
usuários que desejam assinar documentos digitais pela forma mais ampla prevista
em lei são previamente cadastrados pelas "Autoridades de Registro - AR",
as quais se encontram vinculadas às "Autoridades Certificadoras - AC"
que, por fim, têm sua própria validação dada pela "Autoridade
Certificadora Raiz - AC raiz", sendo esta última o Instituto Nacional de
Tecnologia da Informação – ITI[7]. Uma grande rede de validação eletrônica
centralizada é construída com a captação de informações biográficas dos
possíveis usuários de forma descentralizada, ficando cada identidade vinculada
a uma chave cuja validade, em última análise, se encontra garantida pelo ente
público central.
Por sua vez, no âmbito dos
tabelionatos de notas, a identidade do possível usuário é verificada por um
escrevente capacitado, em face dos documentos de identificação previstos em
lei, e conforme critérios de documentoscopia e grafotecnia padrão, que permitam
auferir, com grande grau de exatidão, a veracidade das informações que, uma vez
compondo a base de dados de cada cartório, serão validamente utilizadas como
referência para a autenticação de todo e qualquer documento assinado com a mesma
grafia depositada, e independente mesmo da vontade de seu próprio autor[8].
Nesse sentido, tem-se uma rede descentralizada de recepção, certificada por
cada notário, enquanto profissional do Direito, fiscalizada pelo Poder
Judiciário, a formar um verdadeiro bem público, repositório de comparação a
toda a sociedade - independente da vontade do próprio depositante e signatário
em cada documento apresentado.
A descer ao nível de segurança
da autenticação do documento considerado individualmente, em relação à
ICP-Brasil, verifica-se que a maior parte da população se encontra alijada de
conhecimentos computacionais básicos, a desde logo restringir a capacidade de
fraude de um grande número de possíveis contrafatores. Ademais, a garantia
técnica da integridade do documento - leia-se, que o documento não foi alterado
entre a sua formalização e a sua recepção - e ao mesmo tempo de autoria, se dá
pela ação conjunta da "função hash" e da estrutura de chaves
públicas-privadas por ela criada. A chave privada é aquela responsável por
criptografar o documento assinado em cada assinatura por seu portador, gerando
concomitantemente um "hash" que se alteraria na hipótese de qualquer
mínima alteração de pedaço de informação digital assinado. Por sua vez, a chave-pública,
compondo, justamente, a infraestrutura de chaves-públicas, permite a
decriptografia por parte do receptor que, com base na cadeia de chaves emitidas
e validadas, saberá também que aquele documento foi criptografado pela
específica chave-privada atribuída a determinada pessoa na base pública de
certificação, tendo-lhe chegado sem alterações se o hash for compatível.
A grande vantagem da assinatura
eletrônica se encontra, assim, na integridade, pois o documento encaminhado não
poderá sofrer qualquer mínima alteração: até mesmo um "espaço" a mais
entre duas palavras quaisquer do texto assinado alteraria o seu
"hash" e consequentemente denunciaria sua falta de integridade. Por
outro lado, a grande desvantagem se encontra na comprovação de autoria, eis
que, embora a MP determine que a chave privada seja de "exclusivo
controle, uso e conhecimento" de seu titular[9], fato é que
lamentavelmente a maior parte dos certificados digitais em uso no país não se
encontra em mãos de seus titulares, estando, antes, em mãos de assessores e
contadores para o uso perante órgãos administrativo-estatais e fiscais,
recordando-se, inclusive, que até mesmo um Ministro da Justiça já teve
oportunidade de repudiar o uso de sua assinatura eletrônica certificada[10].
Por seu turno, os documentos
notarizados não possuem garantia de suas mínimas alterações, como a têm os
digitais por meio da função "hash". Nem por isso deixam de ser
adotadas medidas de autenticação que visam a sua integridade. Assim, uma série
de normas escritas e não escritas fazem pressupor a autenticidade de um
documento, de modo que sinais nem sempre explícitos ao cidadão médio sem
conhecimento específico se fazem verdadeiros denunciadores de maiores cuidados
que degradam a confiabilidade no documento. Diversas normas estaduais proíbem,
por exemplo, o reconhecimento de firma em documentos em branco, ou que
contenham, no contexto, espaços aptos à adulteração[11]. Igualmente, as mesmas
normas determinam que os sinais públicos sejam integrados em etiquetas,
assinaturas e selos que produzam uma única estrutura de difícil alteração,
inclusive com impossibilidade de retirada ulterior sem destruição de suas
partes[12]. Ao fim, muitas normas não escritas são também aplicadas no dia a
dia do tabelionato, como ligação de páginas por carimbos, a atestar a
continuidade do documento, pequenos erros propositais de grafia em sinais e
carimbos a atestar a autenticidade ao leitor treinado, entre outros. Por sua
vez, a contrafação da autoria do documento exigiria do contrafator ao menos alguns
dotes artísticos, que podem mesmo ter seu êxito bloqueado através de
subsequentes níveis de confiabilidade de autoria, como a exigência de
reconhecimentos de firma "por autenticidade" - em que a parte assina
em frente ao notário -, ou por meio de escrituras públicas - a forma mais
solene de garantia não só da autoria, mas da própria vontade.
Ao menos em relação à
assinatura manuscrita, não vige, ainda, o costume de se pedir para que se
assine pelo efetivo autor, como acontece em relação às assinaturas digitais, a
demonstrar que a própria sociedade vê em tais atos físicos uma maior solenidade
e os trata com maior cuidado.
Em síntese, as assinaturas
digitais constroem, por meio de uma estrutura tecnológica, documentos de
integridade quase incontestável e de autoria às vezes duvidosa, sem qualquer
qualificação da vontade emanada. Por sua vez, as assinaturas manuscritas contam
com métodos analógicos que nem sempre garantem a integridade do documento, mas
que encontram em sua autoria uma maior assertividade, podendo, inclusive,
atestar a qualificação da vontade livre e informada a depender do método
utilizado para sua coleta.
Nesse sentido, o que se tem do
manuscrito ao digital é uma evolução técnica, mas não uma alteração de
substância, ambos buscando certificar a autoria e integridade do documento que
precisa circular e ser recepcionado com alta confiabilidade.
Contudo, mesmo esta evolução é
parcial, e atinge ainda apenas parte do afazer notarial.
Nesse aspecto, embora a
evolução tecnológica seja capaz de construir um arcabouço mais ou menos
confiável para a função autenticadora exercida pelos notários no mundo
"analógico", ainda não se encontrou substituto para a função
qualificadora, em específico, aquela que qualifica efetivamente a vontade das
partes no ato notarial, ou seja, os aspectos "intrínsecos" da autoria
negocial, e não apenas a autoria documental enquanto elemento
"extrínseco", tão somente probatório.
Denuncia essa diferença o fato
de que mesmo os notários, ao transporem parte de sua atividade para o meio
digital, na forma das chamadas "assinaturas digitais notarizadas"
pelo módulo "e-not assina", reconhecerem que "Os atos notariais
de reconhecimento de firma e da assinatura eletrônica em documento digital se
limitam à verificação da assinatura no documento com base naquela depositada em
Tabelionato ou correspondente ao certificado digital notarizado,
respectivamente, sem que haja análise da legalidade e conformidade jurídica do
conteúdo do negócio ou ato jurídico no qual a assinatura física ou digital
esteja inserida"[13].
Ora, o específico da função
notarial estaria, assim, não na construção do documento em si, enquanto
material externo representativo do fato jurídico[14], mas na qualificação
interna do próprio ato jurídico (lato sensu) no documento representado. Em
outras palavras, no cuidado com a vontade juridicamente relevante para o
Direito, e não tão somente na forma como ela se documenta. Se a confiabilidade
decorrente do afazer notarial poderia eventualmente ser substituída pela confiança
no sistema eletrônico, como uma forma adequada de certificação autenticadora, o
mesmo não pode ser dito ainda da qualificação do negócio enquanto manifestação
jurídica das vontades, ao menos não enquanto não se outorgue a uma máquina, por
exemplo, a análise sobre a "liberdade" e grau de consentimento
informado de um ser humano[15].
A verdadeira "função
notarial" não é mecânica - embora seja técnica em outro sentido. O notário
é, antes de tudo, profissional de confiança da parte[16], dotado de saber jurídico
especializado, que qualifica não apenas a identidade e certifica os fatos, mas,
sobretudo, qualifica a vontade livre e isenta de vícios e seus momentos de
atuação no mundo jurídico. A certificação é poder instrumental e acessório. O
cerne da atividade é a formatação, muitas vezes artesanal, do negócio em cada
manifestação. Na interação entre sistema psicológico-humano e sistema
jurídico-social, o notário é aquele encarregado de "conoscere il volere
che colui che vuole non conosce: ecco il drama del notaio"[17].
Em outro sentido, como já
alertado, na maior parte das vezes não é verdadeiro que o responsável pelo
certificado digital de determinado titular seja, como queria a lei, o próprio
titular. E não é por outra razão que uma grande parte dos países do globo não
preveja a regulamentação de assinaturas digitais quando os atos dizem respeito
a negócios tão centrais como os imobiliários[18]. Nesse aspecto, sempre vai ser
necessário o questionamento de quanto se quer passar ao digital aquilo que,
embora talvez com alguns inconvenientes, é preciso reconhecer, se faria, de
forma muito mais segura, de modo analógico[19].
Isso não quer dizer que mesmo o
cerne da atividade notarial não deva sofrer os influxos da era digital. O que
se deve buscar é a digitalização do notário - e não a sua substituição pela
tecnologia[20]. Assim a indispensável audiência, ainda que por
videoconferência, prevista para as "escrituras eletrônicas" pelo
Provimento nº. 100, de 26 de maio de 2020, do Conselho Nacional de Justiça, que
criou a plataforma "e-notariado". Pode-se levantar questionamentos se
a mencionada videoconferência comporta o mesmo grau de certificação que a
assinatura física com colheita da manifestação de vontade in loco[21], mas ao
menos ainda se tem, mesmo que por vias digitais, a certificação da vontade
humana por outro sistema humano.
E assim o é inclusive por uma
tomada de decisão filosófico-política fundamental, o que já é matéria para
outro texto.
__________
[1] "We define an
electronic coin as a chain of digital signatures", já diria o seminal
paper de "Satoshi Nakamoto" para o bitcoin. V. Bitcoin: A
Peer-to-Peer Electronic Cash System. Disponível em
https://bitcoin.org/bitcoin.pdf. Acesso em 11.01.2023.
[2] Art. 4º, inciso II, da Lei
14.063/2020
[3] Art. 1º da MP 2.200-2
[4] Art. 1º da Lei 8.935/1994
[5] Trata-se, assim,
especialmente, de uma modalidade de comunicação entre ausentes, o que, para o
âmbito registral se espalha por toda a sociedade - "quod omnes
tangit" -, como terceiros obrigados a pressupor a validade das informações
que adentram ao fólio. Sobre a questão da comunicação, v. Luhmann, N. A
improbabilidade da comunicação. Trad. Anabela Carvalho. 4. Ed. Lisboa: Vega,
2006. Sobre a função registral e notarial como formação de repositório de
confiança pressuposta, v. Brandelli, L. Registro de imóveis: eficácia matéria.
Rio de Janeiro: Forense, 2016.
[6] Sobre a função das
assinaturas eletrônicas no âmbito da "ICP-Brasil" e sua comparação
com assinaturas físicas, v. CAMPOS, R. Segurança jurídica e assinaturas
digitais. Disponível aqui, acesso em 06.03.2023. Em sentido semelhante, v.
CAMPILONGO, C. Fé pública, segurança jurídica e assinatura digital. Acesso em
06.03.2023. Também com críticas pertinentes às assinaturas que não seguem o mesmo
padrão, v. JACOMINO, S. Assinaturas eletrônicas e a lei 14.382/2022. Disponível
aqui. Acesso em 06.03.2023.
[7] Arts. 7º, 6º, 5º e 13 da MP
2.200-2.
[8] Os reconhecimentos de firma
"por semelhança" podem ser provocados por qualquer pessoa, não
dependendo da manifestação da vontade do signatário.
[9] Art. 6º, parágrafo único,
da MP 2.200-2
[10] Moro deixa Ministério da
Justiça e denuncia preocupação de Bolsonaro com
inquéritos e Bolsonaro admite erro e republica sem assinatura de Moro
a exoneração de diretor da PF. Acesso em 06.03.2023.
[11] V. por exemplo, item 190
do Capítulo XVI das Normas de Serviço dos Cartórios Extrajudiciais da
Corregedoria Geral de Justiça do Estado de São Paulo.
[12] Itens 23 e 26 do Capítulo
XVI das Normas de Serviço dos Cartórios Extrajudiciais da Corregedoria Geral de
Justiça do Estado de São Paulo.
[13] Enunciado 50 da I Jornada
de Direito Notarial e Registral do Conselho da Justiça Federal do Superior
Tribunal de Justiça.
[14] Sobre o conceito de
documento, o clássico GUIDI, P. Teoria giuridica del documento. Milão: Giuffré,
1950.
[15] E daí, por exemplo, as
recentes críticas ao desenvolvimento imponderado da tecnologia de I.A.
Disponível aqui. Acesso em 12.04.2023
[16] E daí a sua livre escolha
nos termos do art. 8º da Lei 8.935/94.
[17] V. SATTA, S. Poesia e
veritá nella vita del notaio. p. 548.In: Vita Notarile: Studi problemi e
lettere del notariato. Rivista di Diritto e pratica contrattuale e tributaria.
Indice Generale. 1955. Palermo: Edizioni Fiuridiche Italiane. p. 543-550. Não à
toa, na linha de outros italianos, classifica o autor a atividade notarial como
um "giudizio". Assim, "Questa infatti è la singolatiá del
giudizio notarile rispetto a tutti gli altri giudizi, che è la volontá dele
parti che si assume come giudizio; anzi, il giudizio consiste próprio
nell'assunzione di questa volontà come volontà dell'ordinamento, (...) Sotto
questo aspetto si può dire che le parti sono i ministri dell'atto, allo stesso
modo come, secondo il diritto canonico, gli sposi sono i ministri del
matrimonio." (p. 547)
[18] V. GRINGS. M. G. Sistemas
de assinatura eletrônica: possíveis lições do direito comparado.
[19] Um questionamento que, em
nível de sociedade, pode ser estendido até mesmo para possíveis riscos
decorrentes do mundo digital à Democracia. V. VÉLIZ, C. Privacidade é poder:
Por que e como você deveria retomar o controle de seus dados. Traduçaõ de
Samuel Oliveira. São Paulo: Contracorrente, 2021.
[2]0 V. DUARTE, A. Avatar do
tabelião: atuação do notário no ambiente virtual.
[21] Mutatis mutandis, boa
parte das críticas às videoconferências em tema processual penal, com a devida
adaptação tendo em vista não se estar diante do exercício do ius puniendi
estatal, poderia se aplicar à regulamentação das escrituras por
videoconferência. V. MALAN, D. Advocacia criminal e julgamento por
videoconferência.
Fonte: Migalhas