Uma das ferramentas mais inovadoras e intrigantes da
tecnologia, sem dúvida, é a Inteligência Artificial (AI). Em verdade, é um
conceito guarda-chuva que agrega várias tecnologias, como machine
learning, rede neural, robótica, dentre outros. Porém, importante
perceber que o termo “inteligência” quando se refere à máquina, não se confunde
com a inteligência humana, que tem como base a experiência existencial (nascer,
viver, conviver, morrer) – o que a inteligência artificial (ainda?) não possui.
O que é, então, a Inteligência Artificial? Em um limitado
conceito, é uma função computacional de gerar soluções ou resultados
automatizados, a partir das informações que estiverem disponíveis em uma
determinada base de dados.
Mas o que nos traz aqui é a convergência ou o impacto da
IA no direito sucessório, mais precisamente no conceito de herança – um convite
à reflexão.
Vejamos o exemplo do astro Kurt Cobain, que foi um famoso
cantor, compositor, guitarrista e fundador da banda Nirvana. Falecido
precocemente, em 1994, deixando uma legião de fãs, sendo uma das celebridades
já falecidas que mais lucraram nos últimos anos. Recentemente, ferramentas de
Inteligência Artificial processaram todas as músicas cantadas por ele e sua
banda Nirvana, criaram uma nova obra com letra, música, arranjos, fundo musical,
com a voz do cantor e sua banda, que também deixou de existir na mesma época.
Mas vejam, essa obra não foi deixada no acervo do cantor ou da banda. Foi
criação nova, gerada quase três décadas depois da abertura da sucessão.
Agora, vamos à problemática jurídica: herança é o
“conjunto de bens e de direitos deixado por uma pessoa que faleceu”, conforme
preceitua o Dicionário de Direito de Família e Sucessões escrito por nosso
presidente do IBDFAM, Rodrigo da Cunha Pereira (2ª.ed. Saraiva). Significa
dizer que o acervo hereditário é referente ao resultado da produção que a
pessoa gerou durante sua vida.
No entanto, no exemplo acima, Kurt Cobain não criou e nem
deixou essa obra, nunca cantou essa música. Na realidade, a utilização de IA
“gravou” uma música inédita 29 anos após o cantor ter falecido.
Chegou o momento da reflexão: considerando que a herança
é o acervo criado e deixado pelo falecido, teriam os herdeiros do cantor o
direito de herança sobre uma obra que não existia quando do advento de sua
morte, gerada quase 30 anos depois? Ou seja, será que a Inteligência
Artificial está a alterar o conceito de herança?
Agora, analisemos a recente manchete veiculada na CNN
Brasil: “App de Inteligência Artificial permite conversar com os mortos”.
Trata-se de uma IA avançada, desenvolvida por uma empresa que compila voz e
gestos, além de toda a história de vida da pessoa falecida. A partir daí, é só
perguntar que a “pessoa falecida” irá responder como se estivesse viva, porém
“morando” dentro da plataforma digital, que pode ser acessada de qualquer lugar
e a qualquer instante.
Nos ensinamentos de Maria Berenice Dias, uma das juristas
de maior respeitabilidade no país, o direito sucessório precisa ser
compreendido considerando não apenas sua dimensão técnica mas, também, sua
dimensão social e cultural (Manual das Sucessões, 8ª.ed, Juspodivm). Nessa
perfeita ótica, se faz necessário considerar o advento da tecnologia como
impactante nas relações sociais, que provoca novas regulações e conceitos
jurídicos. Exemplos não faltam, como a própria herança digital, a proteção de
dados no post mortem, criptoativos, entre tantos outros.
Assim, além de repensarmos o conceito de herança no
advento da Inteligência Artificial, estaria ela, nos levando a novos patamares
de concepção jurídica para a própria morte e a um novo contorno do Direito das
Sucessões? Independente da resposta a que cheguemos, tenho como certo que
precisamos continuar debatendo os novos conceitos e os novos Direitos que
surgem com o acelerado avanço da tecnologia, especialmente da Inteligência
Artificial.
Referências:
Patrícia Corrêa Sanches: Presidente da Comissão Nacional
de Família e Tecnologia do IBDFAM
Fonte: IBDFAM