Com a publicação do Regulamento
de Dosimetria das Sanções Administrativas [1], a Autoridade Nacional de
Proteção de Dados (ANPD) tem ao seu alcance todos os instrumentos necessários
para exercer seu poder sancionador. O texto tem por objetivo a regulamentação
dos artigos 52 e 53 da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) e visa o estabelecimento
de parâmetros para aplicação das sanções administrativas.
Antes da publicação do
documento, as sanções não estavam sendo aplicadas. Hoje, mais do que nunca, a
LGPD deverá ser observada não apenas para evitar a aplicação de sanções
administrativas, mas também em decorrência da pressão de mercado, em especial
dos grandes players, que passarão a cobrar daqueles menores um nível
satisfatório de conformidade para realização de parcerias e novos negócios.
Passando à análise das
disposições, o artigo 3º, §2º do Regulamento, estabelece que, antes da
aplicação de determinadas sanções, a ANPD conferirá prazo para manifestação do
principal regulador setorial com competência sancionatória ao qual se submete o
controlador. Destaca-se, entretanto, que a determinação não é aplicável a todas
as sanções, contemplando apenas a suspensão parcial do funcionamento do banco
de dados, a suspensão do exercício da atividade de tratamento e a proibição
parcial ou total do exercício de atividades relacionadas a tratamento de dados.
Nesse tocante, cumpre ratificar
a relevância da manifestação de órgãos reguladores setoriais na hipótese de
processo administrativo sancionador que pese sobre agentes de tratamento
prestadores de serviços essenciais à população, como o caso de energia e
telecomunicações.
Imagine um tratamento de dados
pessoais que dê causa a uma infração, cuja base de dados original seja o
próprio banco de dados de clientes. A suspensão, mesmo que parcial, do
funcionamento desse ambiente, seria capaz de gerar danos irreparáveis ao
titular de dados e à ordem pública. Nesse sentido, uma análise de impacto
oriunda do agente regulador setorial é, de fato, primordial.
Por outro lado, essa
possibilidade deveria ser estendida a qualquer das sanções elencadas,
garantindo que, dentro do processo de fiscalização, a ANPD esteja alinhada com
a entidade setorial ao qual o controlador está submetido. Ainda, para fins de
segurança jurídica, e por força do princípio da legalidade, é importante a
formalização de um acordo ou convênio entre a ANPD e o ente setorial que
intervirá dentro do processo.
Outro ponto de atenção diz
respeito ao artigo 8º que dispõe sobre a classificação das infrações em leve,
média e grave, um dos dispositivos mais polêmicos da norma. O §1º do artigo 8º
elenca os critérios para definição da infração leve, dispondo que será
configurada como tal por exclusão, ou seja, quando não for classificada como
média ou grave. A disposição era ainda mais preocupante no texto inicial, visto
que os conceitos de infração eram genéricos e pouco ilustrativos.
Assim, foi sugerido, no âmbito
da Audiência e Consulta Públicas realizadas pela ANPD, a inclusão de como
seriam interpretados os conceitos de infração média associados a "afetar
significativamente interesses e direitos fundamentais dos titulares de dados
pessoais” e "tratamento de dados pessoais em larga escala".
O texto publicado no
regulamento, felizmente, contemplou a sugestão. A Autoridade entendeu que
"afetar significativamente interesses e direitos fundamentais" seria
equivalente a "atividade de tratamento puder impedir ou limitar, de
maneira significativa, o exercício de direitos ou a utilização de um serviço,
assim como ocasionar danos materiais ou morais aos titulares, tais como
discriminação; violação à integridade física; ao direito à imagem e à
reputação; fraudes financeiras ou uso indevido de identidade, desde que não
seja classificada como grave".
De todo modo, ainda que a
definição tenha representado um avanço, o trecho a respeito dos danos morais
abre espaço para a subjetividade, futura judicialização e a própria
inexistência de infrações leves.
Nesse caso, parece salutar abrir
parênteses para rememorar a experiência da União Europeia que, ao dispor sobre
efeitos significativos aos titulares de dados — no cenário de aferição do risco
de uma atividade de tratamento —, retrata o conceito indeterminado através de
três máximas parciais: 1) quando os efeitos afetam significativamente um
comportamento ou uma decisão; 2) possuem um efeito de longo prazo ou duradouro
e, no caso mais extremo, 3) levam à exclusão ou discriminação do titular dos
dados, o que, em primeira vista, poderia conceder contornos mais robustos ao
tema.
No novo texto, o tratamento de
larga escala foi deslocado das infrações médias no §2º para o §3º, que trata
das infrações graves. Neste último, estabeleceu-se como "tratamento de
dados pessoais em larga escala" aquele "caracterizado quando abranger
número significativo de titulares, considerando-se, ainda, o volume de dados
envolvidos, bem como a duração, a frequência e a extensão geográfica do
tratamento realizado", na linha do que já havia sido estabelecido na
Resolução nº 2 de 2022 da ANPD [2], que trata sobre os agentes de pequeno
porte.
O parágrafo 3º do artigo 8º, a
seu turno, dispõe que a infração será considerada grave quando verificada uma
das hipóteses de classificação da infração em média cumulada com, ao menos, uma
das hipóteses previstas nas alíneas. Aqui, o receio principal sobre o texto
discutido no âmbito da Consulta Pública era que, considerada a abrangência da
classificação de infrações médias, muitas delas poderiam ser definidas como
graves, perdendo a objetividade do enquadramento e gradação das sanções. Nesse
tocante, houve algum avanço na contextualização das infrações médias, mas as
leves continuam sendo classificadas por exclusão, sem que haja um rol
exemplificativo.
A título de ilustração, outras
agências, como a Ancine (Instrução Normativa nº 109/2012 [3]) e a Antaq
(Resolução nº 3259)[4], auferem a gravidade da infração a partir das
circunstâncias agravantes e atenuantes. A Aneel, apesar de não utilizar o
método de classificação de gradação da infração, utiliza o conceito de
gravidade disposta em níveis, conforme a área de competência e o objeto da ação
fiscalizadora (artigo 22, §3º, da RN nº 846/2019 [5]).
Ainda sobre as hipóteses
deflagradoras de uma infração em nível grave, chamam atenção especial as
alíneas "e" e "f", §3º, I do artigo 8º, que dizem respeito
ao 1) tratamento de dados sem amparo em uma das bases legais da LGPD e nos
casos em que 2) do tratamento decorrem efeitos discriminatórios ilícitos.
Ora, o tema bases legais ainda é
razão de debate em locais com maturidade bem superior à brasileira, como o caso
da União Europeia, o que robustece a preocupação quanto ao embate conceitual de
uma atividade de tratamento "sem amparo em base legal" versus
"discordância, por parte da ANPD, quanto à base legal adotada". Da
mesma forma, o flagelo da "discriminação" já fora expressamente
citado em âmbito das infrações médias, de modo que sua repetição no contexto
das hipóteses de infração alta causa confusão e incerteza.
Mais à frente, o inciso II do
artigo 8º, §3º, estipula que a sanção será considerada de natureza grave quando
"constituir obstrução à atividade de fiscalização", sem definir,
contudo, o que caracterizaria essa obstrução. Cabe esclarecer que a Resolução
nº 1 de 2021 da ANPD [6], estabelece, em seu artigo 5º, que se trata de dever
dos agentes regulados a disponibilização de informações à ANPD acerca do
tratamento de dados realizado. Na sequência, o artigo 6º da mesma Resolução
prevê que "o não cumprimento dos deveres estabelecidos no artigo 5º poderá
caracterizar obstrução à atividade de fiscalização".
Da análise das disposições,
verifica-se a possibilidade de o direito de defesa do agente regulado em
eventual procedimento de fiscalização acabar sendo confundido com obstrução à
fiscalização, sendo necessário um detalhamento adicional a esse respeito para
fins de segurança jurídica. É importante garantir que o agente regulado tenha
seu direito à ampla defesa respeitado no procedimento fiscalizatório, sem que
isso seja considerado como obstrução à atividade de fiscalização, e,
consequentemente, a infração seja classificada como de natureza
grave.
O artigo 15, a seu turno, dispõe
sobre a dosimetria para aplicação de multa simples, apresentando grandes
atenuantes para os casos de cessação da infração. Por outro lado, verifica-se
que, na prática, a comprovação da efetiva cessação de um incidente de segurança
tende a ser extremamente difícil. Assim, considerando a complexidade de tal
demonstração, deve caber à ANPD a averiguação e comprovação do cumprimento de cessação
da infração, bem como o ônus da prova. Afinal, na prática, a comprovação por
parte do agente que a violação cessou pode ser uma prova negativa e/ou
impossível de ser produzida.
A CVM, por exemplo, considera
como atenuante a confissão do ilícito ou a prestação de informações relativas à
sua materialidade (Instrução nº 45/2021) [7]. A Antaq também elenca formas de
cooperação como atenuantes, tais como o arrependimento eficaz e espontâneo do
infrator antes da decisão no processo ou de determinação da autoridade
competente; a confissão espontânea da infração, antes de sua identificação; a
comunicação prévia pelo infrator do perigo iminente; e a prestação de
informações verídicas e relevantes sobre a materialidade da infração (Resolução
nº 6/2016) [8]. A Aneel, por sua vez, já traz, inclusive, os percentuais de
redução da multa no caso de cessação espontânea da infração e reparação total
do dano ao serviço e aos consumidores ou usuários (RN nº 846/2019) [9].
O artigo 16, por sua vez,
estabelece de forma abrangente, as hipóteses de aplicação da multa diária,
utilizando a cessação da infração para estabelecimento da penalidade. Nesse
sentido, é necessária a limitação e definição objetiva da aplicação da sanção,
para que a medida seja aplicada em circunstâncias concretas.
O artigo 20 trata da
publicização da infração, estabelecendo que a ANPD poderá determinar sua
divulgação pelo infrator. Nesse tocante, seria importante a complementação do
dispositivo instituindo que, na divulgação, deverão ser observados a privacidade
e intimidade do titular, bem como os segredos comerciais e industriais que
possam ter sido incluídos nos autos do processo administrativo, na forma do
artigo 6º, IV, da LGPD e em linha com o previsto pela Lei de Acesso à
Informação.
Ainda assim, a própria natureza
da sanção é questionável. Dada a relevância que o tema proteção de dados
pessoais possui atualmente, dificilmente uma sanção — devidamente publicada no
Diário Oficial da União — não será amplamente divulgada pela mídia geral
especializada. Assim, em um livre exercício de futurologia, não seria ilusório
imaginar que boa parte dos procedimentos administrativos abertos pela ANPD
serão oriundos de casos de incidentes de segurança com dados pessoais, os
quais, naturalmente, chegarão ao conhecimento dos titulares.
O artigo 23 estipula que a ANPD
poderá determinar ao infrator a eliminação dos dados pessoais a que se refere a
infração. Sob essa ótica, fez falta a complementação do dispositivo a partir do
estabelecimento de exceções à eliminação dos dados, a fim de contemplar
situações em que há a impossibilidade de o controlador realizar o descarte
imediato, como, por exemplo, em decorrência de prazos prescricionais previstos
em lei, obrigações legais/regulatórias, ou risco de lesão ao titular cujos
dados estão sendo tratados.
A mesma lógica poderia ser
estendida às penalidades previstas nos artigos 24, 25 e 26, que abordam,
respectivamente, a suspensão parcial do funcionamento do banco de dados, a
suspensão do exercício de atividade de tratamento e a proibição parcial ou
total do exercício de atividades relacionadas a tratamento de dados.
Por fim, o artigo 27 do
Regulamento apresenta a possibilidade de a ANPD afastar a metodologia de
dosimetria apresentada pelo referido regulamento quando for constatado
"prejuízo à proporcionalidade entre a gravidade da infração e a
intensidade da sanção", o que revela verdadeira esquizofrenia. A
determinação traz insegurança jurídica à aplicação das sanções, considerando
que a finalidade do regulamento é, justamente, indicar critérios que asseguram
a proporcionalidade entre as infrações cometidas e as sanções aplicáveis.
O trabalho realizado pela ANPD
representa um grande passo para a construção de uma cultura de proteção de
dados no país, mas o caminho a ser percorrido ainda é longo. Essa breve análise
mostra que, em breve, o regulamento precisará ser atualizado na medida em que
as sanções forem aplicadas e a dosimetria seja testada no mundo real, sobretudo
no Poder Judiciário. Nesse sentido, esperamos contribuir para o desenvolvimento
progressivo do debate e para o aperfeiçoamento das normas elaboradas pela
Autoridade.
[1] Disponível em:
https://www.gov.br/anpd/pt-br/assuntos/noticias/anpd-publica-regulamento-de-dosimetria/Resolucaon4CDANPD24.02.2023.pdf.
– Acesso em 27.02.2023.
[2] Disponível em:
https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/resolucao-cd/anpd-n-2-de-27-de-janeiro-de-2022-376562019
- Acesso em 27.02.2023.
[3] Disponível em:
https://antigo.ancine.gov.br/pt-br/legislacao/instrucoes-normativas-consolidadas/instru-o-normativa-n-109-de-19-de-dezembro-de-2012#:~:text=Regulamenta%20o%20processo%20administrativo%20para,20%20de%20julho%20de%202004.
– Acesso em 27.02.2023.
[4] Disponível em:
http://web.antaq.gov.br/portalv3/pdfSistema/Publicacao/0000008678.pdf - Acesso
em 28.02.2023.
[5] Disponível em:
https://www.legisweb.com.br/legislacao/?id=378638. – Acesso em: 27.02.2023.
[6] Disponível em:
https://www.gov.br/anpd/pt-br/documentos-e-publicacoes/regulamentacoes-da-anpd/resolucao-cd-anpd-no1-2021.
Acesso em: 27.02.2023.
[7] Disponível em:
https://conteudo.cvm.gov.br/legislacao/resolucoes/resol045.html#:~:text=Disp%C3%B5e%20sobre%20o%20rito%20dos,de%2030%20de%20abril%20de.
– Acesso em 27.02.2023.
[8] Disponível em:
https://www.abtp.org.br/upfiles/legislacao/Resolucao-Normativa-Antaq-6-de-2016.pdf.
– Acesso em 27.02.2023.
[9] Disponível em:
https://www.legisweb.com.br/legislacao/?id=378638. — Acesso em: 27.02.2023.
[1] Sócio das áreas de Resolução
de Disputas e de Proteção de Dados no BBL | Becker Bruzzi Lameirão Advogados.
Diretor de Novas Tecnologias no Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem
(CBMA), atua com foco em litígios contratuais oriundos de setores regulados.
Organizador dos livros O Advogado do Amanhã: Estudos em Homenagem ao professor
Richard Susskind; O fim dos advogados? Estudos em homenagem ao professor
Richard Susskind, vol. 2; Regulação 4.0, vol. I e II; Litigation 4.0; e
Comentários à Lei Geral de Proteção de Dados, todos publicados pela Revista dos
Tribunais.
Beatriz Haikal é sócia da área de Proteção de
Dados e Regulatório de Novas Tecnologias no BBL - Becker Bruzzi Lameirão
Advogados. pós-graduada em Estado e Sociedade pela Associação do Ministério
Público do Estado do Rio de Janeiro (Amperj), Certified Information Privacy
Manager (CIPM) pela International Association of Privacy Professionals (Iapp),
IAPP Member, OneTrust Certified Privacy Professional e professora convidada de
instituições como Ibmec, Curso Fórum e Faculdade Cers.
Christian Kratochwil é Certified Information Privacy
Manager (CIPM), Certified Information Privacy Professional/Europe pela
International Association of Privacy Professionals (IAPP) e encarregado pelo
tratamento de dados pessoais da Oi S/A.
Daniel Becker é sócio do BBL Advogados,
diretor de novas tecnologias no Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem
(CBMA), membro das Comissões de Assuntos Legislativos e 5G da OAB-RJ, advogado
de resolução de disputas com foco em litígios contratuais oriundos de setores
regulados, professor convidado de diversas instituições, palestrante frequente
e autor de diversos artigos publicados em livros e revistas nacionais e
internacionais sobre os temas de arbitragem, processo civil, regulação e
tecnologia, organizador dos livros O Advogado do Amanhã: Estudos em Homenagem
ao professor Richard Susskind, O fim dos advogados? Estudos em Homenagem ao
professor Richard Susskind, vol. II, Regulação 4.0, vol. I e II, Litigation 4.0
e Comentários à Lei Geral de Proteção de Dados, todos publicados pela Revista
dos Tribunais.
Fonte: ConJur