Sem
previsão legal, situações contemporâneas e cotidianas chegam diariamente ao
Judiciário. Enquanto o Legislativo não regulamenta aspectos relacionados às
uniões homoafetivas, inseminação caseira e reprodução assistida, diversos
casais recorrem à via judicial para ter seus direitos garantidos.
Em
entrevista ao IBDFAM, especialistas avaliam os desafios da ausência legislativa
e a urgente necessidade de adequação. Confira, a seguir:
Tecnologias de reprodução assistida –
Definição de paternidade e responsabilidade financeira
“É
um cenário que potencializa a judicialização e é prejudicial a absolutamente
todas as partes envolvidas: médicos, pacientes beneficiários das técnicas,
crianças nascidas por meio delas, doadores de material genético e mulheres que
se disponham a ceder temporariamente seu útero para uma gestação solidária,
etc”, observa.
Conforme
o especialista, a situação é ainda mais delicada em razão da rápida evolução
das técnicas e tecnologias disponíveis. As propostas de projetos de lei,
segundo ele, também não acompanham o ritmo das mudanças e os efeitos por elas
produzidos.
“Ante
à ausência de previsão legal adequada, é natural que tenhamos decisões
influenciadas por fatores externos, como crenças pessoais e convicções
religiosas, levando ao pior cenário possível: o da imprevisibilidade”, aponta.
De
acordo com o diretor nacional do IBDFAM, ainda há espaço para interpretações
díspares, mesmo com a existência de normas deontológicas, como a Resolução
2.320/2022 do Conselho Federal de Medicina – CFM. “O que se observa é a
necessidade de estabelecimento de padrões, pois a Lei de Planejamento Familiar
é mais principiológica que dogmática.”
O
diretor nacional do IBDFAM entende como necessária a promoção de discussões
mais profundas sobre as consequências das possibilidades tecnológicas e seus
efeitos práticos nas relações familiares para adequar o Direito das Famílias e
das Sucessões. Assim, “estabelecendo marcos temporais e regras claras para
lidar com os aspectos jurídicos decorrentes do uso de técnicas de procriação
medicamente assistida.”
“Hoje
lidamos com questões que surgem antes do nascimento – desde a
representatividade de embriões criopreservados e seu status jurídico; até
depois da morte, com a possibilidade de reprodução post-mortem décadas após o
falecimento dos genitores, e com o nascimento de filhos que têm direitos iguais
aos filhos preexistentes, sem regras claras a respeito do tema e suas
consequências”, lembra o especialista.
Ele
comenta: “Há que se compatibilizar o ordenamento – inclusive e principalmente o
constitucional – com a Medicina do mundo real”.
Uniões homoafetivas – direitos de herança,
visitação e partilha de bens
Segundo
o advogado Paulo Iotti, membro do IBDFAM, aspectos de herança, visitação e
partilha nas uniões homoafetivas têm tido o mesmo tratamento de relações
heteroafetivas desde o reconhecimento pelo Supremo Tribunal Federal –
STF, em 2011. “Como a decisão de controle concentrado e abstrato de
constitucionalidade tem força de lei, não se teve mais questionamentos desde
então.”
No
entendimento do especialista, a importância da lei positivar os direitos
reconhecidos pelo STF se refere à segurança jurídica. “É mais difícil mudar uma
lei que uma decisão judicial, pois, em tese, mudança de composição do Tribunal
pode gerar revogação de direitos.”
“Positivar
na lei mostra maior maturidade democrática da sociedade. Afinal, democracia não
é ditadura da maioria, mas regime jurídico-político em que a maioria respeita
direitos básicos de cidadania das minorias, garantidos na Constituição e nos
tratados internacionais de direitos humanos. O direito à não discriminação
aplicado aos diversos temas decididos pelo STF, no caso”, afirma.
Iotti
complementa: “As decisões do STF são democráticas, pois impõem respeito à
Constituição”. Ele frisa, porém, a importância para a democracia de que a
cidadania das minorias sociais não dependa só do Judiciário.
“Embora
o princípio da igualdade imponha a analogia para garantia de direitos a uniões
homoafetivas e a famílias LGBTI+, em geral, falar do casamento civil e da união
estável como união entre pessoas, sem definir gênero, é um passo importante”,
afirma.
O
advogado aponta a importância pedagógica de um dispositivo que estabeleça que
não se negarão direitos a pessoas com base em orientação sexual ou identidade
de gênero. “Especialmente para pessoas trans, que não podem ter o direito à
parentalidade negado pelo simples fato de viverem sua identidade de gênero.”
“Mas,
assim como a Corte Interamericana decidiu que não se pode retirar a guarda de
filhos/as a partir de estereótipos sobre a homossexualidade e as orientações
sexuais em geral (caso Atalla Riffo e filhas vs. Chile, 2012), o mesmo vale
para as transgeneridades e identidades de gênero em geral. Tudo isso, embora o
princípio geral de não discriminação do artigo da Constituição já o garanta.
Creio que são alguns pontos que podem ajudar na não discriminação das famílias
homoafetivas e pessoas LGBTI+, em geral”, pondera.
Inseminação caseira e dupla maternidade
De
acordo com o advogado e professor Ricardo Calderón, diretor nacional do IBDFAM,
tem sido crescente o número de casos na Justiça referente ao registro de dupla
maternidade e inseminação artificial caseira. “Um dos motivos é o aumento do
custo dos procedimentos, além da crise pós-pandemia e do grande volume de
interessados.”
O
advogado explica que a legislação brasileira ainda não regula, de modo
expresso, as filiações resultantes de procedimentos caseiros informais. “Assim,
há um certo espaço para refletir sobre as projeções jurídicas decorrentes.”
“Mesmo
na ausência de regramento legal, é possível que se edifiquem as respostas. O
Poder Judiciário não poderá, provavelmente, furtar-se a enfrentar as demandas
concretas que resultem desses chamados procedimentos de reprodução assistida
caseira”, afirma.
No
entendimento do especialista, outros princípios do ordenamento jurídico podem
fundamentar eventual posicionamento específico sobre situações efetivamente
novas. Entre eles, cita o princípio do melhor interesse da criança e do
adolescente e o direito à convivência familiar, dispostos na Constituição
Federal.
Calderón
pontua que muitas decisões têm como base os Provimentos 63 e 83 do Conselho
Nacional de Justiça – CNJ, que regulam o registro de filhos socioafetivos e de
casais homoafetivos. “Esses provimentos não efetivamente incluem a reprodução
assistida caseira, mas são utilizados como inspiração pela Justiça.”
O
professor reconhece a importância da regulação específica e particularizada
em casos de reprodução assistida. No entanto, afirma que o tema é novo “e
ainda está a receber as primeiras decisões judiciais, muitas vezes em primeira
instância”.
“A
elaboração de uma legislação mais robusta exige certa maturidade nas
conclusões. Essa experiência pode contribuir para uma legislação um pouco mais
apropriada, segura e adequada”, avalia.
O
diretor nacional do IBDFAM observa que a falta de legislação específica gera
insegurança jurídica e pode trazer dificuldade para quem recorre às técnicas
caseiras, pois será necessário recorrer ao Poder Judiciário para viabilizar um
registro de nascimento adequado. Por outro lado, ele aponta que a
jurisprudência vem dando guarida para tais questões.
“Diversas
decisões judiciais vêm permitindo que as pessoas à frente desse projeto
parental consigam o registro de nascimento no nome de ambas as mães. Ou seja, o
Poder Judiciário vem tutelando sobre essas questões”, comenta.
Segundo
Calderón, a tessitura jurídica já tem elementos para fundamentar as
deliberações, ainda que sempre com a intervenção do Ministério Público e do
Poder Judiciário.
Por
outro lado, o advogado pondera que o Judiciário já enfrenta diversos litígios
nesta seara. Entre eles, aspectos registrais e de convivência familiar.
“O
tema é efetivamente instigante e tem diversas nuances e possibilidades já
debatidas atualmente. É um dos grandes desafios do presente e também do futuro
do Direito das Famílias brasileiro”, conclui.
Fonte:
IBDFAM