Conceito de usucapião
O professor Júlio Cesar Sanchez
define que usucapião "é a forma de se apropriar de algo que não é seu e,
pelo tempo, tornar-se o novo dono (...) A usucapião é a forma originária de
aquisição imobiliária, por meio da qual o possuidor, após cumprimento de alguns
requisitos legais, torna-se legítimo proprietário do bem, móvel ou imóvel, sem
que haja a necessidade de transmissão do imóvel de uma pessoa para outra"
(Usucapião, Sanchez, Júlio Cesar, pág. 13, Editora Mizuno)
Usucapião na história
O instituto da usucapião não é
novo, aliás, tem historicidade jurídica milenar e tem em Roma seu nascedouro,
berço e desenvolvimento. As raízes de tal instituto tem origem na Lei das 12
Tábuas, por volta do ano 450/455 antes de Cristo, que após forte pressão dos
plebeus, o Senado romano criou um conjunto de regras (leis latu sensu)
estabelecendo normas, garantias e princípios democráticos aos cidadãos romanos.
Historiadores tradicionalistas
atribuem ao tribuno plebeu Gaio Arsa a criação de uma magistratura no ano de
461 a. C. encarregada de redigir uma forma de lei que diminuísse o arbítrio dos
cônsules, nascendo, assim, a Lei das 12 Tábuas.
Os prazos para usucapir naquela
época, de acordo com a Lei das 12 Tábuas, era de dois anos para bens imóveis e
um ano para bens móveis e outros direitos (Usucapião, Sanchez, Júlio Cesar,
pág. 13, Editora Mizuno).
"TÁBUA SEXTA
Do direito de propriedade e
da posse (...)
5. As terras serão
adquiridas por usucapião depois de dois anos de posse, as coisas móveis depois
de um ano."
Com o passar do tempo, os
próprios juristas romanos se ocuparam de desenvolverem o instituto da
usucapião, esmiuçando seu conceito e forma, criando, assim, as bases jurídicas
para o que temos hoje em nossa legislação.
Eneu Domício Ulpiano (150-223,
a.C), festejado jurista romano, cujo trabalho influenciou substancialmente o
Direito Romano e Bizantino, definiu o instituto da usucapião como "a
aquisição do domínio do lapso temporal", ou seja, "usucapio est autem
domini adeptio per continuationem possessionis anni vel bienni: rerum mobilum
anni, imombilum bienni" (A usucapião é transferência do domínio ao outro
pela continuação da posse por um ano ou dois: coisa móvel ano, imóvel dois
anos).
Todavia, a usucapião codificada
pela Lei das 12 Tábuas estava longe de ser o instituto que atualmente
conhecemos, pois, não permitia a aquisição originária da propriedade de imóveis
provinciais (aqueles imóveis distantes de Roma, localizados nas longínquas
províncias romanas), que por décadas não eram ocupadas ou reivindicadas, quer
fosse por Roma ou seu proprietário patrício.
Para os casos acima, fora
criado o instituto da "praescriptio longis temporis" (prescrição de
longo tempo), o instituto da prescrição. Para esses casos, a propriedade
provincial poderia ser adquirida pela posse temporal qualificada de dez anos de
bem móvel ou por 20 anos de bem imóvel.
Foi o imperador romano
Justiniano que fundiu a usucapio com a praescraptio longis temporis em um único
instituto, passando a abranger a prescrição aquisitiva com a prescrição
extintiva, pois, no seu entender, toda aquisição de propriedade por meio do
decurso de um prazo determinado, nada mais era senão uma forma de prescrição
(Usucapião, Sanchez, Júlio Cesar, pág. 14, Editora Mizuno).
Com a evolução do Direito o
instituto da usucapio (aquisitiva ou extintiva) foi se ramificando e se auto
regulando, como, por exemplo, a exigência de boa-fé e justo título por parte do
possuidor, bem como, proibição de usucapir coisa furtada, roubada, bens
públicos, etc.
Usucapião no Brasil
O instituto da usucapião, como
forma originária de aquisição de propriedade móvel ou imóvel, através do
exercício possessório contínuo e qualificado, por um determinado lapso
temporal, podendo ou não ser lastreado por justo título, ter ou não em sua
gênese boa-fé do possuidor, tem sua positivação oficial no Código Civil de
1916, através do seu artigo 530, inciso III, que assim dispunha:
"Art. 530. Adquire-se a
propriedade imóvel:
(...)
III – Pelo usucapião."
O atual Código Civil,
disciplina o instituto em seu Título II, Capítulo II, Seção I, para bens
imóveis e Capítulo II, Seção I, para bens móveis.
A forma originária de aquisição
de propriedade imóvel está disciplinada no artigo 1.238 e seguintes do Código
Civil e, do mesmo modo, para aquisição destinada a aquisição de bens móveis,
artigo 1.260 e seguintes, do mesmo código.
O Código Civil regula diversas
formas de aquisição originária da propriedade (usucapião) e todas tem uma
característica simétrica e imprescindível: prescrição aquisitiva, ou seja,
qualquer que seja a modalidade da usucapião, a prescrição (interstício temporal
legalmente pré-determinado) será requisito inafastável, do possuidor.
A doutrina e legislação
contemporânea não permite, tão somente, o ordinário exercício da posse por
determinado tempo como meio hábil, único e absoluto para a aquisição da
propriedade através da usucapião.
Há outros requisitos, como, por
exemplo, a qualificação da posse através do decurso do prazo prescricional
aquisitivo. Há que se ter a posse ad usucapionem com animus domini, que é posse
qualificada que permite a aquisição do bem através da usucapião.
O possuidor deve ter o animus
domini de, pelo efetivo e contínuo exercício da posse sobre determinada coisa
(móvel ou imóvel), adquirir-lhe a propriedade, comportando-se, desde o início,
como se proprietário já fosse do respectivo bem.
Então, até aqui temos, em
linhas gerais, que o possuidor ad usucapionem, precisa, necessariamente,
cumprir com dois requisitos: (1º) prescrição aquisitiva por determinado lapso
temporal, que será disciplinado pela legislação; (2º) a posse exercida dentro
do lapso temporal que consolidará a prescrição aquisitiva deve ser qualificada,
ou seja, o possuidor deve ter animus domini ad usucapionem, exercitando, assim,
a posse de forma qualificada, com clara, nítida e pública intenção de adquirir
a propriedade daquela coisa sobre o qual está exercendo a posse, ou seja, o
mundo exterior deve vê-lo como se proprietário fosse ou, no mínimo, que se
comporta como tal.
A posse com animus domini ad usucapionem
deve, necessariamente, ser justa, isto é, não decorrer de violência — física ou
moral, ou esbulho —, clandestinidade — obtida às escondidas, de maneira oculta
— ou precaria — obtida com abuso de confiança ou de direito, pois, segundo o
artigo 1.208 do Código Civil, a posse injusta não produz efeitos para fins de
usucapião. (Usucapião, Sanchez, Júlio Cesar, pág. 169, Editora Mizuno)
Para fins deste singelo artigo,
nos debruçaremos na usucapião de bem imóvel.
Da usucapião extraordinária
O instituto da usucapião que
reclama apenas dois requisitos está disciplinado no artigo 1.238 do Código
Civil, denominado usucapião extraordinário, vejamos:
"Art. 1.238. Aquele
que, por quinze anos, sem interrupção, nem oposição, possuir como seu um
imóvel, adquire-lhe a propriedade, independentemente de título e boa-fé;
podendo requerer ao juiz que assim o declare por sentença, a qual servirá de
título para o registro no Cartório de Registro de Imóveis.
Parágrafo único. O prazo
estabelecido neste artigo reduzir-se-á a dez anos se o possuidor houver
estabelecido no imóvel a sua moradia habitual, ou nele realizado obras ou
serviços de caráter produtivo."
Observamos que o legislador
elegeu duas condições ao possuidor, para os casos da usucapião extraordinária:
(1ª) prescrição aquisitiva de 15 anos (reduzindo-se para dez caso tenha no
local estabelecido moradia habitual, ou, ter realizado obras ou serviços de
caráter produtivo); (2ª) posse qualificada, ou seja, com animus domini ad
usucapionem, sem necessidade de justo título e boa-fé.
Preenchido os requisitos acima,
adquirir-se-á de forma originária a propriedade, agora usucapida pelo
possuidor, através da modalidade extraordinária. O possuidor, findo ao processo
(judicial ou não), passará a ser o proprietário fático e de direito do
respectivo imóvel ou, como diria Uliano, conquistou a aquisição do domínio do
lapso temporal.
A usucapião extraordinária é a
clássica fusão dos antigos institutos romanos onde podemos encontrar a
prescrição aquisitiva e extintiva do direito de propriedade. Aquela primeira
pelo uso da regular posse por parte do indivíduo sobre determinado imóvel e a
segunda a perda do domínio do proprietário sobre o respectivo bem por desídia
ao seu direito.
A usucapião é a materialização
da função social do direito (inciso XXIII do Artigo 5º da Constituição Federal
de 1988).
Da usucapião ordinária
Avançando a passos largos para
o título deste singelo artigo, nos debrucemos ao requisito necessário à todas
as modalidades de usucapião ordinária ou especial (urbana ou rural), qual seja:
justo título, que inexoravelmente é acompanhado pela boa-fé.
Diferentemente da usucapião
extraordinária, aqui estamos tratando das espécies em que a presença do justo
título, acompanhado da boa-fé são requisitos indispensáveis para usucapir o bem
imóvel, ou seja, não basta o preenchimento do lapso temporal destinado a
prescrição aquisitiva, mas, concomitantemente, há que se ter o justo título e
boa-fé, que estão umbilicalmente ligados um ao outro.
A usucapião ordinária está
disciplinada no artigo 1.242 do Código Civil, vejamos:
"Art. 1.242. Adquire
também a propriedade do imóvel aquele que, contínua e incontestadamente, com
justo título e boa-fé, o possuir por dez anos."
O justo título é tido como
qualquer documento hábil a comprovar a cadeia de sucessão ininterrupta da
prescrição aquisitiva qualificada, sempre de forma mansa, pacífica e de boa-fé,
de um indivíduo para outro.
O professor Júlio Cesar
Sanchez, em seu festejado livro Usucapião, Editora Mizzuno, capitulo 21, página
173, leciona que: "trata-se de instrumento hábil para transmitir o domínio
ou outro direito real passível de ser usucapido, e que esteja formalmente em
ordem, isto é, que esteja intrinsicamente apto a transmitir o direito real
pretendido, embora padeça de um vício extrínseco".
O instrumento a que faz menção
o citado professor pode ser um contrato de promessa de venda e compra, carta de
arrematação de um imóvel num leilão judicial ou não, que não fora arrematada e,
inclusive, o contrato de cessão de direitos possessórios e afins, objeto deste
breve artigo.
Do contrato de cessão de
direitos possessórios como instrumento hábil a transmitir o domínio do imóvel
(justo título)
Estima-se que no Brasil há
cerca de 35 milhões de imóveis irregulares, dentre a maioria em situação
exclusiva ou singular de pura posse, ou seja, o possuidor, aqui tido como
precário proprietário, é senhor e proprietário da posse qualificada, em todos
os seus termos e alcance, sobre determinado bem imóvel, porém, não tem o
domínio registral do mesmo, ou seja, segundo a Lei de Registros Públicos não é
o proprietário de legal daquele imóvel.
Qual seria o instrumento hábil
para que o mesmo possa "vender" ou, em termos jurídicos, transmitir
de forma onerosa ou não seus direitos possessórios a um terceiro, numa típica
transação negocial? A própria legislação assim nos responde.
O artigo 1.205 do Código Civil
disciplina outras formas de aquisição da posse, vejamos:
"Art. 1.205. A posse
pode ser adquirida:
I - pela própria pessoa que
a pretende ou por seu representante;
II - por terceiro sem
mandato, dependendo de ratificação."
Este singelo articulista divide
a aquisição da posse em duas modalidades, assim como se faz no estudo sobre
aquisição da propriedade, ou seja, adquire-se a posse de forma originaria e
outra decorrente.
Forma originária de
aquisição da posse
A forma originária de se
adquirir a posse é aquela que é exercida direta e fisicamente pelo possuidor
(domínio fático) sobre determinado bem. Está disciplinada no artigo 1.204 do
Código Civil. Aqui temos a figura do típico posseiro que, adentrando em terra
ou imóvel desconhecidos, sem oposição ou resistência de seus proprietários,
passa a exercer não só o domínio fático, mas, sobretudo, a posse ad usucapionem
com animus domini e, após transcorrido mais dez anos de contínua posse
qualificada no imóvel, que de sua moradia o fez, adquiriu o direito de o mesmo
usucapir, segundo dispõe o artigo 1.238, parágrafo único, do Código Civil.
Em nossa didática casuística, o
possuidor reúne todas as qualidades para requerer (extra ou judicial) a
usucapião extraordinária com prazo reduzido, porém, por questões alheias, não o
faz e resolve negociar seus direitos.
Forma derivada de aquisição
da posse
O legislador deixou claro,
ainda que de forma implícita, que a posse e seus efeitos são transacionáveis e
transmissíveis, quer seja pela própria pessoa que pretende adquiri-la, como,
também, por seus representantes, terceiros e mandatários, conforme se extrai da
leitura do artigo 1.205 do CC.
E dentro desse quadrante, o
instrumento adequado para tanto é a cessão de direitos possessórios, pois, este
é o instituto jurídico hábil, eficaz e correto para se transmitir direitos de
um para outro, pois, em verdade, o possuidor não pode, em termos legais,
vender/alienar o imóvel ao qual só exerce a posse, por lhe faltar o basilar
requisito para tanto, qual seja: o domínio registral, que reclama ato formal.
Só pode alienar aquele que, de
fato e de direito, exerce o domínio sobre aquilo que se pretende vender. Aqui
ainda estamos tratando dos efeitos qualificadores da posse que, após o devido
processo legal ou extrajudicial, outorgará o domínio ao possuidor, através de
uma sentença declaratória de propriedade ou decisão equivalente pelo oficial de
registro de imóvel.
O contrato de cessão de
direitos possessórios (aqui tido como oneroso, para fins de nossa casuística) é
a forma derivada de aquisição da posse e seus efeitos.
Todo indivíduo pode, através do
contrato de cessão de direito possessórios e afins, adquirir a posse de um
imóvel com todos os seus correlatos efeitos, inclusive aquela ad usucapionem com
animus domini e, assim fazendo, adquirir-lhe-á de maneira derivada.
A própria legislação que
disciplina a usucapião ordinária explicita tal possibilidade, consoante se
infere no artigo 1.243 do Código Civil, vejamos:
"Art. 1.243. O
possuidor pode, para o fim de contar o tempo exigido pelos artigos
antecedentes, acrescentar à sua posse a dos seus antecessores (art. 1.207),
contanto que todas sejam contínuas, pacíficas e, nos casos do art. 1.242, com
justo título e de boa-fé.
(...)
Art. 1.207. O sucessor
universal continua de direito a posse do seu antecessor; e ao sucessor singular
é facultado unir sua posse à do antecessor, para os efeitos legais."
Os dispositivos acima, em
perfeita consonância com o entendimento esposado no artigo 1.205 do CC, deixa
explicito que a posse, além de poder ser transmissível (onerosa ou gratuita)
soma-se àquela exercida ao novo possuidor, sem perder a qualidade de contínua e
ininterrupta.
O contrato de cessão de
direitos possessórios e afins, quando executado dentro dos contornos legais,
tem o condão e a capacidade jurídica de transmitir décadas de posse num único
ato, para aquele que acabou de adquirir tais direitos, mas que nunca tenha
exercido, até então, a posse fática sobre o correlato imóvel, este é o
instituto do acessio possessionis.
O acessio possessionis é a
sucessão da posse ad usucapionem com animus domini de um indivíduo a outro,
possibilitando que este último, novo adquirente da posse (Cessão de Direitos
Possessórios), reúna em si todas as qualidades que o cedente obteve, após anos
de efetivo exercício da posse, através de uma única transação negocial.
O recém adquirente dos direitos
possessórios ad usucapionem com animus domini (forma derivada de aquisição da
posse) pode, inclusive, requerer no mesmo dia em que se concretizou o negócio,
a correlata usucapião, seja judicial ou extrajudicial, agora como forma
originária de aquisição de propriedade.
A guisa de conhecimento
prático, vale trazer a luz parte do V. Acórdão proferido nos autos da apelação
nº 1000888-08.2021.8.26.0586, preferido pela Colenda 1ª Câmara de Direito
Privado do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em 12/12/2022,
os Ínclitos Desembargadores, por unanimidade, reconheceram o contrato de cessão
de direitos possessórios como instrumento hábil de transmissão da posse para
fins de usucapião, vejamos:
"Aliás, o objeto do
contrato é exatamente a cessão de direitos possessórios, de modo que não há
margem a qualquer equivoco por parte dos cessionários.
É texto expresso dos artigos
1.228 e 1.245 do Código Civil, que a propriedade imobiliária se adquire pelo
registro, de natureza constitutiva. Isto não significa, porém, que não possa
haver a alienação judicial dos direitos possessórios sobre bem imóvel.
Não há dúvida que a posse
integra direito patrimonial, pois gera uma série de efeitos jurídicos positivos
ao possuidor. Assim como a propriedade, a posse tem valor econômico, embora com
certa depreciação, por ser uma situação de fato e não de direito."
Assim, temos que, aquele que
tem a posse com animus domini e já percorreu o lapso temporal necessário para a
correlata usucapião do imóvel, poderá aliená-la através de competente cessão de
direitos possessórios (cedente), transmitindo todas as qualidades ao novel
adquirente (cessionário), que poderá utilizar tal documento como justo título,
agora sim usucapir o bem, na modalidade ordinária ou extraordinária, quer pela
via judicial ou extrajudicial.
Rafael Hector Censi é advogado atuante na advocacia contenciosa civil e
imobiliária, ex-assessor parlamentar na Câmara Municipal de Jundiaí,
pós-graduando em Direito imobiliário, Civil e Constitucional, cursando
especialização em usucapião pela ESU (Escola Superior Universitária),
ministrada pelo professor Júlio Cesar Sanchez.
Fonte: ConJur