Carlos Eduardo Elias de Oliveira
1. Introdução
Inauguramos hoje a Coluna Migalhas de Direito
Privado Estrangeiro, com um objetivo claro: compartilhar questões interessantes
de outros países e de entidades transnacionais em Direito Civil, em Direito
Notarial e Registral.
As publicações serão quinzenais, às terças-feiras,
com eventuais edições extraordinárias em outros dias.
Já mantemos iniciativas similares em outras
plataformas, como no perfil
Não se trata de mera curiosidade. Conhecer
experiências jurídicas estrangeiras abre-nos a criatividade, seja para formular
novas teses jurídicas em processos judiciais, seja para discutir mudanças
legislativas, seja para compreender mais adequadamente os fundamentos do nosso
Direito.
Hoje o objetivo é tratar de uma fonte importante
para estudos de direito privado estrangeiro: o soft law. Os advogados, o
legislador, os magistrados, enfim, os operadores do Direito em geral
brasileiros podem valer-se dessa ferramenta para guiar debates sobre questões
jurídicas práticas.
No Brasil, já conhecemos instrumentos de soft law,
como os enunciados das Jornadas de Direito Civil1 e os da I Jornada De Direito
Notarial e Registral2, os quais - apesar de não serem vinculantes - guiam os
operadores do Direito.
2. Soft Law e os estudos de Direito Privado
Estrangeiro
O soft law (também chamado de soft norm, droit
doux, direito flexível e direito plástico) consiste em regras não vinculantes
adotadas em foros internacionais, como os fornecidos por institutos privados.
Apesar de não terem força vinculante, essas regras
de soft law guiam os negócios privados e as instituições jurídicas locais
(especialmente o Parlamento e o Judiciário) para manter um ambiente de
harmonização internacional de direitos. Podem, por exemplo, ser escolhidas
pelas partes como a regra aplicável a um contrato. Podem guiar câmaras
arbitrais no julgamento. Servem de parâmetro pelo Poder Judiciário nacional.
O soft law consegue ter certa força orientadora por
espelhar os costumes e os princípios gerais do direito, os quais costumam ser
fontes dos ordenamentos jurídicos dos países. Os costumes refletem uma prática
generalizada (elemento material do costume) acompanhada de uma opinio iuris
(elemento subjetivo). A opinio iuris é a convicção acerca da juridicidade
daquela prática generalizada3.
Dentro do conceito de soft law, podem-se incluir
normas vinculantes com um conteúdo aberto ou programático, marcado pela sua
flexibilidade: uma espécie de direito flexível4. Não estamos, porém, a tratar
dessa acepção5. Aqui estamos a focar a acepção do soft law como um
quase-direito. Abrange, por exemplo, instrumentos não obrigatórios formalmente
produzidos por organismos privados ou estatais. Alcança, inclusive, o
gentlemen's agreement (acordo de cavalheiros), oriundo da doutrina anglo-saxã e
que consiste em compromissos não obrigatórios que expressam uma diretriz dos
Estados em concerto.
Memorandos de entendimentos, declarações,
declarações conjuntas, declarações das grandes conferências internacionais,
atas finais, agendas, programas de ações, recomendações, acordos não
vinculantes (non-binding agreements) e leis-modelo são, no plano internacional,
nomes que são empregados a instrumentos que podem designar exemplos de soft
law. É preciso, porém, tomar cuidado. Por vezes, esses nomes (com ressalva
óbvia do termo "acordos não vinculantes") reportam-se a instrumentos
vinculantes, escapando do conceito de soft law. É preciso olhar o caso
concreto.
No direito privado, um exemplo de soft law são os
princípios Unidroit6 relativos aos Contratos Comerciais Internacionais7. Não se
trata de uma convenção internacional internalizada por Estados. Não há caráter
vinculante. Entretanto, os referidos princípios Unidroit guiam a prática do
comércio internacional e orientam interpretações a serem feitas da legislação
doméstica e internacional, pois refletem um topoi (um lugar comum) jurídico.
São utilizados em arbitragem ou como lei escolhida pelas partes em contratos8.
Há até decisões dos Poderes Judiciários domésticos valendo-se dos princípios
Unidroit. O próprio preâmbulo dos Princípio Unidroit, ao tratar de seu âmbito
de aplicação, reconhece que, apesar de não ostentar uma força vinculante formal
estatal, gaba-se de uma força de fato em guiar contratos, leis (domésticas e
internacionais), jurisprudência e doutrina9. Os princípios Unidroit caminham para
ser uma espécie de "Restatements10 internacional dos princípios gerais de
direito dos contratos"11. Aliás, as próprias partes podem eleger, em
contratos, a aplicação dos princípios do Unidroit (ou outras normas não
estatais), ao menos no âmbito da União Europeia, respeitadas as
particularidades das normas comunitárias europeias e as normas domésticas12.
Há importantes organizações internacionais privadas
e intergovernamentais que trabalham na edição de leis uniformes ou de
instrumentos de soft law, na elaboração de convenções internacionais e na
promoção de práticas de harmonização internacional, especialmente em direito
privado.
Em suma, é importante sempre conhecer os principais
instrumentos de soft law produzidos por instituições públicas e por respeitadas
instituições privadas. No Brasil, os enunciados das Jornadas de Direito Civil e
da I Jornada de Direito Notarial e Registral são exemplos de ferramentas de
soft law muito utilizadas.
Convém também que outras ferramentas de soft law
desenvolvidas no âmbito transnacional também frequentem os debates de Direito
Privado. Todavia, cabe um alerta: esse debate há de realizado com maturidade,
ciente de que esses instrumentos de soft law, embora expressem o entendimento
de juristas renomados de diversos países, não necessariamente representam uma
unanimidade na comunidade jurídica: não são "verdades absolutas".
Chamamos a atenção para estes instrumentos de soft law em direito privado no
âmbito transnacional:
a) Draft Common Frame of Reference (DCFR), também
conhecido como Projeto de Código Civil Europeu ou como projeto de Quadro Comum
de Referência, o qual foi desenvolvido no âmbito da União Europeia13.
b) Principles of European Contract Law (PECL),
fruto do trabalho, em três estágios, da Comissão Europeia de Direito Europeu
dos Contratos envolvendo renomados juristas (comissão essa que ficou conhecida
como Lando Commission, em referência ao jurista Ole Lando, tido como o criador
e o presidente da comissão). As partes I e II foram publicadas em 1995 e 1999;
a Parte III, em 200314.
c) os Princípios do Unidroit sobre Contratos
Comerciais Internacionais, cuja última versão é de 201615;
d) Lei Modelo de Leasing do Unidroit16;
e) Convenção do Unidroit sobre Leasing Financeiro
Internacional17 (UNIDROIT Convention on International Financial Leasing)18.
f) Princípios sobre escolha da lei aplicável em
contratos comerciais internacionais, da HCCH (sigla de Hague Conference on
Private International Law; em francês, Conférence de La Haye de droit international
privé; ou, em português, Conferência da Haia de Direito Internacional
Privado)19.
g) Lei Modelo sobre Arbitragem Comercial
Internacional da Uncitral (sigla de United Nations Comission on International
Trade Law ou, em português, Comissão das Nações Unidas para o Direito Comercial
Internacional da ONU)20;
h) Lei Modelo de Garantias Mobiliárias da OEA -
Organização dos Estados Americanos (Model Inter-American Law On Secured
Transactions)21;
i) Lei Modelo de Garantias Mobiliárias da Uncitral
(UNCITRAL Model Law on Secured Transactions)22.
__________
1 Disponível aqui.
2 Disponível aqui.
3 Ver: (1) NASSER, Salem Hikmat. Fontes e normas do
direito internacional: um estudo sobre a soft law. São Paulo: Atlas, 2006, pp.
70-74, 92-93 e 156-157; (2) MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de Direito
Internacional Privado. Rio de Janeiro: Forense, 2018Mazzuoli, 2018, pp.
213-214.
4 NASSER, Salem Hikmat. Fontes e normas do direito
internacional: um estudo sobre a soft law. São Paulo: Atlas, 2006, pp. 97-140.
5 Paulo Henrique Gonçalves Portela dá didática
definição (PORTELA, Paulo Henrique Gonçalves. Direito Internacional Público e
Privado: Incluindo Noções de Direitos Humanos e de Direito Comunitário.
Salvador: JusPodivm, 2021, pp. 80-81):
O conceito foi desenvolvido pela doutrina
norte-americana, em oposição à noção de hard law, que se refere ao Direito
tradicional. No Brasil, Nasser define soft law como um conjunto de "regras
cujo valor normativo seria limitado, seja porque os instrumentos que as contêm
não seriam juridicamente obrigatórios, seja porque as disposições em causa,
ainda que figurando em um instrumento constringente, não criariam obrigações de
direito positivo ou não criariam senão obrigações pouco restringentes". O
autor aponta ainda as seguintes modalidades de soft law:
- normas, jurídicas ou não, de linguagem vaga
e de conteúdo variável ou aberto, ou, ainda, que tenham caráter principiológico
ou genérico, impossibilitando a identificação de regras claras e específicas;
- normas que prevejam mecanismos de soluções
de controvérsia, como a conciliação e a mediação;
- atos concertados entre os Estados que não
adquiram a forma de tratados e que não sejam obrigatórios;
atos das organizações internacionais que não sejam
obrigatórios; - instrumentos produzidos por entes não estatais que consagrem
princípios orientadores do comportamento dos sujeitos de Direito Internacional
e que tendam a estabelecer novas normas jurídicas.
(...) Em suma, o soft law inclui preceitos que
ainda não se transformaram em normas jurídicas ou cujo caráter vinculante é
muito débil, ou seja, "com graus de normatividade menores que os
tradicionais", como afirma Soares. Com isso, é comum que as regras de soft
law tenham caráter de meras recomendações.
(...)
Exemplos relevantes de documentos internacionais
que podem ser considerados como de soft law são a Declaração Universal dos
Direitos Humanos, as declarações de organismos internacionais referentes à
saúde pública (como a Declaração de Alma-Ata e a Declaração de Cartagena), as
recomendações da Organização Internacional do Trabalho (OIT), a Lei Modelo
sobre Arbitragem Internacional, a Carta Democrática Interamericana, as Regras
de Brasília sobre Acesso à Justiça das Pessoas em condição de Vulnerabilidade e
a Declaração Sociolaboral do Mercosul.
Independentemente do caráter de fonte do Direito
Internacional de que se revista ou não o soft law, é inegável a influência dos
diplomas que têm esse formato no atual quadro do Direito das Gentes e da
Ciência Jurídica como um todo.
O soft law vem servindo, por exemplo, como modelo
para elaboração de tratados e de leis internas, como parâmetro interpretativo,
como pauta de políticas públicas e de ação da sociedade civil e como reforço da
argumentação para operadores do Direito. (...) Cabe destacar que a própria
jurisprudência dos tribunais brasileiros vem mencionando alguns desses
documentos, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos e os Princípios
Yogyakarta.
(...)
A respeito do emprego da Declaração Universal dos
Direitos Humanos nos julgamentos do Pretório Excelso, e a título de mero
exemplo, ver os seguintes julgados do STF: ARE 639.337 AgR/SP e ADC 29/DF.
A respeito do emprego dos princípios de Yogyakarta
nos julgamentos do Pretório Excelso, ver os seguintes julgados: RE 477.554 AgR/MG,
ADPF 132/RJ e ADI 4.277/DF.
6 Unidroit é a
International Institute for the Unification of Private Law ou Institut
International pour l'unification du droit privé). Trata-se de uma organização intergovernamental,
composta por 63 Estados membros.
7 Sobre os princípios do Unidroit em arbitragem
internacional, ver: KUGUIMIYA, Luciana Lie. Os princípios do UNIDROIT relativos
aos contratos comerciais internacionais na arbitragem internacional. Publicado
em 1 de abril de 2021 (Disponível aqui. Acesso em 2 de março de 2022).
8 KUGUIMIYA, Luciana Lie. Os princípios do UNIDROIT
relativos aos contratos comerciais internacionais na arbitragem internacional.
Publicado em 1 de abril de 2021 (Disponível aqui. Acesso em 2 de março de
2022).
9 Segue o inteiro teor do dispositivo:
PREÂMBULO
(O objetivo dos Princi'pios)
Estes Princi'pios estabelecem regras gerais para
contratos comerciais internacionais.
Devem ser aplicados caso as partes tenham acordado
que o seu contrato sera' regulado por eles.(*) Podem ser aplicados caso as
partes tenham acordado que o seu contrato sera' regulado por princi'pios gerais
de direito, pela lex mercatoria, ou similares.
Podem ser aplicados caso as partes na~o tenham
escolhido nenhuma lei para regular o seu contrato. Podem ser usados para
interpretar ou suplementar instrumentos internacionais de direito uniforme.
Podem ser usados para interpretar ou suplementar leis nacionais.
Podem servir de modelo para legisladores nacionais
e internacionais.
10 A referência é aos Restatements of the Law,
espécies de tratados que reúnem princípios gerais do common law para auxiliar
os operadores do Direito nos EUA. São espécies de consolidação da
jurisprudência. Assemelham-se às súmulas dos tribunais, com a diferença de que
não são oriundas de órgão estatal. Os Restatements são publicados pela entidade
privada American Law Institute (ALI), criada em 1923. Há quatro Restatements,
os quais subdivididos em vários volumes conforme o conteúdo. Por exemplo, o
Restatement of the Law Third possui volumes relativos a repsonsabilidade civil,
a hipotecas (mortgages), a servidões (servitudes), a enriquecimento ilícito
(restitution and unjust enrichment) etc. (Romano, 2017; Texas Law, 2022).
O site oficial da American Law Institute disponibiliza, para venda, os volumes.
Recomendamos leitura destes artigos: (1) ROMANO,
Rogério Tadeu. O restatement of the law dos norte-americanos. Publicado em maio
de 2017 (Disponível aqui. Acesso em 10 de fevereiro de 2022); (2) TEXAS LAW.
Restatements of the law. Disponível aqui. Acesso em 19 de abril de 2022.
11 Princípios Unidroit relativos aos contratos
comerciais internacionais 2016. Ano: 2016, p. 28 (Disponível aqui).
12 A propósito, o item 13 dos Considerandos do
Regulamento Roma I (Regulamento CE nº 593/2008) dispõe:
13 O presente regulamento não impede as partes de
incluírem, por referência, no seu contrato, um corpo legislativo não estatal ou
uma convenção internacional."
13 A versão completa em inglês intitula-se
Principles, Definitions and Model Rules of European Private Law: Draft Comoon
Frame Of Reference (DCFR). Há uma versão completa (full edition) e uma versão
resumida está disponível na Internet. LAW KUELEUVEN. Principles, Definitions and
Model Rules of European Private Law: Draft Comoon Frame Of Reference (DCFR). Ano: 2009 (Disponível aqui).
14 Ver: (1) LANDO, Ole; CLIVE, Eric; PRÜM, André;
ZIMMERMANN, Reinhard. Principles of European Contract Law, Part III. The Hague/Netherlands;
London/UK; New York/EU: Kluwer Law International, 2003; (2) HESSELINK, Martijn
W. The Principles of European Contract Law: some choices mande by the Lando
Commission. In: Global Jurist Frontiers, vol. 1, nº 1,
2011 (Disponível aqui).
15 Unidroit, 2016. Disponível neste site.
16 Unidroit Model Law
on Leasing. Ano: 2010 (Disponível aqui).
17 DUARTE, Rui Pinto. A Convenção do Unidroit sobre
Locação Financeira Internacional - tradução e notas. In: Documentação e Direito
Comparado, nº 35/36, 1988 (Disponível aqui).
18 UNIDROIT Convention on International Financial
Leasing. Ano: 1988 (Disponível aqui).
19 É uma organização intergovernamental com 83
membros (82 Estados e a União Europeia). Foi fundada em 1893. Seu escopo é
promover a progressiva unificação das regras de direito internacional privado.
Quanto aos princípios relativos à escolha de lei aplicável aos contratos
comerciais internacionais, ele está disponível neste site.
20 UNCITRAL. Lei Modelo da UNCITRAL sobre
Arbitragem Comercial Internacional 1985 com as alterações adotadas em 2006.
Ano: 2006.
21 Organization of American States, 2013. Para
aprofundamento, reportamo-nos a: (1) SILVA, Fábio Rocha Pinto e. Garantias das
Obrigações: uma análise sistemática doo Direito das Garantias e uma proposta
abrangente para a sua reforma. São Paulo: Editora Instituto dos Advogados de
São Paulo - IASP, 2017; (2) RODAS, João Grandino. Facilitar o uso de garantias
mobiliárias incrementaria a economia. Publicado em 4 de junho de 2020.
22 UNCITRAL Model Law
on Secured Transactions. Ano: 2019
(Disponível aqui).