Em 26/12/77 foi
publicada a Lei 6.515, que regulamentou a Emenda Constitucional de 25/6/1977,
introduzindo o divórcio no Brasil e quebrando, assim, o "sagrado"
princípio da indissolubilidade do casamento. Apesar de muitas amarras para se
divorciar, as "fake news" da época conseguiram espalhar o
pânico de que ela seria a derrocada das famílias. Não foi. Ao contrário, a
família ficou mais autêntica e mais verdadeira. Só se podia divorciar uma vez,
eram necessários cinco anos de separação de fato, ou três anos de separação
judicial (expressão adotada em substituição a "desquite"). De lá para
cá, muita coisa melhorou. A Constituição da República de 1988 reduziu os prazos
para dois anos de separação de fato e um ano de separação judicial. Em 2007, a
Lei 11.441, seguindo a tendência da extra judicialização, autorizou divórcios e
inventários consensuais de maiores e capazes nos cartórios de notas. E a EC
66/2010 simplificou ainda mais o sistema de divórcio no Brasil: acabou com
prazos para se requerer/conceder o divórcio; sepultou de vez a discussão da
culpa pelo fim da conjugalidade; extinguiu o inútil e desnecessário instituto
da separação judicial.
Todos esses avanços
legislativos foram fruto de muita luta e articulações políticas para
ultrapassar barreiras moralistas e de cunho religioso. A EC 66, por exemplo,
proposta pelo IBDFam, só foi aprovada graças ao hercúleo esforço do então
deputado baiano Sérgio Barradas Carneiro, que, em razão disso, pagou um preço
alto com a sua não reeleição. Participei de perto desse embate e articulação
para aprovação da referida PEC. Ouvi de diversos deputados e senadores o motivo
de votarem contra tal alteração constitucional: vocês querem destruir as
famílias. Era o mesmo discurso moralista de 1977, que tentou impedir a
introdução do divórcio no Brasil. Será que os parlamentares que trazem consigo
esse discurso realmente acreditam nisso, ou o dizem apenas para agradar
eleitores e não perder votos?
A eliminação de
prazos para se requerer o divórcio não traz nenhuma desordem ou banalização da
família, como ainda apregoam por aí. Significa apenas o fortalecimento da
liberdade das pessoas de determinarem suas regras de convivência conjugal, e o
afastamento do Estado da vida íntima do casal. Para quem fizer a escolha
(loucura?) de casar hoje e divorciar amanhã, isso não é mais um problema do
Estado. É uma questão de responsabilidade da própria pessoa. O Estado não pode,
e não deve, regular a economia do desejo dos cidadãos. Discutir quem era o
culpado pelo fim do casamento era um dos maiores sinais de atraso do
ordenamento jurídico brasileiro. Infidelidades trazem muita dor e sofrimento.
Essa intimidade diz respeito apenas ao estado da pessoa, e não é mais uma
questão de Estado. Também não é mais necessário passar pelo purgatório da
separação judicial para se chegar ao divórcio. O inútil instituto da separação
judicial só servia para aumentar o sofrimento, fomentando discussões
desnecessárias, criando mais um processo judicial e sobrecarregando ainda mais
o Judiciário.
A simplificação e
facilitação dos divórcios depois de EC-66 trouxe uma nova consciência aos
profissionais do Direito. A primeira delas é que o divórcio não é o fim da
família, mas tão somente da conjugalidade. A família nuclear transforma-se em
binuclear. É um direito potestativo. Não há possibilidade jurídica de um pedido
de divórcio ser julgado improcedente. Acabou a época do "eu não te dou o
divórcio". Isso nos remete à tutela de evidência trazida pelo CPC-2015, e
em algumas situações também a de urgência, que autoriza o divórcio liminar.
Apesar da resistência de alguns julgadores, essa tendência tem se instalado no
Judiciário. Mas é um caminho sem volta. Afinal, se um não quer, dois não ficam
casados. A resistência dos magistrados em conceder liminarmente o divórcio é
puramente de ordem moral ou por um fetiche às regras processuais. O julgador é
imparcial, mas não é neutro. Nessa não-neutralidade daqueles que não a
concedem, certamente está sua concepção moral particular sobre a conservação da
família tradicional, ou da família do imaginário daquele julgador. Da mesma
forma, apesar de toda a tecnologia, e das regras autorizadoras, há quem ainda
resista em determinar citações eletrônicas. O Direito precisa acertar o passo
com a sociedade digital. É preciso entender, inclusive, que já estamos na era
do divórcio digital e on-line.
Um outro avanço
significativo sobre o divórcio é a possibilidade de se decretá-lo mesmo após a
morte de uma das partes. Isso porque doutrina e jurisprudência, ao longo desses
45 ano,s já haviam consolidado entendimento de que o casamento verdadeiramente
acaba é com a separação de fato. Se já não há mais ali conjugalidade possível,
o elo jurídico do casamento torna-se mera reminiscência cartorial. O
divórcio post mortem é importante porque, ao alterar o estado
civil do cônjuge sobrevivo, pode mudar toda a ordem da vocação hereditária, e
assim aproximar-se do ideal de justiça [1], como já decidiram o TJ-MG e TJ-SP.
Os 45 anos da lei
do divórcio no Brasil deve ser lembrado como uma conquista da liberdade,
principalmente para as mulheres. Afinal, grande parte dos casamentos só eram
duradouros em razão de uma resignação histórica das mulheres. "Casou,
aguenta!" Não é por acaso que a maioria da iniciativa dos
divórcios/separações é por parte das mulheres. Certamente, elas exigem, mais do
que os homens, uma relação de mais qualidade. As mulheres sabem mais sobre o
amor do que os homens.
A história do
divórcio no Brasil é importante, e não é pelo enaltecimento ou incentivo de se
fazê-lo. É apenas pela possibilidade e liberdade de se poder divorciar, de
poder pensar e respeitar a finitude de um pacto, assim como devemos aceitar a
finitude da vida. Ninguém casa pensando em se separar e achando que é para
sempre. Mesmo sabendo que o "para sempre, sempre acaba". A
conjugalidade é possível e vale a pena a luta diária para se mantê-la. Talvez a
fórmula seja viver como um rio, que contorna todos os obstáculos para desaguar
no mar, e se tornar tão grande como ele. Em outras palavras, enquanto o amor
for maior do que as nossas neuroses cotidianas, a conjugalidade pode ser
duradoura, ou até mesmo para sempre. Mas, quando não se cuida do amor, ele pode
acabar. Às vezes até para renascer em outro lugar, em outro bar, em outra
esquina, como já bem disse Paulo Mendes Campos no seu conhecido poema O
amor acaba. Ou, em linguagem mais contemporânea, para renascer em um
aplicativo de encontro confiável.
O Direito de Família já aprendeu, com a história e a psicanálise, que a separação às vezes é desejo, às vezes necessidade, como em casos de violência doméstica, por exemplo. É um compromisso com a saúde e um ato de responsabilidade. Já sabemos que filhos de pais separados não são infelizes ou problemáticos. Filhos infelizes são aqueles que assistem aos pais brigando, ou os veem infelizes. Mesmo quando se tem a consciência da necessidade e/ou desejo de romper o vínculo conjugal, não é fácil, e não se faz sem sofrimento. É preciso elaborar o luto e encarar o divórcio como um "ritual de passagem" [2]. E, quanto mais leves e céleres forem os ritos jurídicos e judiciais, menos sofrimento haverá entre as partes. Daí a importância da simplificação dos ritos processuais do divórcio. Afinal, a gente casa para ser feliz, e também se separa à procura da felicidade.
Rodrigo da Cunha Pereira é advogado, presidente nacional do Instituto
Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), doutor (UFPR) e mestre (UFMG) em
Direito Civil e autor de vários artigos e livros em Direito de Família e
psicanálise.
Fonte: Conjur