) Introdução
Três decisões recentes dos tribunais
superiores têm provocado uma espécie de "crise de personalidade" no
Imposto sobre Transmissões de Bens Imóveis (ITBI), gerando questionamentos
capazes de abalar a sua trajetória histórico-constitucional e a sua higidez no
ordenamento jurídico brasileiro vigente.
A primeira decisão dos tribunais a ser
analisada nesta série de artigos é a mais recente e mais polêmica. Trata-se do
acórdão proferido pela 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) no
Recurso Especial nº 1.937.821 (Tema 1.113), com caráter repetitivo, interposto
contra decisão colegiada do Tribunal de Justiça de São Paulo, decidindo um
Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas.
Antes de passar ao caso concreto, vale
acentuar que a análise de decisões judiciais num sistema (que se pretende) de
precedentes exige que se percorra algumas etapas na pesquisa e compreensão da
jurisprudência e dos julgados individualmente considerados.
Em primeiro lugar, deve-se aferir a
situação processual do caso examinado antes de se enveredar pelo seu mérito.
Essa etapa é importante porque esse iter analítico tem sido, cada vez mais,
solapado por notícias abreviadas ou resumidas sobre a "jurisprudência dos
tribunais" nas mídias tradicionais e sociais, que se equivocam sobre as
matérias decididas pelos tribunais, ao ponto de serem quase "fake
news" jurídicas.
Em segundo lugar, é preciso examinar e
compreender alguns elementos que delimitam o campo de cognição do caso, tais
como: o objeto da ação originária, os tipos de instrumentos recursais
utilizados e o conteúdo dos respectivos julgamentos. Somente assim se poderá
compreender o alcance e os limites das decisões recorridas.
2) Aspectos processuais
O caso em foco tem origem em ação judicial
de repetição de indébito de ITBI proposta pela empresa Fortress Negócios Imobiliários
contra o Município de São Paulo (MSP). Na petição inicial, a empresa requereu a
devolução da diferença entre o valor do imposto calculado pela Secretaria
Municipal de Fazenda paulistana e o que seria, segundo ela, devido com base no
preço pago pela arrematação do imóvel em hasta pública judicial. Na mesma
época, outras duas ações semelhantes de repetição de indébito de ITBI foram
movidas pela empresa nos municípios paulistas de Bertioga e Itu.
A sentença julgou procedente a ação contra
o município de São Paulo, determinando o recálculo do ITBI e adotando como
valor venal do imóvel aquele fixado para fins de incidência de IPTU ou o valor
da arrematação, "o que fosse maior" — no caso, o último, diante de
uma base de cálculo bastante defasada de IPTU. O MSP apelou (13/12/2017) e a
empresa, então, requereu a instauração de IRDR. Fez, contudo, uma delimitação
ampla para o IRDR, sem mencionar casos semelhantes com necessidade de
uniformização, apenas "casos futuros", indo muito além dos limites
processuais estabelecidos pelo artigo 976 do CPC. Apesar disso, o pedido foi
deferido.
Esse foi, então, recebido e processado
pela Turma Especial de Direito Público do TJ-SP, que determinou a suspensão do
curso processual da Apelação (23/04/2018), sem suspender nenhum recurso
relativo ao tema. Até mesmo a apelação entre a Fortress e o município de São
Paulo acabou julgada pela 14ª Câmara do TJ-SP (28/6/2018) — que não enfrentou a
matéria tratada no IRDR, apenas a incidência ou não de juros no indébito
pleiteado.
Contra esse Acórdão, foi interposto REsp
pelo MSP (8/5/2019), que foi inadmitido na origem, mas acabou sendo conhecido
após agravo de instrumento em REsp. Por falta de
"pré-questionamento", o ARESP nº 1.493.616 foi rejeitado em decisão
monocrática. A matéria, então, precluiu em 28/2/2020.
Neste ínterim, o 7º Grupo de Direito
Público do TJ-SP julgou o IRDR (em 23/05/2019) e seus julgadores:
"FIXARAM A TESE JURÍDICA DA BASE DE
CÁLCULO DO ITBI, DEVENDO SER CALCULADO SOBRE O VALOR DO NEGÓCIO JURÍDICO
REALIZADO E, SE ADQUIRIDO EM HASTAS PÚBLICAS, SOBRE O VALOR DA ARREMATAÇÃO OU
SOBRE O VALOR VENAL DO IMÓVEL PARA FINS DE IPTU, AQUELE QUE FOR MAIOR,
AFASTANDO O VALOR DE REFERÊNCIA"
Ao final, do voto-vencedor, o
desembargador Burza Neto assinalou que
"Por essas razões, a base de cálculo
do ITBI deve corresponder ao valor venal do bem imóvel transferido e, caso este
valor seja inferior ao da negociação, deve prevalecer este último.
Ocorrendo isto, pelo meu voto, no
julgamento do incidente, FIXO A TESE JURÍDICA DA BASE DE CÁLCULO DO ITBI,
DEVENDO CORRESPONDER AO VALOR VENAL DO IMÓVEL OU AO VALOR DA TRANSAÇÃO,
PREVALECENDO O QUE FOR MAIOR."
Um novo REsp foi interposto pelo MSP
contra o acórdão do IRDR (8/8/2019), mas foi inadmitido na origem (4/9/2019).
Todavia, após interposição de agravo pelo ente, foi conhecido e convolado pelo
STJ em REsp (em 11/5/2021), sob o nº 1.937.821. Em 5/10/2021, esse recurso foi
afetado ao regime dos recursos repetitivos. Em 24/2/2022, a 1ª Seção do STJ deu
parcial provimento ao recurso do município de São Paulo, com as seguintes
conclusões:
a) a base de cálculo do ITBI é o valor do
imóvel transmitido em condições normais de mercado, não estando vinculada à base
de cálculo do IPTU, que nem sequer pode ser utilizada como piso de tributação;
b) o valor da transação declarado pelo
contribuinte goza da presunção de que é condizente com o valor de mercado, que
somente pode ser afastada pelo fisco mediante a regular instauração de processo
administrativo próprio (artigo 148 do CTN);
c) o Município não pode arbitrar
previamente a base de cálculo do ITBI com base em valor de referência
estabelecido unilateralmente.
O MSP opôs Embargos de Declaração em
27/4/2022, alegando que o IRDR não resolveu as demandas repetitivas, pois
sequer se referiu aos três casos da mesma empresa; que os demais casos
apontados como repetitivos (Bertioga e Itu) foram julgados em sentido contrário
ao do IRDR pelo TJSP; que não havia interesse processual na continuidade do
REsp do MSP, contra o acórdão do IRDR; e que a parte do acórdão que desproveu o
REsp promoveu uma reformatio in pejus na medida em que adotou o preço do
negócio jurídico como base de cálculo do ITBI em detrimento do valor venal de
mercado (próprio dos impostos sobre o patrimônio) sem sequer se referir ao
critério adotado pelo IRDR – para que se aplicasse o valor maior. Os embargos
foram rejeitados sob a alegação genérica de que não havia omissão, obscuridade
ou contradição no acórdão do repetitivo.
Em 23/06/2022, o MSP interpôs Recurso
Extraordinário ao STF alegando que o REsp seria descabido por força da
disciplina constitucional (artigo 105, III, CRFB), na medida em que teria sido
interposto contra IRDR decidido em abstrato, o que não seria possível segundo
entendimento do próprio STJ (no RE nº 1.798.374). Além disso, diz ter havido
agressão ao devido processo legal constitucional (artigo 5º, LIV, CRFB), na
medida da reformatio in pejus que teria ocorrido contra o recorrente quando o
acordão afastou o critério do IPTU e trouxe critérios abstratos que sequer
estavam em discussão. Vale ressaltar que o Recurso Extraordinário ainda não foi
julgado, não havendo, assim, trânsito em julgado da decisão do STJ.
2) Efeitos das decisões proferidas no caso
a) Limites Processuais do Acórdão do REsp
1.937.821.
Para além da falta do trânsito em julgado,
cumpre observar que, por ser oriundo de um RE interposto contra Acórdão de IRDR
de Tribunal Estadual, só pode ser considerada válida e eficaz se estiver
vinculada a um caso concreto ("causa decidida"). Do contrário, não
seria sequer cabível o seu processamento como apelo especialíssimo, como já
assentou o próprio STJ em recente decisão da sua Corte Especial, ao julgar
procedente o incidente de inconstitucionalidade suscitado no Recurso Especial
1.798.374 (18/5/2022).
Ainda, é necessário circunscrever a
vinculatividade do Acórdão proferido no REsp nº 1.937.821 ao objeto do caso
concreto julgado pelo TJ-SP. A repetição de indébito proposta pela Fortress se
limita à discussão da base de cálculo do ITBI em arrematações de imóveis
ofertados em hastas públicas judiciais. Nesse sentido, a doutrina abalizada de
Antônio do Passo Cabral [1], nos comentários do artigo 987, e a de Cássio
Scarpinella Bueno [2] assim também entendem na medida em que trazem que apenas
um caso concreto a ser julgado (e não um incidente formado a partir de um
punhado) seria capaz de legitimar o cabimento daqueles recursos na perspectiva
constitucional (artigos 102, III e 105, III, CRFB).
Com efeito, ainda que o IRDR e o voto do
ministro Gurgel de Faria tenham se arvorado em digressões abstratas sobre a
base de cálculo e modalidades de lançamento cabíveis na gestão fiscal do ITBI
pelos municípios brasileiros, não se pode extrair destes Acórdãos um caráter de
norma geral, transcendente dos limites do caso concreto e da res in iudicio
deducta. Do contrário, seria uma ultrapassagem dos limites do artigo 976, CPC,
e, sobretudo, da competência recursal do STJ, delimitada pelo artigo 105, III,
CRFB, conforme confirmado pela Corte Especial do STJ e pelo STF (RE 581. 947).
Isso poderia sustentar a inconstitucionalidade suscitada pelo MSP.
Nesse sentido, frisa-se: O entendimento
fixado pelo STJ no REsp 1.937.821 só pode ser interpretado como aplicável aos
casos de aferição da base de cálculo do ITBI relativos a arrematações de
imóveis em hastas públicas e não a todas as hipóteses de alienação sujeitas ao
ITBI. Somente essa matéria vinha sendo decidida pelo STJ nesse sentido. Não
havia jurisprudência sua que sustentasse editar um tema de Repetitivo para a
discussão de base de cálculo de ITBI em outras hipóteses de alienação de
imóveis, sobretudo em negócios jurídicos particulares!
O preço pago na arrematação em hasta
pública (salvo se "preço vil") já era o valor adotado nas legislações
de vários municípios brasileiros [3]. Optavam pela praticidade fiscal na
definição do elemento quantitativo do fato gerador abstrato do imposto. Pela
publicidade e formalidade dos atos, essa modalidade de alienação imobiliária
(em sede judicial) dá segurança jurídica suficiente para que as autoridades
fiscais tenham, nesse valor, um indicador objetivo, confiável, do valor venal
do imóvel para fins de incidência do ITBI, já que insujeito à livre disposição
das partes negociantes.
b) A decisão de mérito e seus fundamentos
(RE 1.937.821): matérias não integrantes da "causa decidida"só podem
ser entendidas como obiter dicta
O imperativo processual da "causa
decidida" limita o pedido do REsp e o campo de cognição do STJ no caso.
Por força do princípio da non reformatio in pejus, a conclusão do julgado só
poderia determinar a adoção dos valores fixados pela Prefeitura ou a manutenção
do critério alternativo: o valor venal declarado (assumido como indício do
valor de mercado efetivo e atual) ou a base de cálculo do IPTU — o que fosse o
maior. Neste sentido, a 1ª Seção do STJ jamais poderia derivar os debates para
outras hipóteses que não foram objeto do caso concreto e muito menos julgar o
caso em desfavor do único recorrente.
A abordagem geral sobre base de cálculo e
modalidades de lançamento só pode ser entendida como obiter dicta. Isto é, como
manifestações circunstanciais sobre outras hipóteses de incidência do ITBI,
diversas das alienações de imóveis decorrentes de arrematações em hastas
públicas, em relação às quais o Acórdão não possui teor vinculativo algum. Isso
afrontaria os limites constitucionais que balizam a sua competência recursal, a
divisão de Poderes e o federalismo fiscal.
c) Limites processuais do acórdão:
aplicação restrita ao Poder Judiciário, conveniência ou não, de sua adoção
pelas administrações públicas municipais
Por fim, é relevante a discussão sobre a
vinculatividade da decisão às administrações públicas municipais. Os municípios
que possuírem leis prevendo a incidência do ITBI sobre o valor venal do imóvel
(calculado pela prefeitura) estão obrigados a acatar a decisão do STJ? Pode-se
adiantar que não.
A decisão do REsp Repetitivo não tem alcance
e grau de vinculatividade do Poder Executivo ou das administrações públicas no
Brasil. Entretanto, há diversos preceitos processuais insertos no Código de
Processo Civil brasileiro determinando a vinculação automática de todos os
graus do Poder Judiciário à matéria decidida em recursos repetitivos, inclusive
devendo ser deferida tutela da evidência (artigo 311, inciso III do CPC).
No entanto, as municipalidades não estão
obrigadas a alterarem a sua legislação. Deve-se ponderar, contudo, em em juízo
de conveniência e oportunidade, quanto ao seguimento ou não da decisão do STJ,
inclusive em vista de eventual busca pela superação total (overruling) ou
parcial (overriding) do precedente por decisão futura do próprio STJ e,
especialmente, do STF.
3) Conclusão
A análise do acórdão permite concluir:
1) O Acórdão proferido no REsp nº 1.937.821
não transitou em julgado, sendo objeto de Recurso Extraordinário interposto
pelo município de São Paulo, cujo pedido de anulação se baseia, principalmente,
em dois fundamentos:
a. O RESP em foco violou a hipótese de
cabimento prevista no inciso III, do artigo 105 da Constituição, não podendo
versar sobre tema genérico, abstraindo-se da causa decidida, nos termos do que
foi recém assentado pela Corte Especial do STJ no julgamento do incidente de
inconstitucionalidade nº 1.798.374;
b. O referido RESP não poderia realizar um
julgamento extra petita e muito menos promover uma reformatio in pejus, uma vez
que o único recorrente era o próprio município de São Paulo, e o julgamento do
IRDR ateve-se a critério totalmente distinto e limitado às arrematações;
2) Ainda que houvesse transitado em
julgado, o Acórdão proferido em Recurso Especial repetitivo não tem efeitos
vinculantes para as administrações públicas tributárias, nem mesmo para a do
município de São Paulo – havendo, todavia, o risco de maior velocidade de
futuras decisões em litígios judiciais, acolhendo automaticamente os critérios
adotados neste acórdão — caso transitado em julgado - ainda que os seus efeitos
sejam compreendidos de forma bem mais restrita da que está sendo difundida nas
mídias especializadas, restringindo-o aos casos de arrematações em hastas
públicas.
3) Diante das limitações processuais
impostas pelo critério da "causa decidida", nos termos do inciso III
do artigo 105 da Constituição de 1988, o Acórdão do RESP 1.937.821 só pode ser
entendido como válido e eficaz para as discussões acerca da base de cálculo do
ITBI para arrematações em hastas públicas, inclusive porque o entendimento
pretérito do STJ e de diversas legislações municipais já apontavam o montante
do lance vencedor do praceamento do imóvel como valor seguro para fins de
fixação da base de cálculo, considerando-o um procedimento formal realizado em
sede judicial, capaz de fornecer um valor objetivo e seguro, não disponível à
livre negociação e às subjetividades das partes, ainda possa ser criticado por
ser uma espécie de "venda forçada".
Ricardo Almeida Ribeiro da Silva é professor da pós-graduação em Direito
Tributário da Uerj/Ceped e do PJT/ABDF (Associação Brasileira de Direito
Financeiro), mestre em Direito Público pela Uerj, procurador do município do
Rio de Janeiro, assessor jurídico da Abrasf e advogado.
Fonte: ConJur