Entenda o que é o planejamento sucessório e porque os
testamentos são forma democrática e eficaz para colocá-lo em prática
Com a pandemia ocasionada pelo novo coronavírus e o cenário
atípico instalado no país e no mundo dela decorrente, a efemeridade da vida
tornou-se fato presente, intensificando a preocupação das pessoas quanto às
questões atreladas aos direitos sucessórios e a procura por meios seguros de
planejar a transmissão da herança. E a afirmação não decorre de uma percepção
isolada ou de simples elucubrações, mas de dados coletados pelo Colégio
Notarial do Brasil, que revelam um aumento de 134% no número de testamentos
registrados nos Cartório de Notas espalhados pelo país, apenas entre abril e
julho de 20201.
O planejamento sucessório, na definição de Rolf Madaleno,
"é ciência relativamente recente, que compreende um conjunto de projeções
realizadas em vida, para serem cumpridas como manifestação de um querer
especial, sobrevindo a morte do idealizador, sendo então cumprida sua vontade
em sintonia com seus antecipados desígnios, tudo com vistas ao bem comum de
seus herdeiros, construindo um ambiente de pacífica transição da titularidade
da herança, contribuindo o planejamento da sucessão para a melhor perenização
do acervo do espólio"2.
Os testamentos representam, talvez, a forma mais simples de
planejar a sucessão - isto é, estabelecer, dentro dos limites legais
existentes, como quero transmitir meu patrimônio após a morte. São negócios
jurídicos, como o são os contratos, por exemplo, cujo objetivo primordial é
privilegiar a vontade do testador, com aplicação apenas supletiva das
disposições legais genericamente estabelecidas.
A sucessão legítima, ou seja, aquela disposta na lei civil,
ampara-se em uma vontade presumida do morto: presume-se que, morrendo, o autor
da herança desejaria dispor dessa forma e em favor de certos e determinados
sujeitos o seu patrimônio, o que nem sempre é verdade. Já a sucessão
testamentária, ou seja, aquela que perpassa pela elaboração de testamento por
parte do autor da herança, esteia-se na sua vontade real, exatamente porque ela
é expressa formal e solenemente em documento destinado a esse fim.
Normalmente, os testamentos são feitos mediante escritura
pública, o que lhe confere maior segurança, na medida em que são lavrados perante
notário dotado de fé-pública, que certifica a plena capacidade mental e física
do testador, conferindo indiscutível validade ao documento e evitando alongadas
e desnecessárias discussões futuras que visem anulá-lo ou declará-lo nulo. O
testamento é arquivado junto à central de testamentos e seu teor, apesar do
caráter público da escritura, não pode ser consultado por terceiros antes do
óbito do testador, podendo ser alterado ou revogado pelo autor a qualquer
momento.
É possível, ainda, realiza-lo de forma particular ou
hológrafa, com a observância de requisitos específicos, timbrados no artigo
1.876 do Código Civil: ser redigido à mão ou por meio
mecânico; assinado de próprio punho pelo testador e lido por ele na presença de
pelos menos três testemunhas, que o subscreverão e confirmarão seu teor após a
morte do testador; não conter rasuras ou espaços em brancos que, se existentes
nos testamentos manuscritos, devem ser ressalvadas no texto, sob pena de
invalidade.
Sem embargo, não é recomendável a utilização dos testamentos
particulares, quanto mais como instrumento de planejamento sucessório, dada a
insegurança que decorre dessa forma de testar. É que a perda ou extravio do
documento ou, mesmo a eleição de testemunhas impedidas3 - o que não é
difícil de ocorrer, haja vista a relação próxima que os impedidos normalmente
detêm com o testador - pode ser causa de anulação do documento.
Infinitas são as possibilidades de gerir a transmissão do
patrimônio por testamento. Através dele, permite-se a inclusão de sucessores
pretendidos pelo autor da herança; o perdão aos indignos e, na contramão dele,
a deserdação; a declaração da natureza comum ou exclusiva de determinado bem; a
deliberação quanto aos bens que, preferencialmente, devem compor a legítima ou
integrar a parte disponível; a inserção justificada de cláusulas restritivas
sobre a legítima; a dispensa da colação de bens doados em vida aos
descendentes; a inclusão ou exclusão de determinados bens no pagamento da quota
hereditária com a fixação do modo de partilha; e até mesmo a declaração e o
reconhecimento da existência de eventual união estável, hetero ou homoafetiva,
ou de filiação, prevenindo conflitos futuros e dispendiosos em torno de tais
temáticas.
É possível, também, sujeitar a transmissão do patrimônio à
observância de certas e determinadas condições estabelecidas pelo autor da
herança ou, ainda, alijar sujeitos - inclusive os pais ou responsáveis legais -
da administração dos bens deixados aos filhos, além de determinar quais bens
devem compor o pagamento do quinhão de cada herdeiro, de modo que o próprio
testador defina a partilha, dentre inúmeras outras possibilidades, que variam
de acordo com as necessidades particulares do transmitente.
A despeito da gama de arranjos possíveis, em qualquer caso,
há que se observar a necessidade de preservar a legítima, norma expressa no
artigo 1.798 do Código Civil. A legítima corresponde à parcela da coletividade
de bens que integram a herança dos quais não se pode dispor, na existência de
herdeiros necessários. São herdeiros necessários, na literalidade do artigo
1.845 do Código Civil, os descendentes, os ascendentes e os cônjuges. São
também herdeiros necessários, na compreensão de maior parte da doutrina
especializada, os companheiros - aqueles que vivem em união estável -, por
força do julgamento do Recurso Extraordinário 878.694, que assentou a inconstitucionalidade do
art. 1.790 do Código Civil, equiparando o regime sucessório de cônjuges e
companheiros.
A adaptabilidade do testamento às mais variadas
necessidades, como instrumento de planejamento sucessório, é talvez sua característica
mais atrativa, e sua utilização não está restrita a grandes patrimônios,
podendo ser utilizada mesmo por aqueles que possuem um único bem. O baixo
custo, na comparação com outros instrumentos utilizados como formas de planejar
a sucessão, e a simplicidade do procedimento, que se constitui em único ato,
também o torna alternativa atrativa e, indubitavelmente, eficaz ao seu objetivo
principal.
Por fim, vale dizer que os pactos antenupciais ou contratos
de união estável, as doações, clausuladas ou não, a criação de holdings, os
contratos de previdência privada e de seguro de vida e, por fim, a própria
realização da chamada partilha em vida, são também meios eficazes de planejar a
sucessão e podem ser utilizados, inclusive, de forma conjugada com o
testamento. Garante-se, assim, da maneira mais segura, eficiente e
individualizada, que a vontade do autor da herança seja respeitada e
sobrelevada quanto aos desígnios do patrimônio que, no mais das vezes, leva-se
uma vida inteira para construir.
Fonte: Migalhas