O divórcio quebra a base objetiva do testamento feito no
momento do casamento? A pergunta, ainda sem resposta homogênea ou consolidada
pelos tribunais, encontra explicações e estudos extensos na doutrina. Segundo
especialistas, é possível prevenir futuras divergências nesse âmbito no momento
em que se faz o planejamento sucessório.
Diretora nacional do Instituto Brasileiro de Direito de
Família – IBDFAM, a tabeliã Priscila Agapito entende que, nos casos em que o
ex-cônjuge está citado no testamento, pode haver a caducidade da cláusula.
"Se o testador faz uma deixa beneficiando o seu cônjuge e vem a ocorrer o
divórcio, não subsiste mais a base objetiva do contrato de testamento."
Ela pondera que deve-se sempre observar a intenção e vontade
do testador. "Muitas vezes, as deixas são feitas à pessoa tal, que por
acaso é o cônjuge, e esta condição não é a relevante. Muitos casais nutrem
especial afeto e, ainda que haja o divórcio, a vontade era de beneficiar aquela
pessoa mesmo assim."
"Noutras não, tanto que vários testadores nos pedem que
frisemos a questão de que a deixa se dará apenas se continuarem casados. Outra
situação é se, apesar de haver o divórcio, o casal seguir em união estável?
Aqui, haveria a quebra da base? Cada caso é um caso", pontua Priscila.
A tabeliã fala de sua experiência profissional nessas
situações. "Já cheguei a lavrar testamentos em que o testador beneficiava
a sua ex-esposa, mãe de seus filhos. Não é nada excepcional. Mas não há que se
falar em anulação do documento, apenas ineficácia ou caducidade em relação
àquela cláusula específica", defende.
Redação substancial e exaustiva
Segundo Priscila Agapito, é possível prevenir este tipo de
situação fazendo uma redação substancial e exaustiva do testamento.
"Deixar claro se o testador deseja beneficiar o seu cônjuge, companheiro,
desde que essa situação perdure à época da morte, ou se deseja beneficiar a
pessoa em si, independentemente da condição que ostente na abertura da sucessão."
Segundo a especialista, também é possível e indicado se
prever o substituto testamentário, pois, no momento da morte, o herdeiro
instituído pode já ter morrido, renunciar a seu quinhão ou por qualquer outro
motivo não receber a herança. "Para que não pairem quaisquer dúvidas, o
ideal é que, se houver o divórcio, o testador lavre novo testamento, ou, como
sugerido anteriormente, se preveja uma cláusula expressa para o caso",
aconselha.
Anulação do testamento
A advogada e professora Karin Regina Rick Rosa, vice-presidente
da Comissão de Notários e Registradores, destaca que não existe previsão de
anulação e tampouco de ineficácia do testamento no caso de o beneficiário ser
ex-cônjuge do testador ao tempo da abertura da sucessão. "Portanto, a
separação, judicial ou de fato, ou o divórcio, por si só, não constituem causa
de anulação do testamento", explica.
No entanto, o artigo 1.897 do Código
Civil (Lei 10.406/2002) possibilita que o testador nomeie herdeiro ou
legatário sob condição, para certo fim ou modo, ou por certo motivo. Desta
forma, é possível uma disposição testamentária ter por motivo o fato de o
beneficiário ser cônjuge do testador.
"Neste caso, a mudança na condição poderá caracterizar
a quebra da base objetiva. E dizemos que poderá pois não é certo que isso
aconteça. A análise do caso concreto é que dirá efetivamente se mudaram as
condições fáticas do momento da manifestação da vontade para o momento da abertura
da sucessão", acrescenta Karin.
Para a especialista, a disposição testamentária que
beneficia pessoa certa, sem vinculá-la à qualidade de cônjuge, já é suficiente
para afastar uma interpretação de que a nomeação seja condicionada ou por
motivo. A advogada frisa, ainda, que o testador é livre para revogar, total ou
parcialmente, o testamento ou disposições testamentárias a qualquer tempo,
conforme o artigo 1.858 do Código Civil.
"Considerando que o testador tem a liberdade de dispor
e de mudar as disposições testamentárias a qualquer tempo, uma maneira de
tornar inequívoco seu desejo de manter o ex-cônjuge como herdeiro
testamentário, e trazer mais garantia ao cumprimento da vontade, é reafirmá-la,
o que poderá ser feito em novo testamento. Outra, é que no próprio momento da
disposição, o testador deixe expresso que o rompimento por separação ou
divórcio não afasta o direito hereditário do cônjuge beneficiário."
Entendimento dos tribunais
As duas especialistas comentam que, pela complexidade e
necessidade de análise casuística, não existe um entendimento consolidado nos
tribunais sobre o tema. Por outro lado, a matéria vem sendo amplamente
discutida no âmbito doutrinário por nomes como José Fernando Simão e Luiz Paulo
Vieira de Carvalho.
Em seu artigo "O
divórcio como quebra da base objetiva do testamento", Simão analisa a
questão e aponta para a complexidade e a necessidade de análise caso a caso.
"Se a comunhão de vida prossegue, se após o divórcio mantém-se, a
convivência more uxorio, cabe ao sobrevivente provar tal fato afastando a
presunção relativa de caducidade do testamento", defende ele.
Para Carvalho, não há perda da eficácia do testamento ou da
disposição testamentária que beneficia cônjuge quando ao tempo da morte o
testador encontrava-se divorciado, separado de fato ou judicialmente, ou até
mesmo com casamento declarado nulo, sob o argumento de que não necessariamente
houve rompimento dos laços de carinho, consideração e afeto entre os
ex-cônjuges.
Fonte: IBDFAM