Os direitos reais pertencem a uma categoria de direitos
identificada pelas suas características particulares e entre elas a tipicidade
assume enorme importância na regência dos direitos reais
O princípio da tipicidade, de acordo com Arruda Alvim, deve
ser entendido "como manifestação específica da legalidade no campo do
direito das coisas, i.e., os direitos reais precisam estar normativamente
previstos (CC/16, art. 674 e CC/02, art. 1.225); só existem, os direitos reais,
como tais, se a situação enquadrar-se rigorosamente na regra de direito -
subsumindo-se aos respectivos elementos definitórios - que os prevê".1
Explica José de Oliveira Ascensão que no antigo direito
vigorava o princípio do "numerus apertus", o que deu lugar a uma
floração de direitos sobre as coisas, especialmente as coisas imóveis, direitos
que, muitas vezes, representavam derivações ou divisão da propriedade num
domínio eminente e num domínio útil, próprias do feudalismo que estabelecia
obrigações de um sujeito em favor do outro. Contra essa situação se rebelou o
jusracionalismo e todo o corpo de doutrinas consagradas com a Revolução Francesa,
procurando a liberdade da terra contra os vínculos feudais. Conclui, portanto,
que: "O numerus clausus inscreve-se, ou pelo menos pode-se inscrever,
neste movimento. Abolidos os vínculos feudais e instaurada uma nova ordem dos
direitos sobre as coisas, um sistema fechado serve à maravilha para perpetuar
as conquistas obtidas: tudo o que não se adaptar ao esquema legislativo é
rejeitado. A alegação de que isso era uma maneira anti-histórica de proceder
seria de todo indiferente para uma mentalidade racionalista; e a reprovação da
coerção legal seria certamente rejeitada com a observação de que esta coerção
era o elemento necessário para se obter a liberdade - a liberdade da terra e do
seu explorador, desta vez."2
O princípio da tipicidade não está codificado e se dessume
razoavelmente do sistema, justificado por razões de ordem pública e econômica.
Em termos práticos se pode dizer que o direito real é aquele tipificado na lei,
que define por completo o seu conteúdo, fruição, meio de aquisição, transmissão
e extinção, e confere ao seu titular prerrogativas que caracterizam a relação
de poder (relação potestativa de proveito econômico) sobre a coisa,
assegurando-lhe obter diretamente, sem a intervenção de outrem (devedor), o
proveito econômico, ou parcela dele (nos casos de direito real limitado, como
p. ex. o usufruto), que a coisa pode oferecer. Consequentemente, não é direito
real aquela situação ou relação jurídica que não se identifica plenamente com o
tipo definido em lei. Vem daí a ideia de numerus clausus dos direitos reais, ou
seja, a ideia de que os tipos estão fechados no rol previsto em lei.
Esse princípio está na base dos direitos reais da
codificação civil francesa há dois séculos, sendo certo que os juristas
oitocentistas o consideravam fundamental para estabelecer limite rígido à
proliferação dos direitos reais atípicos que pudessem reconstruir a técnica
própria do ancien règime contra a propriedade do novo regime, plena, exclusiva,
sagrada e oponível a todos, vinculada a um único titular3. Esse princípio
servia bem ao sistema liberal e burguês diante do temor que tinha o novo
regime, que se instaurou com a Revolução Francesa, da volta ao estado anterior,
sobretudo quanto ao desmembramento da propriedade útil e do ressurgimento das
técnicas de matriz feudal voltadas a assegurar renda fundiária a classes não
produtivas, o que bem se vê nas destacadas palavras de José de Oliveira
Ascensão.
Evidentemente, o princípio da tipicidade não se justifica
nos dias de hoje pelas preocupações burguesas verificadas há mais de duzentos
anos. Não se imagina algum risco em nossos dias da volta do regime feudal da
propriedade. Mas é certo que a tipicidade dos direitos reais continua a valer
nos sistemas ocidentais de tradição romana-germânica. O que justifica ainda a
tipicidade dos direitos reais é a segurança das relações jurídicas e o valor
econômico que se tem na circulação dos bens. Por isso afirma o jurista italiano
Umberto Morello que permanece ainda hoje o risco que a proliferação dos
direitos reais pode comportar para a correta circulação dos bens, pois um
número excessivo de direitos reais substancialmente novos e de incerto conteúdo
não favorece a segurança das contratações e embaraça a alienação dos bens e o
recurso ao crédito. Uma eficiente circulação dos bens deve comportar a certeza
dos poderes que competem ao proprietário e aos titulares dos direitos reais
oponíveis a terceiros. Em caso contrário os adquirentes não saberão determinar,
pela deficiente informação sobre os aspectos críticos do negócio, o valor
correto do bem e os riscos inerentes à aquisição, assim como o credor não
saberá se a garantia que recebe pode assegurar o crédito de modo adequado4.
E com razão conclui Morello que o problema não é, portanto,
a organização eficiente da propriedade e dos novos direitos reais, mas
principalmente a possibilidade de dar informações claras sobre o conteúdo dos
direitos reais aos terceiros adquirentes, aos credores e aos interessados, ou
seja, o problema hoje é de comunicação. O princípio da tipicidade, portanto,
encontra hoje outras razões a justificá-lo e assume especial importância neste
cenário a publicidade desses direitos. Compreender a significativa mudança que
ocorreu com a evolução da tipicidade nos direitos reais permitirá fazer e
projetar a sua correta aplicação.
Verifica-se, hoje, nítida tendência em dar maior
elasticidade ao princípio da tipicidade. Procura-se superar a rigidez presente
na criação e modificação dos tipos de direitos reais com uma interpretação que
aproxima certas figuras novas daquelas previstas em lei, embora tecnicamente
diversas. Defende-se que o sistema dê acolhida e publicidade a novas figuras de
propriedade que vão surgindo, como foi o caso da multipropriedade (já
reconhecida), e, se pode lembrar, do leasing imobiliário e das restrições
convencionais incidentes sobre lotes e unidades condominiais autônomas. Há
outras figuras que igualmente reclamam publicidade, como é o caso da cessão de
créditos edificantes, muito comum hoje nos Municípios.
Essa tendência é difusa e pode ser encontrada nos principais
sistemas do civil law e do common law, como registra Umberto Morello. O jurista
italiano bem observa, depois de examinar detidamente as características dos
sistemas ocidentais, que o numerus clausus não é entendido em nenhum ordenamento
como um princípio idôneo a engessar o sistema exclusivamente nos direitos reais
regulados pela lei. É aceita uma certa flexibilidade e, portanto, a
possibilidade de reconhecer a legitimidade de um direito, cujos elementos
essenciais divergem daqueles previstos na lei para determinado tipo de direito
real, como direito real substancialmente novo, mas que se sustenta na prática
consolidada e que se apresenta suficientemente claro e definido quanto aos
poderes que o seu titular tem sobre a coisa5. E a partir dessa tendência,
Morello vê como adequada a definição do princípio como numerus quasi clausus
dos direitos reais.
O objetivo desta interpretação é dar operatividade ao
princípio da tipicidade em face da realidade mutante dos fatos sociais e favorecer
a circulação eficiente dos bens, dando a possibilidade aos adquirentes,
credores e interessados de conhecer com precisão os direitos oponíveis. Em
outras palavras, visa essa tendente interpretação valorizar a informação,
sabido que hoje a tipicidade é um problema de publicidade e comunicação.
Admitida relativa flexibilidade da tipicidade na criação e
modificação das figuras de direitos reais, não se pode imaginar que essa
liberdade não encontra limites e que pode ser exercida como ocorre com o
direito das obrigações. Embora se possa afirmar que vigora o numerus quasi
clausus, lembra Antonio Roman Garcia que a liberdade, como expressão da
autonomia da vontade, encontra limites, porque a relação jurídica nova deve
reunir objetivamente as características essenciais próprias da categoria jurídica dos direitos
reais, porque impossível aceitar que, fazendo uso dessa liberdade, se possa
chegar à configuração de tipos ambíguos ou confusos, que impeçam, na prática,
fixar com exatidão e alcance os próprios direitos constituídos, pondo em risco
a necessária segurança do tráfego jurídico.6
A propósito desta mudança importante na forma de ver a
tipicidade dos direitos reais com alguma flexibilidade, vale lembrar o caso
Maison de Poésie, julgado pela Corte de Cassação francesa em 2012.
Uma Fundação (A Maison de Poésie) vendeu um imóvel em 1932 e
estabeleceu uma cláusula, segundo a qual a vendedora poderia fazer uso de uma
parte do imóvel vendido. Esse direito
somente poderia ser extinto se o adquirente colocasse à disposição da
vendedora, gratuitamente, um outro imóvel com a mesma característica. A
adquirente demandou em juízo a extinção daquele direito, sustentando que em
favor de pessoa jurídica o direito de uso não pode ultrapassar mais de 30 anos,
como ocorre com o nosso usufruto (art. 1.410, III, CC). A Corte de Apelação de
Paris acolheu a pretensão do adquirente, afirmando que não havia um direito
real típico, mas a Corte de Cassação reformou a sentença para manter o direito
da vendedora, afirmando que, respeitada a ordem pública, o proprietário pode
criar direito de fruição (gozo) especial sobre o bem. Com esse julgamento
estabeleceu-se um debate na europa sobre numerus clausus em Direitos Reais.
A rigor, é difícil tipificar como Direito Real formas
especiais de fruição ou gozo não previstas em lei. No caso, o direito recaiu
sobre bem ainda não existente, mas a Corte de Cassação reconheceu esse direito
real especial de gozo, atípico, e assegurou o seu exercício perpétuo, como se
fora uma parcela do direito de propriedade do adquirente, que foi retido pela
alienante.
Pouco mais de dois anos daquele julgamento, surgiu um novo
caso na França. Uma empresa cedeu o uso de um transformador de energia elétrica
sem determinar o termo final desta cessão, que muito se assemelhava ao direito
especial de gozo do caso anterior. Depois de trinta anos, a empresa titular do
transformador pediu a sua restituição. O juiz aplicou o entendimento da
sentença Maison de Poésie e negou a pretensão. A Corte de Cassação, neste caso,
ao contrário do outro, entendeu que, à falta de um termo final, o direito se
extingue em trinta anos.
A decisão do caso Maison de Poésie animou a doutrina
francesa e os meios acadêmicos na europa quanto à possibilidade de criação e
reconhecimento de novos tipos de direitos reais de gozo. No entanto, logo a
Corte de Cassação francesa mudou o seu entendimento, o que levou o jurista
italiano Ermanno Calzolaio, que escreveu a respeito dessas decisões, observar
que no momento em que se discute a tipicidade dos direitos reais adequada aos
tempos atuais, se verifica o quanto ainda são resistentes as ideias do
passado.7
Cabe lembrar que a tipicidade dos fatos inscritíveis no
registro não se identifica com a tipicidade dos direitos reais.8 Como visto, a
tipicidade dos direitos reais se refere basicamente aos tipos e respectivo
conteúdo dos direitos previstos em lei, em rol taxativo (numerus clausus),
enquanto a tipicidade registral se refere aos fatos típicos registráveis, em
rol que se pode afirmar exemplificativo ou aberto.
Aqui existe uma diferença conceitual, como afirma Kioitsi
Chicuta, "e que tem causado inúmeras confusões, ou seja, nem todos os atos
de registro destinam-se a criar direitos reais. Alguns, por exemplo, como o
registro do contrato de locação onde consignada cláusula de vigência em caso de
alienação (art. 167, I, n. 3, da lei 6.015/73), geram apenas direitos pessoais
com efeito real. Nesse campo, sim, até mesmo para que a publicidade de situação
jurídica de imóvel seja a mais ampla e correta possível, é possível alargamento
do entendimento hoje vigorante. [...] Muitos confundem a taxatividade dos
direitos reais com a taxatividade dos atos inscritíveis no Registro de Imóveis.
Diariamente, nega-se a prática de atos de registro e ou de averbação sob o
argumento de que não estão expressamente previstos em lei, afirmando alguns que
tal praxe causa lesão a terceiros que, eventualmente, poderiam ser alertados
com a inserção de fatos relevantes e vinculados ao imóvel"9.
O direito registral não opera na seleção dos atos registráveis,
porque o seu verdadeiro campo de atuação é o procedimento registral. Não é a
quantidade dos atos suscetíveis de registro que traz a rigidez de um sistema de
segurança jurídica. Também não se registram direitos, mas sim fatos jurídicos
para publicar uma situação jurídica.
Compete à ciência do direito "a elaboração e
ordenamento de toda a matéria relativa aos direitos reais sobre bens imóveis,
tanto no ângulo de sua conformação substantiva, quanto do de sua configuração
formal, quer dizer, o tráfico jurídico daqueles tutelados pelo instituto do
registro da propriedade"10. Os fins do direito imobiliário são alcançados
através de um instrumento técnico, que é o registro, e a publicidade por esse
conferida.
A dificuldade de distinção entre a tipicidade dos direitos
reais e a tipicidade dos fatos inscritíveis tem levado o intérprete e o
operador do sistema registral a aceitar passivamente a ideia de que existe
igualmente uma rigorosa tipicidade dos fatos inscritíveis, e se nega registro
de títulos simplesmente porque não são encontrados no rol da Lei de Registros
Públicos. Esta cômoda solução que se adota em nome da segurança jurídica afasta
cada vez mais o registro da realidade e o faz perder o seu relevante papel de
oferecer informação segura para orientar as relações jurídicas.
Há meios adequados e efetivos para vencer com segurança esta
conservadora e defensiva postura dos registradores e juízes brasileiros que se
abrigam na letra da lei para não correr o risco da inovação. A jurisprudência e
a doutrina têm papel importante na definição dos tipos de direitos reais e dos
fatos inscritíveis, mas tem especial relevo nesse sentido a dinâmica atividade
das Corregedorias na atualização das Normas de Serviço e nas decisões
administrativas orientadoras da atividade notarial e registral.
A lei 13.097/2015 trouxe uma série de disposições que
valorizam as informações do registro, em favor do princípio da concentração da
matrícula e no sentido desse movimento de flexibilização da rigidez dos
direitos reais. Foi um bom sinal. Que venham os novos tempos.
__________
1 José Manoel de Arruda Alvim Neto. Princípios Gerais do
Direito das Coisas: Tentativa de Sistematização. Atualidades de Direito
Civil. V. I. Coord. Angélica Arruda
Alvim e Everaldo Augusto Cambler. Curitiba : Juruá, 2006, p. 178.
2 José de Oliveira Ascensão. A Tipicidade dos Direitos
Reais. Lisboa : Minerva, 1968, p. 74.
3 Umberto Morello. Trattato dei Diritti Reali. Vol I.
Diretto da Antonio Gambaro e Umberto Morello, Milano : Giuffrè Editore, 2008,
p. 67-69.
4 Umberto Morello, op. cit., p. 75-76.
5 Op. cit., p. 204.
6 Antonio Roman Garcia. La Tipicidad en los Derechos Reales.
Editorial Montecorvo, p. 75.
7 La Tipicità dei Diritti Reali: spunti per uma
comparazione. Rivista di Diritto Civile. Cedam. Anno LXII - N. 4 (2016),
1080/1095.
8 Para o aprofundamento do tema, me permito recomendar ao
leitor, de minha autoria e de Carlos Alberto Garbi Junior, Tipicidade dos fatos
inscritíveis, publicado in "Direito Notarial e Registral - Homenagem às
Varas de Registros Públicos da Comarca de São Paulo". Coord. Tânia Mara
Ahuali e Marcelo Benacchio. São Paulo : Editora Quartier Latin, 2016.
9 Kioitsi Chicuta. Os Direitos Reais e o Novo Código Civil -
A Locação e o Registro de Imóveis. In "O Novo Código Civil e o Registro de
Imóveis", sob coordenação de Ulisses da Silva, ed. Sergio Antonio Fabris,
2004, p. 100-101.
10 Angel Cristóbal Montes. Direito imobiliário registral.
Trad. de Francisco Tost - Porto Alegre: Sergio Francisco Fabris, 2005, p. 1.
Fonte: Migalhas