De forma recorrente os Tabelionatos de Notas são instados
a enfrentar pedidos para a lavratura de escrituras públicas, precedidas de uma
procuração outorgada em país estrangeiro, que não possui o chamado notariado
latino
Diante dos fenômenos da globalização e da
internacionalização dos mercados, com repercussões políticas, econômicas e
sociais, a desencadear uma crescente integração e intensificação entre países e
pessoas, surgem diversos questionamentos na rotina do profissional do Direito,
em especial nos Tabelionatos de Notas, que passam a deparar com situações
desafiadoras no trato da qualificação notarial exercida.
Nesse cenário, de forma recorrente os Tabelionatos de Notas
são instados a enfrentar pedidos para a lavratura de escrituras públicas,
precedidas de uma procuração outorgada em país estrangeiro, que não possui o
chamado notariado latino.
Emerge, nesse contexto, a dúvida relacionada com a
possibilidade, ou não, de o tabelião admitir procuração particular outorgada em
país estrangeiro, que não possui notariado latino, ostentando firma
reconhecida, apostilada na forma da Convenção de Haia, traduzida para o
português por Tradutor Juramentado e registrada em Registro de Títulos e
Documentos, para efeito de praticar ato notarial protocolar, que exija a forma
pública.
Na sistemática legal vigente, a prática de ato notarial
exige a observância de preceitos específicos, no plano da segurança jurídica,
evitando-se irregularidades documentais, que poderão repercutir nos negócios
jurídicos das partes interessadas, afetando a autenticidade, a validade e a
eficácia, por vício estrutural, particularmente, em relação aos atos
procedentes do estrangeiro, que serão consumados em solo pátrio.
No que se refere ao tema posto em discussão, o artigo 108,
do Código Civil, dispõe:
“Não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é
essencial à validade dos negócios jurídicos que visem à constituição,
transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor
superior a trinta vezes o maior salário-mínimo vigente no País”.
Na espécie vertente, cumpre assentar que a escritura pública
é da substância do ato, que será praticado no Brasil.
Por sua vez, no tocante à representação das partes, a regra
geral é a apresentação do instrumento público de procuração, tendo em conta que
a forma pública é indispensável para a validade do negócio jurídico.
A propósito da questão, convém lembrar que o artigo 657, do
Código Civil, assim estipula:
“A outorga do mandato está sujeita à forma exigida por lei
para o ato a ser praticado. Não se admite mandato verbal quando o ato deva ser
celebrado por escrito”.
Aliás, é sabido que, “para qualificar e reger as obrigações,
aplicar-se-á a lei do país em que se constituírem” (cf. artigo 9º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro),
cujo parágrafo 1º preceitua:
“Destinando-se a obrigação a ser executada no Brasil e
dependendo de forma essencial, será esta observada, admitidas as peculiaridades
da lei estrangeira quanto aos requisitos extrínsecos do ato”.
Na normatização pertinente, o parágrafo segundo do aludido
artigo estabelece que “a obrigação resultante do contrato reputa-se constituída
no lugar em que residir o proponente”.
Nesse contexto legal, cabe assinalar que se opera o mandato,
“quando alguém recebe de outrem poderes para, em seu nome, praticar atos ou
administrar interesses. A procuração é o instrumento do mandato” (artigo 653,
do Código Civil), deparando-se com a norma do artigo 655, C.C., segundo o qual
“ainda quando se outorgue mandato por instrumento público, pode
substabelecer-se mediante instrumento particular”.
A apresentação e a representação, nos atos notariais, sob a
égide dos princípios “ad solemnitatem” ou “locus regit actum”, nada obstante o
rigor formal que domina a matéria, sofre certo abrandamento, tornando-se menos
inflexível, no regime legal das procurações para serem utilizadas no exterior,
como se verifica da aplicação das normas da Convenção Interamericana a esse
respeito, adotada na cidade do Panamá, em 30 de janeiro de 1975, incorporada ao
Direito nacional, em 3 de agosto de 1994.
Nesse quadro normativo, um tabelião brasileiro poderia
admitir procuração particular, outorgada em país estrangeiro, com firma reconhecida
por notário local, apostilada na forma da Convenção de Haia, traduzida por
Tradutor Juramentado e registrada em Registro de Títulos e Documentos, para
efeito de prática de ato notarial protocolar que exija a forma pública, por
disposição da lei brasileira?
A resposta que se impõe, tendo em vista as peculiaridades do
caso concreto é no sentido afirmativo.
Assim é, considerando a incidência, na espécie, da
disciplina normativa da Convenção Interamericana sobre regime legal das
procurações para serem utilizadas no exterior, adotada na cidade do Panamá, em
30 de janeiro de 1975, pelos Governos dos Estados Membros da Organização dos
Estados Americanos, incorporada ao Direito pátrio, após submetida à apreciação
do Congresso Nacional, que a aprovou por meio de decreto legislativo 4, de 7 de
fevereiro de 1994, de que resultou o depósito do instrumento de ratificação do
ato multilateral mencionado, em 3 de maio de 1994, passando a vigorar no
Brasil, em 1º de junho de 1994, por força do Decreto Presidencial (Governo
Itamar Franco), datado de 3 de Agosto de 1994.
Os artigos 1 e 2, do anexo ao decreto, que promulgou a
referida Convenção, dão suporte jurídico e legal a essa conclusão.
Por seu turno, na ótica doutrinária, cabe destacar a lição
dos eminentes Professores André de Carvalho Ramos e Erik Frederico Gramstrup,
“in” Comentários à Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, Ed.
Saraiva, 2016, ao tratar do disposto no parágrafo 1º do artigo 9º da aludida
Lei, preconizando: “A forma essencial de um ato jurídico consiste no conjunto
de solenidades exigidas por lei para que o ato seja considerado válido e
eficaz”, prosseguindo no sentido que “o parágrafo 1º do artigo 9º excepciona
parcialmente essa regra ao prescrever que a forma essencial prevista na lei brasileira
(a lex fori) deve ser observada quando a obrigação constituída alhures tiver
que ser executada internamente”, rematando que “dúvida importante diz respeito
à validade da formalidade estrangeira equivalente (e não idêntica) a da lei
brasileira. Defendeu Hahnemann Guimarães (ex-ministro do STF) que deve ser
aceito, no Brasil, como equivalente à escritura pública, um ato lavrado nos
Estados Unidos por notário – embora não seja oficial público, mas que pela
regra local, tem poder de autenticar documentos”.
A propósito, a respeito da matéria, é elucidativo o v.
acórdão do colendo Superior Tribunal de Justiça, em hipótese similar ao tema,
pese embora a abrangência doméstica da situação, cuja ementa é a seguinte:
“CIVIL. CONTRATO DE COMPRA E VENDA. PROCURAÇÃO OUTORGADA POR
INSTRUMENTO PARTICULAR. VALIDADE DO NEGÓCIO. Nada impede que, na escritura
pública de compra e venda, o vendedor esteja representado por mandatário
habilitado ao ato por procuração outorgada em instrumento particular.
Precedentes do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça.
Recurso Especial não conhecido”. Votação unânime.
Aliás, esse precedente judicial já figurava na obra Código
Civil, sob a responsabilidade de Theotônio Negrão e de José Roberto Ferreira
Gouvêa, 25ª Ed., Saraiva, 2006, em anotação ao artigo 108, do Código Civil, 2ª,
nesses termos:
“Nos negócios jurídicos para cuja validade a escritura
pública é essencial, admite-se a representação das partes por procurador
nomeado através de instrumento particular. Nesse sentido: STJ – 3ª T. REsp.
414.100/SP, rel. min. Ari Pargendler, j. 3/4/03, não conheceram, v.u. DJU
9/6/03, pg. 266”.
Essa solução mais se ajusta ao caso em tela, em tempo de
pandemia mundial, que impede, há longo tempo, as viagens internacionais,
dificultando a ultimação de negócios, especialmente por se tratar de país de
origem destituído do notariado latino, não obstante a existência de Embaixada
Brasileira, ou Consulado, conforma a localidade, que atende, nesse particular,
apenas os brasileiros.
Poder-se-ia alegar, contra essa definição, a decisão
judicial da Segunda Vara de Registros Públicos da Capital, nos autos do
processo de Pedido de Providências formulado por Aline Formiga Perez Leal
(0028396-80.2020.8.26.0100), proferida pelo ilustre Juiz de Direito, Dr.
Marcelo Benacchio, mas esse óbice é ininvocável na hipótese, tendo em conta a
ausência de discussão e de deliberação da questão, na aludida manifestação
judicial, que ora se coloca à luz da citada Convenção Interamericana do Panamá.
O ponto nuclear da controvérsia enfrentado pelo d. e culto
Juizo da Segunda Vara de Registros Públicos envolveu a recusa, julgada acertada
pela Corregedoria Permanente, por parte de um tabelião de Notas em lavrar
escritura pública de divisão amigável, tendo por base apresentação de
procuração particular.
A rigor, na referida decisão não houve enfrentamento direto
da incidência das normas da Convenção Interamericana, de tudo se inferindo que,
no exercício da qualificação notarial, o tabelião poderá abrandar e tornar
menos inflexível a necessidade de procuração na forma pública, à luz da
incidência da disciplina normativa contemplada na Convenção, para gerar
eficácia extraterritorial da procuração outorgada por estrangeiro, em país que
não adota o notariado do tipo latino.
Vale dizer, naquele caso, a fundamentação legal foi diversa.
Em suma, não se cuida de afronta à decisão normativa, na
esfera correcional, nem cabe cogitar de temor a esse título, à vista do quadro
fático e jurídico, e da especificidade da solução alvitrada.
Por conseguinte, sustento o entendimento de que a lavratura
do ato notarial descrito é perfeitamente cabível, sem ofensa aos preceitos
legais e às normas administrativas em vigor.
Fonte: Migalhas