Uma relação afetiva mantida por 40 anos não é suficiente
para comprovação post mortem de união estável. A Primeira Turma da 4ª Câmara
Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás – TJGO confirmou decisão de
primeiro grau para negar o pedido feito por uma mulher a fim de ser reconhecida
como companheira de homem já falecido.
A autora da ação alegou que viveu em união estável com o de
cujus por aproximadamente quatro décadas. A filha do homem contestou o pedido,
alegando que o pai manteve vida de solteiro e nunca quis se casar. O
relacionamento, na visão divergente, seria apenas um namoro, já que o casal
sequer morava na mesma residência.
Por meio de provas e testemunhas, a filha conseguiu
comprovar que o relacionamento mantido pelo casal não poderia ser considerado
união estável. Em sua decisão, o juiz relator Eudélcio Machado Fagundes acatou
tais argumentos e entendeu que a relação era esporádica e desprovida de
estabilidade. O voto foi seguido por unanimidade pela Turma.
“Como afirmado pelo julgador de origem, o conjunto probatório
trazido pela parte recorrente mostra-se frágil, imprestável à comprovação da
tese vertida na inicial, suficiente apenas a provar que houve relacionamento
afetivo, mas não consubstanciada a união nos moldes de uma entidade familiar.
De modo que a falta de prova concreta da alegada vida familiar, torna inviável
a declaração judicial de união estável e partilha dos bens adquiridos neste
período”, afirmou.
Ao confirmar a decisão de primeiro grau, o magistrado negou
os pedidos feitos pela autora, majorando ainda os honorários em sede recursal
para R$ 2,5 mil. “Portanto, incumbia à demandante comprovar a presença dos
elementos caracterizadores da união estável, demonstrando os fatos
constitutivos de seu direito. E, como relatado, o conjunto probatório é excessivamente
frágil para se reconhecer a união estável e aplicar efeitos próprios do
relacionamento de pessoas que constituíram uma mesma família”, finalizou.
União estável independe de tempo
A filha do homem foi representada pela advogada Chyntia
Barcellos, segunda vice-presidente da Comissão de Direito Homoafetivo do
Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM. Para a especialista, a
decisão foi uma “verdadeira aula sobre o instituto da união estável, que vai
além do namoro”.
“Independentemente do tempo de convivência, é preciso
existir entre o casal de forma mútua a affectio maritalis, que segundo ele
constitui princípio norteador do casamento civil que engloba os conceitos de
fidelidade recíproca, vida em comum, mútua assistência (moral, material ou de
qualquer ordem), além do sustento e guarda de eventual prole”, destaca Chyntia.
Ela explica que, embora seja inegável o relacionamento
afetivo das partes, o objetivo de constituir uma família, requisito essencial
presente no artigo 1.723, do Código Civil (Lei 10.406/2002), não restou provado.
Outros argumentos apresentados pela autora da ação também
não foram suficientes para legitimar o reconhecimento de união estável. “A
autora apresentou várias fotos de viagens, acompanhamentos em médicos do
companheiro falecido, moradias próximas, auxílio na decoração da casa do
companheiro”, resume Chyntia.
Incongruências na alegação
As provas nos autos, segundo a advogada, não demonstram nada
além de um namoro de longo período. “Ainda assim, a alegação de 40 anos também
foi revestida de várias incongruências, a cada defesa a parte alegava um
período de convivência, chegando a dizer que ajudou na criação a filha do
companheiro, quando veio conhecer esta aos 35 anos de idade.”
“O requisito não se sustentou também porque a autora da ação
não conseguiu comprovar motivo justificado para o casal não morar juntos, não
provou dependência financeira ou assistência mútua, nenhum bem do companheiro
teve qualquer esforço dela ou foi registrado em ambos os nomes”, acrescenta
Chyntia.
Também não existia qualquer documento público que
comprovasse a suposta união, de acordo com a advogada. “Nem contas conjuntas,
nem declaração no Imposto de Renda, nem testamento ou até mesmo um contrato
particular de união estável. Não eram dependentes recíprocos em planos de
saúde.”
“Por fim as testemunhas da autora foram contraditadas e apenas
uma única compromissado, o que o relator entendeu como entrechoque de provas
fazendo prevalecer as alegações das testemunhas da filha/herdeira, sendo que
uma delas, alegou relacionamento com o falecido por 30 anos”, detalha Chyntia.
Incidência de divergências sobre uniões homoafetivas
Divergência, mesmo estando ambas as partes vivas, sobre se
seus relacionamentos configuram ou não união estável costumam aparecer com
frequência na Justiça. “Existe mesmo em vida, em caso de separação do casal,
questionamentos sobre a real configuração jurídica da relação, para além da
existência do afeto e do tempo como vimos neste caso. Isso ocorre tanto nas
relações heteroafetivas, mas em especial de forma muito recorrente nas relações
homoafetivas”, observa Chyntia Barcellos.
Neste sentido, ela lembra o reconhecimento das famílias
homoafetivas pelo Supremo Tribunal Federal – STF, em maio de 2011, e a
possibilidade do casamento civil de acordo com a Resolução 175 do Conselho
Nacional de Justiça – CNJ. “Porém, tudo isso ainda é muito recente e muitos
casais vivem na invisibilidade e sem formalização dos vínculos”, argumenta.
Há caminhos capazes de coibir esses desentendimentos,
evitando a judicialização, segundo a advogada. “Desde o início da minha atuação
na área de direitos LGBTI, digo que o documento mais importante de qualquer
casal é a escritura pública de união estável, que elege o regime de bens e pode
servir como o início de um planejamento patrimonial para essas pessoas, que
podem no futuro ou dissolver seus vínculos ou falecer deixando o outro sem o
devido amparo”, conclui Chyntia.
Fonte: IBDFAM