Lei que altera a proteção dos dados de todos os brasileiros
entrou em vigor sem que houvesse orientação da Autoridade
Na última sexta-feira (18/9), a Lei Geral de Proteção de
Dados (LGPD) passou a fazer parte do rol de responsabilidades legais que
serviços públicos e privados são obrigados a cumprir no Brasil. Desde então,
uma preocupação em torno da insegurança jurídica sobre a implementação dessa
complexa legislação tem dominado os debates em diversos setores da economia
brasileira.
Desde o início das discussões do que viria a ser a LGPD, lá
nos idos de 2010, especialistas em segurança de dados dizem que as previsões da
lei têm o potencial de transformar profundamente a cultura da sociedade acerca
da coleta e do tratamento de informações privadas dos cidadãos. A legislação
tende também a colocar o Brasil no mapa da economia digital mundial.
É natural que uma lei nova constituída por uma complexa rede
de previsões legais como é o caso da LGPD suscite uma série de dúvidas para sua
implementação. Por este motivo, a própria legislação estabeleceu a criação da
Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), que tem por função “zelar,
implementar e fiscalizar” o cumprimento da LGPD em todo o território nacional.
Ficou ainda a cargo da autarquia regulamentar dezenas de
artigos previstos na lei, além de elaborar diretrizes para a Política Nacional
de Proteção de Dados Pessoais e da Privacidade, dentre outras
responsabilidades.
O problema é que a LGPD entrou em vigor, mas, até agora, a
ANPD só está estruturada no papel, por meio do Decreto Nº 10.474, de 26 de
agosto de 2020.
Para que o órgão cumpra sua função, ainda é necessário que a
Presidência da República indique os nomes dos cinco membros técnicos que irão
compor o Conselho Diretor. Procurada pelo JOTA, a Presidência da República não
informou qual é a previsão para a designação dos membros.
Após a escolha dos nomes, os indicados devem passar por uma
sabatina no Senado Federal, que irá aprovar ou rejeitar os nomes. Só depois é
que haverá efetivamente a posse dos membros da ANPD. Em seguida, a Autoridade
também precisa criar um Conselho Nacional de Proteção de Dados Pessoais, um
órgão consultivo que contará com a participação de vários setores da sociedade
civil.
“A ANPD tem competências extremamente relevantes nessa
legislação. O que acontece é que teremos a LGPD aplicada sem que haja a
autoridade para regulamentar artigos da legislação que são subjetivos”, diz
Thomaz Côrte Real, consultor jurídico da Associação Brasileira das Empresas de
Software e um dos membros da Frente Empresarial em Defesa da LGPD e da Segurança
Jurídica.
Especialistas em proteção de dados e advogados ouvidos
pelo JOTA avaliam que há
uma forte tendência de judicialização em relação a pontos específicos da
legislação. A Lei 14.010/2020 estabeleceu
que as sanções administrativas, previstas nos artigos 52, 53 e 54, como a
aplicação de multa de até 2% do faturamento bruto da empresa, só entrarão em
vigor a partir de agosto de 2021.
Nada impede, contudo, que outros questionamentos sobre a
aplicação da LGPD sejam ajuizados por Ministérios Públicos, Procons, Secretaria
Nacional de Defesa do Consumidor e até mesmo pelos próprios detentores dos
dados, via ação judicial.
“Como a ANPD tem função orientativa e educativa, seria
importante que ela construísse junto com setores da economia como a legislação
vai funcionar. Sem a autoridade, os principais efeitos podem ser um aumento da
insegurança jurídica, ao mesmo tempo em que gera um potencial de
judicialização, já que a Constituição Federal dispõe que não se pode excluir da
apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”, diz Marcela
Mattiuzzo, sócia responsável pela área de proteção de dados no escritório VMCA.
E essa movimentação já começou. Na segunda-feira (21/9), foi
ajuizado no Tribunal de Justiça de Pernambuco um procedimento comum cível (nº
0060336-35.2020.8.17.2001) contra um consórcio de transportes de
passageiros de Recife por violação aos princípios de proteção de dados. A ação
questiona a legalidade de um procedimento adotado no transporte público da
capital pernambucana de implementar um sistema de biometria facial nos ônibus,
com a intenção de evitar fraudes e o uso indevido de cartões de passagem por
terceiros.
Na peça, o advogado, que representa um estudante, diz que
ele foi impedido de ter acesso ao benefício da meia-passagem por não ter
concordado em registrar sua biometria facial. Segundo a defesa, o demandante
questionou uma atendente da empresa sobre a política de privacidade e de
tratamento dos dados pessoais. O funcionário, contudo, alegou que não tinha
acesso a tais documentos.
“No caso relatado, a biometria facial do autor trata de
dados sensíveis (art. 5º, II da LGPD), de tal modo que para o tratamento deste
dados devem ser observados os princípios destacados no art. 6º e a Seção II
(arts. 11 a 13) da supracitada lei”, escreveu o advogado na petição.
O artigo 6º em questão trata dos princípios no tratamento de
dados, que devem respeitar finalidade, adequação, necessidade, livre acesso,
qualidade dos dados, transparência, segurança, prevenção, não discriminação,
responsabilzação e prestação de contas. Já a seção II citada determina a forma
como dados sensíveis devem ser coletados e tratados.
Na mesma segunda-feira (21/9), o Ministério Público do
Distrito Federal e Territórios (MPDFT) também entrou com uma Ação Civil Pública
contra uma empresa que comercializa indevidamente dados pessoais de
brasileiros. A petição, assinada pelo Promotor de Justiça e coordenador da
Unidade Especial de Proteção de Dados e Inteligência Artificial, Frederico
Meinberg, também cita previsões da LGPD e do Código de Defesa do Consumidor
para solicitar a exclusão dos dados. (Leia
a íntegra)
Na peça, Meinberg alega que a ação tem um formato
preparatório de uma futura ação civil pública por reparação de danos coletivos.
Na terça-feira (22/9), contudo, o juiz Wagner Pessoa Vieira, da 5ª Vara Cível
de Brasília, negou a ação protocolada pelo MPDFT alegando que o domínio em
específico consta como em “manutenção”. (Leia
a decisão judicial na íntegra)
“Esse fato, provavelmente, decorre da circunstância de que,
com o recente início de vigência da Lei 13.709/18, ocorrido em 18/09/2020
(sexta-feira passada), os responsáveis pelo sobredito sítio devem estar
buscando adequar os seus serviços às normas jurídicas de proteção de dados
pessoais”, escreveu o magistrado.
Também na terça-feira (22/9), o Ministério Público Federal
instaurou um procedimento administrativo para acompanhamento informacional da
legalidade, regularidade e conformidade na aplicação da LGPD em relação às
empresas que atuam na mineração de dados e no fornecimento de inteligência
mercadológica. (Acesse a
portaria na íntegra).
“Historicamente, os órgãos de proteção e defesa do
consumidor já eram atuantes em relação à proteção de dados, antes mesmo da
vigência da LGPD, mas usavam como base o Código de Defesa do Consumidor e o
Marco Civil da Internet. Agora, com a vigência da lei de proteção de dados,
essa atuação tende ser mais intensa”, diz Roberta Feiten, sócia das áreas de
direito do consumidor e proteção de dados pessoais do Souto Correa Advogados.
Sem ANPD: pontos críticos
A LGPD é composta por 58 artigos que deliberam sobre o tema
de proteção de dados. Apesar de ainda não haver um consenso sobre a quantidade
exata de disposições que a ANPD precisará fazer, há alguns temas que são mais
urgentes de regulamentação, segundo afirmam os advogados e especialistas ao
JOTA.
Um deles, por exemplo, é determinar quais serão as empresas
que terão autorização para dispensar a chamada “figura do encarregado”, como
consta na legislação. Esse cargo consiste em fazer a ponte entre empresa e
consumidor, ANPD e outros envolvidos na legislação. Provavelmente, empresas de
pequeno porte não precisarão designar alguém para esta função, mas, sem a ANPD
atuante, ainda não é possível ter certeza.
A lei estabelece, ainda, a necessidade de adoção de “padrões
de segurança da informação”, mas não delimita qual será o entendimento acerca
desta previsão. Outro ponto delicado envolve a transição das chamadas “bases de
dados legadas”, que são as informações que as empresas detêm anteriores à
vigência da LGPD e, segundo o texto da legislação, dependem de regulamentação
por parte da ANPD.
As bases legais da LGPD, que irão legitimar a coleta e o
tratamento dos dados pelas empresas — como, por exemplo, o princípio do
legítimo interesse — também seguem como conceitos em abertos. “O legítimo
interesse é uma base legal de suma importância e é necessário que haja uma nota
técnica da ANPD delimitando o que isso significa na prática”, diz Laura
Schertel Mendes, professora da UNB e diretora do Centro de Direito, Internet e
Sociedade do IDP.
Segundo ela, a ANPD precisa se manifestar com urgência sobre
o Artigo 49 da LGPD, que determina que os sistemas utilizados para o tratamento
de dados pessoais devem ser estruturados de forma a atender aos requisitos de
segurança, aos padrões de boas práticas e de governança.
“Mas que tipo de requisitos são esses? Como as empresas
podem ser proativas desde a concepção do projeto de proteção de dados, sem
esclarecer esses pontos?”, afirma Mendes.
Na sua avaliação, o risco é que, sem a ANPD, os
questionamentos cheguem no Judiciário de forma desestruturada. “Se a Autoridade
estivesse ativa, as demandas iam chegar, mas haveria já uma posição clara sobre
o entendimento da legislação. Ao contrário, devemos observar diversas decisões
judiciais, que defendem argumentos muito diferentes. É como se a lei ainda
precisasse ser concretizada”, avalia.
O fato de a legislação se aplicar para toda a economia
brasileira traz também o desafio de aplicação para cada setor de atividade,
segundo Renato Leite Monteiro, diretor do Data Privacy Brasil. Para o
especialista, o melhor caminho seria que os “diferentes setores elaborassem
códigos de conduta com base em interpretações da lei, mas levando em conta as
particularidades de cada atividade”. “Isso poderia ser levado à ANPD para
validação”, diz Monteiro.
Reivindicações
Com as incertezas jurídicas em torno da LGPD, um grupo de
empresários reuniu 70 associações de diversos setores da sociedade para criar a
Frente Empresarial em Defesa da LGPD e da Segurança Jurídica.
Ao longo das últimas semanas, eles têm feito interlocuções
com o governo e com o Congresso Nacional para dar mais celeridade ao processo
de desenvolvimento da ANPD. Dentre as reivindicações estão que a escolha dos
nomes para compor a Autoridade seja baseada em critérios técnicos, além disso
pede que o órgão entre em vigor o mais rápido possível.
“A União Europeia tem cerca de 40 anos de tradição de lei de
proteção de dados pessoais e mesmo assim houve um período de dois anos para
implementação. Aqui no Brasil temos zero tradição de privacidade e a lei entra
em vigor antes da criação da autoridade. O cenário é preocupante, porque boa
parte dos trabalhos de adequação atuais tem sido feitos a partir do que se acha
que vai ser a futura regulamentação”, diz o cientista político Andriei
Gutierrez, um dos membros da frente empresarial.
Fonte: Jota