Objeto
Antes de tudo, registramos nossa alegria em poder divulgar
uma importante reflexão sobre Direito Testamentário, assunto que merece
demasiada atenção em razão de, nesse ramo do Direito Civil, a adoção de uma
postura intervencionista na autonomia da vontade poder gerar resultados
catastróficos. A satisfação é maior em poder tratar do tema em um dos espaços
mais importantes do Direito Civil: esta riquíssima coluna, coordenada pela Rede
de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo, sob a batuta do Livre-docente
Otávio Luiz Rodriguez Junior.
Tratamos aqui do designamos de princípio da vontade soberana
do testador.
2. Princípio da vontade soberana do testador e o
censurável “testamento magistral”
Chamamos de princípio da vontade soberana do testador o
prestígio que deve ser dado à manifestação de vontade expressada no testamento[1]. Deve-se prestigiar, acima de tudo, a
vontade do testador, segundo o princípio da vontade soberana do testador.
Decorrem desse princípio várias consequências:
(1) é admitida a revogação do testamento a qualquer momento
(art. 1.969, CC);
(2) é determinado que, no caso de cláusula testamentária
dúbia, deve prevalecer a interpretação mais compatível com a vontade do testador
(art. 1.899, CC);
(3) irregularidades formais na lavratura do testamento que
não coloquem a suspeição a fidedignidade da manifestação de vontade não devem
acarretar a invalidade do testamento;
(4) as hipóteses de rompimento do testamento (“revogação
presumida”), previstas nos arts. 1.973 ao 1.975 do CC, são taxativas na lei e
devem ser interpretadas de modo restritivo[2];
(5) se for viável, com base em outros documentos ou em fatos
inequívocos, for viável sanar erros na designação do sucessor ou da coisa
legada, o juiz deve fazê-lo, tudo em nome do princípio da conservação do
negócio jurídico e do princípio da vontade soberana do testador (arts. 1.903 e
1.909, CC);
(6) apesar de a substituição fideicomissória se destinar a
concepturos, o parágrafo único do art. 1.952 do CC, em prestígio à vontade
soberana do testador e à conservação do negócio jurídico, preserva o testamento
se o fideicomissário já tiver nascido ao tempo da morte do testador.
Entendemos que esse princípio é uma exacerbação do princípio
da autonomia da vontade, pois, enquanto este foca-se em contratos e é mais
sensível aos limites da função social à luz do art. 421 do CC, aquele atenta
para a vontade individualista e, por vezes, egoísta do testador.
Propositalmente o legislador não fez menção à função social ao tratar da
sucessão testamentária, ao contrário do que fez ao tratar de contratos (em
relação aos quais o artigo 421 do CC ergue a função social como um muro
limitador da liberdade contratual).
Isso não significa que a vontade do testador possa ferir
normas de ordem pública nem que ela não tenha de deferir reverência alguma à função
social. De modo algum!
O que isso quer dizer é que o juiz, ao avaliar a vontade do
testador, deve buscar censurá-la apenas em caso de violação de regra (textual)
de ordem pública ou em situações de gritante vulneração a princípios (como o da
função social).
Em relação às regras de ordem pública, podem-se citar a
obrigatoriedade de respeito à legítima (artigos 1.789 e 1.846, CC), às
hipóteses de falta de legitimação sucessória testamentária (artigos 1.801
e 1.802, CC) e às regras de disposição testamentária (artigos 1.897 a
1.911, CC).
Já no tocante às gritantes violações a princípios, o juiz
tem de ser extremamente acanhado, muito mais do que seria a analisar um
contrato, pois o testamento é, sobretudo, um veículo de expressão da vontade
egoísta do testador. Não fosse assim, e o próprio legislador teria
expressamente replicado o artigo 421 do CC ao disciplinar a sucessão
testamentária, afirmando que "a liberdade testamentária será exercida nos
limites da função social".
Testamento versa sobre parte disponível e, por isso, a sua
destinação deve ir para quem o testador quiser, independentemente do motivo.
Não se deve emitir juízos de valor acerca da justiça ou da nobreza da vontade
do testador. Tampouco se pode ousar desrespeitar a vontade do testador por
conta de seu egoísmo ou de sua insensibilidade com outras pessoas mais
vulneráveis financeira, social ou emocionalmente. Testamento é reino do
egoísmo, império em que só se admitem limitações por regras textuais ou por
ululantes desrespeitos a princípios.
Com a autoridade de estar entre os mais respeitados
civilistas em matéria sucessória no Brasil, o Livre-docente da USP José
Fernando Simão condena o que ele designa de "testamento magistral",
assim entendida a situação em que o magistrado, com seu intervencionismo
decorrente do manuseio equivocado de princípios jurídicos, subverte a vontade
do testador e impõe a própria, tornando-se o verdadeiro testador[3].
3. Aplicação prática
3.1. Flexibilização de formalidades do testamento
O testamento é ato extremamente solene.
A depender da espécie de testamento (público, particular,
cerrado ou especiais), a lei impõe a observância de rigorosos requisitos
formais, como a obrigatoriedade de o testamento público ser lido, em voz alta,
pelo tabelião ao testador e às testemunhas com registro desse fato na cédula
(artigo 1.864, I, CC) ou como a existência de, no mínimo, 3 testemunhas
instrumentárias no testamento particular (artigo 1.876, § 1º, CC) ou de 2
testemunhas no testamento público (artigo 1.864, CC).
A formalidade destina-se a assegurar a fidedignidade das
declarações do testador, especialmente em razão do fato de que o testamento só
virá a ser cumprido após a morte do testador. Sem essas solenidades, o risco de
fraudes seria maior: forjar fraudulentamente um testamento em nome de quem já
morreu seria mais fácil diante da provável ausência de pessoa capaz de produzir
provas em contrárias.
Entretanto, em nome do princípio da vontade soberana da
vontade do testador, é necessário admitir flexibilizações a depender do caso
concreto, como vem fazendo o STJ[4].
De fato, a inobservância de formalidades do testamento não
gera, por si só, sua invalidade, se a cédula foi assinada pelo testador e se
inexistem elementos para suspeitar da capacidade mental do testador e da
manifestação de sua vontade. O próprio testamento de emergência, previsto no
artigo 1.879 do CC, dá sinal de que se devem admitir flexibilizações
formais no caso concreto, ao permitir que o juiz confirme, em circunstâncias
excepcionais declaradas na cédula, o testamento particular lavrado sem
testemunha instrumentária alguma, desde que tenha sido escrito e assinado pelo
testador de próprio punho.
Não se pode, porém, ser açodado nessas contemporizações,
pois as formalidades se destinam a evitar fraudes e, por isso, flexibilizá-las
é sempre uma tarefa sensível e perigosa, similar a uma cirurgia no cérebro.
Simão, ilustrando a censurável figura do testamento
magistral, critica decisão de um juiz que, amparando-se no voluntarista terreno
de princípios, subverte a vontade da testadora que havia contemplado apenas
cinco netas havidas na constância do casamento dos filhos e que propositalmente
deixara de agraciar duas netas nascidas por relações fora do casamento. O juiz
entendeu que a avó não poderia discriminar as duas netas, pois a Constituição
Federal proibiria diferenciação entre filhos quanto à origem de sua filiação
(legítimos, ilegítimos, adotados etc.).
Realmente, a decisão não singrou o caminho mais adequado.
Se estivéssemos diante de uma lei que excluísse da sucessão
legítima filhos havidos fora do casamento, essa lei seria inconstitucional,
pois as leis têm de seguir a Carta Magna. Todavia, quando estamos a falar de
testamento (e não de uma lei), estamos no reino do egoísmo patrimonial do
testador e, por isso, qualquer interferência do Estado-juiz na soberana vontade
do testador deve ser extremamente comedida e restrita a casos de violação de
regras (textuais) de ordem pública ou de gritantes violações de princípios.
A propósito, José Fernando Simão lembra que, na Alemanha, o
Tribunal Constitucional foi expresso em afiançar que, em se tratando de
sucessão testamentária “não está o autor da herança obrigado pela Constituição
ao tratamento igualitário de seus descendentes”[5].
Se o motivo se fundar em alguma discriminação de índole
racial, entendemos que essa motivação é irrelevante se não tiver sido
consignada expressamente no testamento, pois, além de essa explicitação textual
ser desnecessária, ela serviria para externalizar um valor totalmente censurado
na sociedade (que, na história, já sofreu horrores por conta desse tipo de
discriminação). Um testamento que expressamente consignasse uma discriminação
racial como causa da atribuição patrimonial deveria ser considerado nulo por
ser uma afronta explícita ao Estado de Direito.
Com efeito, se o testador não explicita o torpe motivo
interior que anima a sua atribuição patrimonial, o testamento deve ser tido por
hígido, ainda que seja notório que a sua motivação se fundou em motivos de discriminação
racial. Se, por exemplo, um testador decide deixar toda sua parte disponível a
um neto ocidental, o fato de ele não ter contemplado o seu outro neto asiático
é irrelevante, ainda que se comprove que o motivo interior (e não explicitado
na cédula testamentária) é a antipatia racial do testador. O testamento é
válido e não cabe ao juiz invalidar o testamento ou subverter a vontade do
testador, determinando a transferência de metade da deixa testamentária ao neto
asiático. Magistrado não é testador: testamento magistral não é lícito!
Trata-se de um desdobramento do princípio da vontade
soberana do testador.
A propósito, José Fernando Simão, com refinada ironia
— típica de mentes geniais —, averba que, se deferíssemos aos juízes o
poder de controlar a "justiça” da opção do testador, teríamos os seguintes
exemplos equivocadíssimos:
- se eu testar a parte disponível em favor de meu filho
(sexo masculino) e não de minha filha (sexo feminino), haveria nulidade da
deixa por sexismo;
- se eu testar a parte disponível em favor de meu amigo
caucasiano e não de meu amigo negro, haveria nulidade da deixa por racismo;
- se eu testar a parte disponível em favor de meu amigo
heterossexual e não de meu amigo homossexual, haveria nulidade da deixa por
homofobia;
- se eu testar a parte disponível em favor de meu filho
maior e não de minha filha menor, haveria nulidade da deixa por sexismo e por
desproteger o incapaz." [6]
Acrescentaríamos a esse rol de exemplos de incompatibilidade
com o princípio da vontade soberana do testador o seguinte:
- se eu deixo uma elevadíssima fortuna correspondente à
minha parte disponível para um vizinho riquíssimo, poderia o juiz, em nome da
função social e em ato de Robin Hood, redirecionar parte dessa gorda deixa
testamentária a pessoas paupérrimas.”
É triste saber que, no interior, haja pessoas com
sentimentos torpes de discriminação racial e de desdém aos pobres. Todavia, não
cabe ao Direito punir alguém por suas motivações interiores, salvo se elas
forem externadas por meio juridicamente relevante. Em matéria de sucessão
testamentária, o legislador quis prestigiar o egoísmo e o individualismo do
testador, deixando um espaço colossalmente atrofiado para princípios
intervencionistas. Trata-se de uma opção legislativa em, ao conciliar os
diversos princípios constitucionais, prestigia o respeito à última vontade da
pessoa como uma manifestação da sua dignidade. Não cabe, em regra, ao
magistrado questionar a composição feita pelo legislador entre os diversos
valores constitucionais concorrentes[7].
Enfim, o farol principiológico na Sucessão Testamentária é o
respeito ao último desejo do testador, ainda que se trate de alguém que, por
sua indigência moral interior, partiu sem deixar saudades.
Fonte: Consultor Jurídico