Não é novidade que a ascensão informacional já é capaz de
propiciar mecanismos para a operacionalização de manifestações de vontade pela
Internet. Em 2019, analisamos tal possibilidade ao sugerir a viabilidade do
"testamento vital eletrônico"1 por meio de chaves de
criptografia assimétrica2 ou mesmo - e de forma inovadora - pela
rede blockchain3.
Em um momento delicado como o da atual pandemia desencadeada
pela Sars-Cov-2 (ou Covid-19), a facilitação de acesso aos
documentos de manifestação de vontade, notadamente quanto aos cuidados de saúde
e a oferta de meios eletrônicos para o seu implemento adquire contornos ainda
mais claros e propicia importantes reflexões sobre a morte e sobre a
necessidade humana de expressar "desejos acerca dos cuidados, tratamentos
e procedimentos aos quais [cada pessoa] deseja ou não se submeter caso esteja
com uma doença ameaçadora da vida"4.
Eis que, após mais de dois meses de quarentenas
e lockdowns no Brasil, o Conselho Nacional de Justiça, por sua
Corregedoria, publicou o Provimento nº 100, de 26 de maio de 2020, que
"dispõe sobre a prática de atos notariais eletrônicos utilizando o sistema
e-Notariado, cria a Matrícula Notarial Eletrônica-MNE e dá outras
providências". Sem dúvidas, é o momento ideal para revisitar a temática do
"testamento vital eletrônico", agora tecnicamente enquadrável na
dinâmica notarial brasileira.
Mas, antes de explicitar alguns aspectos fundamentais do
mencionado Provimento, é importante revisitar alguns conceitos...
As Diretivas Antecipadas de Vontade (DAV) são documentos de
manifestação de vontade sobre cuidados de saúde. Sua normatização se deu,
primeiramente, nos Estados Unidos da América, em 1990, a partir de previsão
expressa do Patient Self Determination Act, que descreveu duas espécies:
o living will, traduzido para o português como testamento vital e
o durable power of attorney, traduzido como procuração para cuidados
de saúde. Hodiernamente, os Estados Unidos já reconhecem e utilizam outras
espécies de DAV, como as diretivas antecipadas psiquiátricas5, ordens de não
reanimação6, o plano de parto7 e as diretivas antecipadas para demência8.
O testamento vital, analisado neste brevíssimo ensaio, deve
ser entendido como um negócio jurídico existencial pelo qual uma pessoa
juridicamente capaz manifesta sua vontade sobre quais tratamentos,
procedimentos e cuidados médicos deseja ou não se submeter caso seja
diagnosticado com uma doença incurável e terminal, e, uma vez que
inexiste legislação específica sobre o tema no Brasil, deve-se
entender que sua forma é livre. Como tal, parece adequado o seu enquadramento
como negócio jurídico unilateral sob condição suspensiva, que tem suas raízes
axiológicas na Constituição da República e na proteção à dignidade
humana:
Ante o valor da pessoa concreta em detrimento do sujeito de
direitos abstrato, verificou-se que a tutela patrimonial era insuficiente para
efetivar a proteção integral do ser humano, razão pela qual as situações
existenciais também passaram a ser considerados fatos jurídicos, sendo elas
aquelas que realizam de forma direta a dignidade humana9.
A diferenciação entre as situações jurídicas patrimoniais e
as existenciais é, portanto, um dos elementos fundamentais para a compreensão
de qualquer escopo tecnológico que se pretenda explorar para a
operacionalização dos testamentos, pois "requer estruturas complexas de
confiança e segurança, no centro das quais está a questão de compartilhar ou
não o acesso aos dados com terceiros (inclusive herdeiros) para a preservação
de situações jurídicas existenciais"10. Noutros dizeres, trabalhar com a
ideia de facilitação de meios para o exercício da autonomia existencial, como
se faz com a difusão do testamento vital, significa atribuir importante realce
às potencialidades da adoção de instrumentos adequadamente previstos pelo
ordenamento para a tutela de novos interesses e direitos11.
Na Itália, o chamado Codice Privacy (Decreto
Legislativo nº 196/2003) - importante marco legislativo para a tutela dos dados
na Internet - recebeu importante atualização pelo decreto legislativo 101, de
10 agosto de 2018, que entrou em vigor em 19 de setembro de 2018, contendo
dispositivos muito alinhados aos do Regulamento Geral de Proteção de Dados
(RGPD) europeu. O art. 2-terdecies do regulamento italiano tratou, com
certo pioneirismo, do "diritto all'eredità del dato", base
essencial para a discussão da sucessão de bens digitais de natureza
patrimonial12, mas, com curiosa aplicação às situações existenciais, contemplou
também os 'motivos familiares dignos de proteção'13.
No Brasil, com a publicação do mencionado Provimento nº 100,
essa mesma discussão passa a permear o contexto da emanação de atos de vontade
por meio eletrônico, com a garantia de fé pública que as autoridades notariais
possuem, em observância aos regulamentos expedidos pelo Poder Judiciário por
força do disposto nos arts. 37 e 38 da lei 8.935, de 18 de novembro de 1994.
Recorrendo ao art. 2º-A, §8º, da lei 12.682/2012, que cuida
do arquivamento de documentos, em meio eletrônico, sob a chancela de segurança
dos certificados digitais baseados na infraestrutura de Chaves Públicas
Brasileira (ICP-Brasil)14, e invocando a Orientação nº 9, de 13 de março de
2020, da Corregedoria Nacional de Justiça, que dispõe sobre a necessidade de
observância às medidas temporárias de prevenção ao contágio pela Covid-19, o
Provimento descreve que: "Art. 4º. Para a lavratura do ato notarial
eletrônico, o notário utilizará a plataforma e-Notariado, através do link
www.e-notariado.org.br, com a realização da videoconferência notarial para
captação da vontade das partes e coleta das assinaturas digitais".
Ainda sobre esse aspecto, o art. 9º, §§3º a 5º, traz as
seguintes previsões:
Art. 9º. O acesso ao e-Notariado será feito com assinatura
digital, por certificado digital notarizado, nos termos da MP n. 2.200-2/2001
ou, quando possível, por biometria.
(...)
§ 3º Para a assinatura de atos notariais eletrônicos é
imprescindível a realização de videoconferência notarial para captação do
consentimento das partes sobre os termos do ato jurídico, a concordância com o
ato notarial, a utilização da assinatura digital e a assinatura do Tabelião de
Notas com o uso de certificado digital, segundo a Infraestrutura de Chaves
Públicas Brasileira - ICP.
§4º O notário fornecerá, gratuitamente, aos clientes do
serviço notarial certificado digital notarizado, para uso exclusivo e por tempo
determinado, na plataforma e-Notariado e demais plataformas autorizadas pelo
Colégio Notarial Brasil-CF.
§5º Os notários poderão operar na Infraestrutura de Chaves
Públicas Brasileira - ICP Brasil ou utilizar e oferecer outros meios de
comprovação da autoria e integridade de documentos em forma eletrônica, sob sua
fé pública, desde que operados e regulados pelo Colégio Notarial do Brasil -
Conselho Federal.
Com o claro intuito de prevenir fraudes, exigiu-se o contato
por videoconferência entre o notário e as partes - reflexo claro da
inviabilidade de se exigir que todo cidadão brasileiro possua certificado
digital (o popular 'token') para promover, com assinatura digital
criptografada, manifestação de vontade fidedigna.
Outra evidência disso aparece no art. 9º, §1º, do
Provimento, que garante o acesso dos usuários externos ao sistema e-Notariado
"mediante cadastro prévio, sem assinatura eletrônica, para conferir a
autenticidade de ato em que tenham interesse", o que indica o papel
proeminente do notário na aferição da veracidade das informações que serão
levadas a efeito para a lavratura do ato notarial eletrônico e, especialmente,
para que possa atestar o teor da vontade manifestada durante o contato por 'videoconferência
notarial' (que ficará arquivada, segundo consta do art. 23, §2º), além das
assinaturas notariais e, se aplicável, até mesmo da biometria (art. 17,
parágrafo único).
No que interessa aos testamentos vitais, alguns rigores são
necessários (como a não admissão de forma oral15), o art. 17, caput, prevê
que "os atos notariais celebrados por meio eletrônico produzirão os
efeitos previstos no ordenamento jurídico quando observarem os requisitos
necessários para a sua validade, estabelecidos em lei e neste provimento".
E, exatamente pelo que se explicou nos parágrafos anteriores, quando se buscou
um breve conceito para o testamento vital, deve-se ter em mente que é
necessário que ele preencha os pressupostos de validade dos negócios jurídicos,
quais sejam, a capacidade do agente, o objeto lícito, possível, determinado ou
determinável e a forma prescrita ou não defesa em lei16.
Sendo o caso, não se nota óbice à sua operacionalização,
inclusive com a garantia de sigilo sobre seu conteúdo - ao menos enquanto o
testador tiver discernimento decisório -, tendo em vista que o
Provimento especifica que o acesso deverá ser assegurado "por meio de
conexão segura HTTPS, e os servidores de rede deverão possuir certificados
digitais adequados para essa finalidade" (art. 14, §3º), e também por
definir que "os dados das partes poderão ser compartilhados somente entre
notários e, exclusivamente, para a prática de atos notariais, em estrito
cumprimento à lei 13.709/2018 (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais)"
(art. 33).
O art. 13 prevê que o sistema deverá estar "disponível
24 (vinte e quatro) horas por dia, ininterruptamente" e o art. 36 veda a
adoção de outras plataformas, o que, nesta leitura perfunctória, afasta a
possibilidade de utilização da rede blockchain para a garantia da
higidez de eventuais assinaturas e seu consequente implemento17.
Em conclusão, afirma-se, com festejo, que a adoção do
sistema e-Notariado é um passo no caminho certo quanto à facilitação dos meios
de acesso à emanação da vontade do paciente por mecanismos que, embora sejam
tecnicamente complexos, podem ser facilmente difundidos a ponto de viabilizarem
uma transmissão de vídeo, pela Internet, que encurta distâncias e permite, com
segurança, a concretização de desideratos seus que, noutros tempos, seriam bem
mais dificultosos.
Não obstante, ressalta-se que ainda há espaço para
aprimoramentos e que a ampla testagem será fundamental para garantir a higidez
de um sistema dessa estirpe, a se recrudescer, ainda, com a esperada vigência
da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, base fundamental para a exigência
do implemento das técnicas de segurança de dados pelas autoridades notariais
que utilizarão mais diretamente o novíssimo sistema.
Todavia, essas medidas não resolvem o principal problema de
efetividade do testamento vital: o acesso do profissional de saúde à
manifestação prévia do paciente. Assim, ainda que o sistema e-Notariado seja um
avanço para a feitura do testamento vital em Tabelionatos de Notas, continua
sendo necessário que o Poder Público implemente, nos moldes portugueses, um
Registro Nacional de Testamento Vital, ou seja, um banco de dados que contenha
todos os documentos feitos no país, com uma chave de acesso exclusiva para os
profissionais de saúde que estiverem cuidado do paciente em fim de vida.
Fonte: Migalhas