A vigência da LGPD ainda em 2020 trouxe ainda mais
urgência para a necessidade de sua implementação e, dentre os temas que
fervilham no âmbito empresarial nesse contexto está a incerteza quanto ao
tratamento correto de dados de crianças e adolescentes
A eclosão do meio digital e sua rápida expansão com a
ampliação do acesso à Internet e a popularização do uso de dispositivos móveis,
tem favorecido o acesso à informação, à comunicação, ao entretenimento, a
usabilidade de artefatos, com o ambiente de Internet das coisas, e também
permitido a difusão de dados para além das barreiras fronteiriças de nações,
organizações e lares.
A transformação digital em curso já é parte do cotidiano das
pessoas com o uso massivo de buscas e páginas de internet, redes sociais,
plataformas digitais, dispositivos conectados como eletrodomésticos, relógios e
brinquedos, jogos virtuais e aplicativos, esses últimos potencialmente
utilizados por milhões de crianças e adolescentes1, com habitual necessidade de
fornecimento consentimento na disponibilização de dados pessoais para
utilização de plataformas e aplicativos.
Todavia, quando consideramos o acesso à Internet por menores
de idade, sabe-se que nem sempre há um controle parental incisivo, não sendo os
menores adequadamente monitorados, ao mesmo tempo que não são totalmente
conscientes dos riscos e consequências da exposição de dados online.
Dados da pesquisa “TIC Kids Online Brasil 20182”, mostra
que, 86% da população entre 9 e 17 anos, aproximadamente 20 milhões de crianças
e adolescentes, era usuária de internet no país, sendo o celular o dispositivo
de acesso mais comum (93%). Os jogos eram um dos atrativos mais frequentes,
utilizado por 60% dos jovens, sendo o uso de perfis em redes sociais também
muito comum. Em classes sociais mais ricas, o uso de artefatos com
monitoramento como relógios e brinquedos com conexão digital também é comum.
Esse cenário possivelmente ampliou-se em tempos de pandemia e isolamento
social.
Essa massiva participação de crianças e adolescentes online,
potencialmente mal ou não monitoradas, expostas ao consumo de serviços
digitais, gera a consequente exposição diuturna de seus dados às empresas no
mundo todo, possibilitando, com sua coleta e tratamento, a construção de perfis
detalhados, direcionamento de serviços, produtos e conteúdos, exposição ao
marketing agressivo e até a realização de notificações com o intuito de incentivo
a contribuições financeiras em jogos, por exemplo.
A proteção da privacidade de crianças e adolescentes nos
ambientes digitais merece uma reflexão e regulação pública abrangente no âmbito
das normas de proteção de dados que eclodem em diversos países nos últimos
anos, ao mesmo tempo em que se preservem os espaços para permitir a inovação e
o desenvolvimento tecnológico e econômico, próprios destes ambientes.
É necessário coordenar os avanços nas tecnologias, seus
ecossistemas e plataformas com a estruturação de um ambiente regulatório que
permita a proteção de crianças e adolescentes, particularmente, considerando a
crescente e inevitável imersão desse grupo no mundo digital. O limitado grau de
consciência e discernimento desse grupo quanto aos seus atos online, o que
inclui o fornecimento de dados pessoais e seus impactos comportamentais,
econômicos e de segurança, deve ser elemento central na reflexão de reguladores
e empresas.
A Lei Geral de Proteção de Dados, a LGPD, lei 13.709/18, dedicou uma seção especial para assegurar
a proteção específica ao tratamento de dados pessoais de crianças e de
adolescentes - Seção III da LGPD, “Do Tratamento de Dados Pessoais de Crianças
e Adolescentes” - que engloba o artigo 14 e seus seis parágrafos. Essa
regulação, para sua efetividade, deve dialogar com as demais as normas
protetivas contidas na Constituição Federal, no Estatuto da Criança e do Adolescente e na
Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança.
A proteção regulatória ao tratamento de dados pessoais do
grupo de crianças e adolescentes trazida pela LGPD é bem-vinda, mas sua
aplicabilidade e exigibilidade fática merece algumas reflexões no âmbito de
reguladores e controladores de dados. Inicialmente destaca-se positivamente não
haver, no aspecto relacionado aos dados de menores, distinção entre se o dado é
sensível ou não, além da preocupação normativa com a forma adequada de entregar
aos usuários, de forma inteligível à sua faixa etária, informações sobre o uso
de dados.
No entanto, mesmo dispondo o caput do artigo 14, que o
tratamento de dados desses indivíduos devem ser realizados em seu melhor
interesse, o legislador fragiliza o instrumento regulatório quando, em análise
literal, os requisitos para tratamento de dados, presentes nos seus parágrafos
1º a 5º, leva à exclusão do público adolescente, em razão do silêncio quanto à
essa figura, aplicando-se apenas aos dados de crianças. A fragilidade normativa
nesse sentido desconsidera a distinção real de desenvolvimento social,
cognitivo e legal3 destas duas categorias.
Para a implementação dos requisitos da LGPD em relação a
coleta e tratamento de dados de crianças e adolescentes, com as restrições já
apresentadas, os controladores terão que se ater a alguns pontos de atenção
pelos desafios inerentes à sua implementação.
O primeiro desafio de implementação do controlador está
relacionado ao cumprimento combinado do disposto no art.14 § 1º e 5º da LGPD,
referente à obrigação de coletar o consentimento dos responsáveis legais para
tratamento de dados de crianças (§ 1º) e ainda realizar todos os esforços
razoáveis para verificar a identidade do fornecedor do consentimento (§ 5º).
Replicando a GDPR, lei europeia de proteção de dados pessoais, a LGPD, apesar
de exigir a coleta do consentimento dos responsáveis para o tratamento de dados
de crianças, combinado à necessidade de assegurar que foram os responsáveis, de
fato, que forneceram a autorização, não prevê mecanismos que possibilitem essa
confirmação.
Nesse diapasão, espera-se, portanto, atuação específica da
Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), com a emissão de regulações
detalhadas sobre o assunto, sugerindo e exemplificando métodos aceitáveis e
eficientes para cumprimento dos citados requisitos. Todavia, enquanto não há
orientação nesse sentido, é possível que os controladores de dados pessoais de
crianças, preventivamente à ativação da ANPD, adotem algumas medidas inspiradas
em regulamentações estrangeiras, como o COPPA (Children’s Online Privacy
Protection Act), normativa estadunidense do ano 2000, que dispõe sobre a
proteção de dados de crianças na Internet.
O COPPA em seu § 312.5, “b” traz, como formas de obtenção do
consentimento parental, algumas possibilidades, dentre as quais: a) o
preenchimento de um formulário de consentimento pelos pais, enviado ao operador
por e-mail; b) a solicitação de métodos de notificação do titular do cartão de
crédito/débito da realização da transação; c) ter um número de telefone para o
qual o responsável possa ligar gratuitamente e conceder o consentimento; d)
coletar o consentimento via videoconferência; e) verificar a identidade do
responsável através de comparação com dados governamentais, sendo estes
excluídos logo após a conferência.
Contudo, a confirmação da veracidade do consentimento do
titular não é a única preocupação dos controladores, trazendo-nos ao segundo
ponto de atenção: a necessidade de adequação de toda informação sobre o
tratamento dos dados para que tanto os responsáveis possam consentir
conscientemente com a coleta de dados dos menores, quanto as crianças e os
adolescentes consigam compreender o que está sendo consentido, cumprindo,
assim, o requisito do § 6º do art. 14 da LGPD.
Para adaptar conteúdos informacionais a uma variação etária
ampla, de forma a tornar mais acessíveis as informações essenciais acerca do
tratamento dos dados pessoais, os controladores podem aplicar o legal
design4, abordagem que incorpora a linguagem jurídica a uma apresentação clara,
lúdica e amigável.
Desse modo, dada a complexidade de todas as questões
normativas envoltas ao tratamento de dados pessoais de crianças e adolescentes,
seres mais vulneráveis e em construção como indivíduos, que carecem de uma
proteção social expandida, somando-se à ainda incômoda ausência da ANPD,
instaura-se um cenário de incerteza quanto ao futuro comportamento das empresas
frente aos pontos apresentados que merecem atenção e debate no processo de
implementação dos requisitos da LGPD nas organizações.
Todavia, não obstante as incertezas quanto à forma de
implementação dos regramentos artigo 14 da LGPD, a cada dia é possível enxergar
quão danosas são as violações de dados pessoais, especialmente quando os
titulares são crianças e adolescentes, o que demonstra a urgência da adoção de
medidas para proteção dos seus dados, possibilitando o uso de criatividade
pelos controladores de dados para criarem novas formas de lidar com os dados de
crianças, inspirando-se em exemplos estrangeiros e aplicando inovações
tecnológicas de confirmação de identidade e comunicação instantânea às
necessidades da empresa.
Fonte: Migalhas