Nos últimos meses, vivemos a maior crise sanitária da contemporaneidade,
desencadeada pela contaminação desenfreada de um vírus denominado Sars-Cov-2,
popularmente conhecido como novo Coronavírus, que até o presente momento, já
fez mais de 800 mil vítimas fatais em todo o mundo. No entanto, muito embora
estejamos vivenciando um momento de crise e redução brusca do faturamento, esse
não é o único motivo que vem causando grande preocupação nas entidades
empresariais.
No dia 26 de agosto deste ano, a Medida Provisória 959/2020
– que trata da operacionalização do Benefício Emergencial – foi votada no
Senado, entretanto, retirou-se do texto o dispositivo que abordava o adiamento
da vigência da Lei 13.709/2018 – Lei Geral de Proteção de Dados, conhecida como
LGPD. Antes de aprofundarmos os aspectos temporais desta lei, precisamos,
preliminarmente, entender os aspectos gerais que evidenciam a importância da
norma.
A partir do crescimento da tecnologia pelo mundo,
verificou-se, cada vez mais, a importância de uma regulação que resguardasse a
privacidade indivíduo quanto aos seus dados pessoais perante as organizações
empresariais e o poder público. Nesse contexto, a regulação acerca da proteção
de dados tem como finalidade estabelecer padrões mínimos a serem adotados
quando ocorrer o manuseio de um dado pessoal, garantindo a utilização para uma
finalidade específica e um ambiente seguro para manutenção desses dados.
A aplicação da lei corrobora não somente com a regulação da
proteção das informações, mas também com o equilíbrio do poder em torno do dado
pessoal, onde se vislumbra, de um lado, o titular dos dados íntimos (ou
sensíveis, que revelam a origem racial ou étnica, opiniões políticas e
convicções religiosas ou filosóficas, dados genéticos, biométricos ou
relacionados à saúde, por exemplo) que deve ter sua privacidade tutelada, e
aqueles que os usam e compartilham com ou sem viés lucrativo.
Para melhor compreensão do tema, registra-se que a percepção
da necessidade de resguardar os dados pessoais ocorreu antes mesmo da confecção
da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) aqui no Brasil. É imprescindível
trazer a lume o regulamento firmando na Europa sobre privacidade de dados
pessoais, idealizado em 2012 e aprovado em 2016, denominado de Regulamento
Geral de Proteção de Dados 2016/679 (GDPR), aplicável a toda população do bloco
da União Europeia.
No recorte europeu, a proteção de dados pessoais é
considerada um direito dos cidadãos, e, por essa razão, todas as entidades
empresarias – independente do porte ou do ramo das atividades -, deverão
aplicar as regras da legislação específica da proteção das informações íntimas,
no momento em que coleta, processa, manuseia, compartilha e trata os dados
pessoais. Inclusive, os efeitos da regulação europeia ultrapassam os limites
territoriais, a partir do momento em que uma entidade estrangeira possui
vínculo com algum cidadão europeu.
A título exemplificativo, na hipótese de uma empresa virtual
brasileira ter interesse em comercializar produtos para consumidores que
estejam no território europeu, ela precisará, inicialmente, se adequar às
exigências contidas na regulação europeia (GDPR), para prosseguir com a
realização dos serviços em total consonância com a lei.
Portanto, seja no contexto internacional ou no Brasil,
notamos que ambos possuem a finalidade de mitigar os riscos quanto à má
utilização dos dados pessoais, de forma a limitar e regulamentar o tratamento
das informações, garantindo os direitos fundamentais no tocante à proteção da
liberdade, privacidade e intimidade das pessoas, enaltecendo a importância da
transparência e controle na forma de coleta e manuseio dos dados.
Superada a breve análise dos aspectos gerais, não se pode
perder de vista a importância de tratarmos sobre a vulnerabilidade dos dados,
principalmente, no que tange aos dados sensíveis. Ao passo que a tecnologia vem
se aperfeiçoando a cada ano, aumenta a acessibilidade das atividades
desempenhadas através das plataformas virtuais.
Atualmente, é raro encontrarmos indivíduos que não desfrutem
dos benefícios trazidos pela tecnologia, seja na realização de pagamento de
contas através de aplicativos bancários, ou até mesmo a efetivação de compra
por meio de plataforma virtual. Em que pese a utilização de páginas virtuais
possuírem o escopo de assegurar conforto e bem-estar, nós, consumidores dessa
tecnologia, somos sujeitos de um mundo onde a forma que são tratados os nossos
dados pessoais ainda são desconhecidos.
Nesta senda, não há como negar a vulnerabilidade dos dados
daqueles que consumem os benefícios dos aplicativos promovidos pela tecnologia.
Há pouco tempo, os indivíduos sequer eram consultados sobre a permissão do
acesso à privacidade, pois ocorria uma verdadeira apropriação de informações,
visto que o acesso aos dados era realizado de forma automática.
Com base nos riscos provocados pela vulnerabilidade dos
dados pessoais, constatou-se a necessidade da criação de uma lei específica
sobre o assunto.
Outro ponto que merece ser esposado no presente texto, versa
sobre os aspectos jurídicos e temporais da regulação no Brasil da Lei Geral de
Proteção de Dados (LGPD). Aprovada em agosto de 2018, a vigência da LGPD vem
ganhando destaque em virtude, principalmente, da sua mencionada importância na
conjuntura atual de utilização de novas tecnologias (sistemas de inteligência
artificial que são alimentados por grande quantidade de dados), e o manuseio de
dados sensíveis por empresas, hospitais e organizações públicas e privadas.
Muito embora seja inquestionável a relevância da sua
aplicação pelos operadores do direito, a redação normativa foi contemplada com
uma extraordinária vacatio legis de 24 (vinte e quatro) meses, e, por essa
razão, começaria a produzir efeitos plenamente a partir de 14 de agosto desse
ano.
Mesmo com um vasto período para implementação de mudanças
visando a conformidade com as novas exigências de proteção, a grande maioria
das entidades empresariais optou por postergar as prementes medidas de
adequação das suas atividades à nova legislação, deixando de enquadrar não
somente os sistemas e softwares, mas também de realizar o treinamento efetivo
da equipe perante a nova regulação.
Num contexto em que os dados são matéria-prima de grande
valor – comumente chamados de “novo petróleo” – e a boa parte dos problemas é
solucionada com a ciência de dados e inteligência artificial, é inevitável que
o acesso e o tratamento indiscriminado desses commodities virassem uma questão
a ser observada com cautela.
Nesse ponto, é imprescindível compreender que o atraso na
adequação por parte das entidades públicas e privadas, originou a inquietude
quanto à data limite da vacatio legis, bem como a evidente preocupação no
tratamento dos dados coletados, de forma ainda mais avultosa para conter a
disseminação do vírus durante a pandemia.
Em razão da pressão, o Congresso Nacional, através do
Projeto de Lei de nº 1.179/2020, acordou por determinar a alteração do início
da produção de efeitos oriundos da LGPD. Portanto, restou-se aprovado no Senado
e seguiu para debate na Câmara, a PL que determinava que a data da entrada em
vigor da lei ocorreria no dia 1º de janeiro de 2021, e as sanções atribuídas na
norma só começariam a ser aplicadas em agosto do referido ano.
O Presidente da República, por sua vez, desrespeitando os
debates existentes que já norteavam o tema, por meio da Medida Provisória nº
959/2020 (editada no dia 29/04/2020), no artigo 4º, determinou a postergação da
vigência da LGPD para o dia 03 de maio de 2021.
Fato é que se instaurou um verdadeiro cenário de incerteza
quanto à entrada em vigor da norma, sobretudo, por causa do prazo de vigência
da MP (de 60 dias prorrogável por mais 60, conforme art. 62 da CF), que
“atropelou” as casas legislativas e acarretou reflexos nocivos à segurança
jurídica no momento em que se faz mais necessária a proteção de dados pessoais.
A MP que se tornou o PLC (Projeto de Lei de Conversão)
34/2020, estava em trâmite no Congresso Nacional, quando houve uma reviravolta
no Senado Federal que, inobstante a aprovação o texto, dia 26/08/2020,
considerou prejudicado o aludido art. 4º e, assim, o adiamento nele previsto
não mais ocorrerá. Agora o Projeto vai para a sanção do presidente Jair
Bolsonaro, que tem até 15 dias úteis, para garantir a vigência plena à lei (nos
termos do art. 62, parágrafo 12, da CF).
Em sequência, foi publicado, no dia 27/08/2020, o Decreto n.
10.474/20 que traz a estrutura da Autoridade Nacional de Proteção de Dados como
órgão vinculado à Presidência da República, que terá como principal incumbência
fiscalizar e tornar eficaz o cumprimento da lei, através da sua interpretação,
defesa e orientação.
Diante de tantas mudanças e incertezas, coloca-se em pauta
alguns questionamentos: Tirar a autonomia da Autoridade Nacional de Proteção de
Dados (ANPD) e colocá-la submetida à presidência seria mesmo o melhor caminho?
Afinal, como será a adequação das atividades empresariais com a plena vigência
da LGPD? Como fazer as adequações em tão pouco tempo? Tempo que foi abalado com
reviravoltas políticas que trouxeram ainda mais dúvidas, num ambiente de caos
ocasionado pela pandemia.
Uma certeza é que os setores de Compliance e Cybersegurança
nunca foram tão importantes no ambiente empresarial. Essa é uma constatação
inequívoca, na medida em que todas as empresas que de alguma forma armazene
(fisicamente ou digitalmente) dados pessoais, devem buscar o quanto antes soluções
para se adequarem à legislação. Caso as entidades empresariais violem os
preceitos da LGPD, poderão incidir em penalidades, que variam de acordo com a
gravidade da conduta e podem ir da multa de até R$ 50 milhões de reais até a
suspensão total ou parcial do exercício da atividade de tratamento de dados.
A LGPD tem como pilares fundamentais a transparência e a
privacidade dos titulares dos dados pessoais, e traz exigências que necessitam
ser incorporadas nos processos da empresa, através de uma verdadeira mudança de
cultura organizacional, com foco na busca do consentimento expresso do usuário
e a demonstração da finalidade do uso, pontos centrais de adequação à lei.
Nesse panorama, a necessidade de adequação de sistemas e
softwares, capacitação de profissionais, adoção de boas práticas, como a
elaboração de programa de Governança em Privacidade, risk assessment, gestão de
consentimento e de petições abertas por titulares de dados, implementação de
técnicas de anonimização, são medidas salutares, tanto para evitar as severas
penalidades mencionadas, como também, porque as violações a direitos geradas
sob o contexto da LGPD (como todas as outras), estão sujeitas ao acesso à
jurisdição.
Sem dúvidas isso deve gerar um elevado número de demandas,
em razão da inobservância a tais determinações, não só por parte de negócios
on-line e aplicativos, mas também, no caso de transações e armazenamento de
dados, comuns, atualmente, a todos os segmentos empresariais.
Cumpre observar, ainda, que a insegurança jurídica
perpetrada pelas reviravoltas políticas vivenciadas nos últimos meses, coloca
em evidência a preocupação das empresas quanto à aplicação da lei, a atuação da
ANPD e a necessidade de adequação célere às diretrizes estabelecidas, diante
das avultosas sanções.
De outro lado, esse panorama de incertezas traz um grande
desestímulo aos investimentos estrangeiros no país, e, consequentemente,
representa um óbice ao desenvolvimento econômico, especialmente, por causa da
falta de credibilidade no sistema jurídico vigente, que não se preocupa em
garantir a mínima previsibilidade do que o poder político do Estado pode fazer
ou não fazer, determinando que o empresário fique à deriva de arbitrariedades e
incongruências.
Apesar do trajeto tortuoso de “quase” adiamento e “pseudo”
preservação da vacacio legis original, a privacidade, valor tão abalado em
tempos de sociedade informacional, agradece, gerando alguma segurança ao
cidadão, ainda que a jurídica tenha sido esquecida pelo caminho.
Só nos resta trabalhar para que as tantas perguntas sejam
encontradas com a plena aplicação da lei, a atuação diligente da ANPD, que irá
fiscalizar o cumprimento desta, assegurando que as entidades empresariais e
governamentais tratem, coletem, manuseiem e armazenem os dados de forma segura
e transparente, sendo agente catalizador de mudanças na cultura das empresas e
instituições como forma de preservação de direitos fundamentais.
Fonte: O Estado de São Paulo