O Juízo da 3.ª Vara Cível da Comarca de São Leopoldo-RS
indeferiu recentemente requerimento de penhora eletrônica de dinheiro, nos
autos de uma execução extrajudicial, em razão dos rigores da Lei de Abuso de
Autoridade[1].
Alegou a magistrada que enquanto o STF não se posicionar
sobre as ações diretas de inconstitucionalidade que contestam a Lei de Abuso de
Autoridade – LAA (Lei n. 13.869/2019), os julgadores não terão segurança para
deferir a penhora de valores via BacenJud,
atual SisbaJud (Sistema de Busca de Ativos do Poder Judiciário)[2].
Em cumprimento de sentença judicial que contém obrigação
alimentar, o Juízo da 6.ª Vara de Família e Registro Civil de Recife, onde este
autor tem atuação defensorial, utilizou o mesmo argumento para indeferir
rastreamento de ativos financeiros pelo BacenJud contra alimentante
devedor.
Entretanto houve oportuna retratação judicial após
interposição de agravo de instrumento com comunicação — facultativa — nos autos
eletrônicos (arts. 1.015, parágrafo único, e 1.018, §§ 1.° a 3.°, do CPC), cujo
processo tramita em segredo de justiça (art. 189, II, do CPC).
A interpretação judicial é falha; a tentativa de pressionar
o STF com esse mecanismo é nefasta; a decisão retira eficácia normativa do CPC,
sem declaração incidental de inconstitucionalidade, e afasta a solução integral
do mérito e a efetividade das medidas executivas previstas no ordenamento
jurídico (art. 4.°, CPC).
As medidas efetivadoras de expropriação patrimonial não devem
ser rechaçadas sob essa razão e com tendenciosa interpretação de incidência da
LAA contra o magistrado prolator, consoante se pretende esclarecer.
O art. 771 do CPC dispõe que este Livro regula o
procedimento da execução fundada em título extrajudicial, e suas disposições
aplicam-se, também, no que couber, aos procedimentos especiais de execução, aos
atos executivos realizados no procedimento de cumprimento de sentença, bem como
aos efeitos de atos ou fatos processuais a que a lei atribuir força executiva.
As disposições do processo de execução aplicam-se, de igual
maneira, ao cumprimento de sentença (arts. 513 e segs. do CPC), de modo que os
comentários relativos à penhora eletrônica para satisfação de obrigação de
pagar quantia certa, ainda que alimentar (arts. 528-533 e 911-913 do CPC),
serão os mesmos.
De mais a mais, é conveniente rememorar que o processo
civil será ordenado, disciplinado e interpretado conforme os valores e as normas
fundamentais estabelecidos na Constituição brasileira (art. 1.°, CPC),
tais como devido processo legal, acesso integral à justiça e direito
fundamental à propriedade (art. 5.°, caput e incs. XXII, XXXV, LIV e
LV).
A solução integral do mérito, inclusa a atividade
satisfativa, é direito subjetivo das partes, por força do art. 4.° do CPC. Essa
integralidade perpassa a fase executiva para satisfação dos interesses pessoais
ou coletivos, a depender da natureza das pretensões demandadas.
As medidas executivas – de natureza coercitiva, indutiva,
mandamental ou sub-rogatória (art. 139, IV, do CPC) – servem à atividade
jurisdicional satisfativa, de modo que seu indeferimento implica negação do
próprio direito da parte, uma vez que de nada adianta obter reconhecimento
judicial de pretensão se não houver sua efetivação prática e concretização
real. Ou seja, atividade satisfativa e com duração razoável.
Ocorre que a Lei n. 13.869 de 5 de setembro de 2019, com
vigência desde janeiro de 2020, tipificou no art. 36 como delito de médio
potencial ofensivo a conduta de:
Decretar, em processo judicial, a indisponibilidade de
ativos financeiros em quantia que extrapole exacerbadamente o valor estimado
para a satisfação da dívida da parte e, ante a demonstração, pela parte, da
excessividade da medida, deixar de corrigi-la.
Diante do atual tipo penal, alguns magistrados estão
revelando terror à distante incidência da LAA. É até compreensível, notadamente
num país com excesso punitivista, apego a um Direito Penal máximo, em sua
terceira velocidade[3],
e à criminalização de todo e qualquer comportamento humano, ainda que
fragmentário, sem relevante ofensividade[4].
A hipertrofia penal tem efeitos negativos e um dia atinge
todos, até mesmo as autoridades. Quando o minimalismo penal[5] serve
de norma de proteção, exsurge como o melhor argumento para o não exercício — legítimo
— até da força estatal, sobretudo jurisdicional.
É fundamental perceber a redação do tipo penal aberto, com
inclusão da conjunção aditiva “e”, de modo que só haverá fato típico se o
magistrado decretar a aludida medida relativa a “quantia que extrapole
exacerbadamente o valor estimado para a satisfação da dívida da parte” e
(complemento do tipo penal) deixar de corrigir, afastar a excessividade da
medida após demonstração da parte devedora.
O art. 1.°, em seu § 1.°, já antecipa que as condutas
descritas nesta Lei (LAA) constituem crime de abuso de autoridade
quando praticadas pelo agente com a finalidade específica de prejudicar outrem
ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou
satisfação pessoal.
Não se pode ignorar os elementos objetivo e subjetivo do
tipo penal. Deve estar presente o elemento subjetivo especial, pois “não comete
abuso de autoridade o agente que errar ou atuar com desídia”[6].
Há presunção de boa-fé e deve haver comprovação de má-fé
(finalidade específica), notadamente quando o agente público atua no estrito
cumprimento de dever legal (art. 8.° da LAA).
Fácil perceber que não se admite a modalidade culposa desse
delito (art. 18, parágrafo único, do CP), de modo que mera falha de atuação judicial
implica a atipicidade da conduta.
Calha ressaltar que a divergência na interpretação de
lei ou na avaliação de fatos e provas não configura abuso de autoridade, na
inteligência do § 2.° do art. 1.° da LAA, o qual afasta o histórico crime de
hermenêutica[7].
Já na leitura dos primeiros dispositivos da LAA é fácil
concluir que o legislador objetivou coibir a banalização do exercício da
autoridade. Não se pune a independência judicial, o exercício da jurisdição, a
autoridade em si e a força da atividade estatal, mas seu desvio intolerável, a
ilicitude, o uso abusivo da força.
Não se deve confundir jurisdição com autoritarismo. O
exercício da jurisdição, só por só, jamais pode ser interpretado como exercício
abusivo da autoridade, salvo situações pontuais e com demonstração concreta do
elemento subjetivo.
A LAA não é uma mordaça judicial, uma camisa de força à
autoridade de agentes públicos, mas uma contenção de abusos, de excessos, de
autoritarismo[8],
cuja postura transborde os limites constitucionais, convencionais e/ou legais.
Uma vez mais: a LAA não veio para imposição do medo e
disseminação de terror aos agentes públicos, mas para necessária contenção do
abuso e do autoritarismo estrutural[9].
Assim como direito não se iguala ao abuso de direito (art. 187, CC), autoridade
não implica abuso de autoridade. Alho e bugalho, já diria o ditado popular,
também não se confundem.
No processo ou fase de execução, seja de título judicial —
cumprimento de sentença — seja extrajudicial, várias são as medidas para
satisfação do
débito: SisbaJud ou BacenJud, RenaJud e InfoJud (art.
835, CPC), inscrição negativa em cadastro de inadimplentes,
como SerasaJud e/ou SPC (art. 782, §§ 3.° a 5.°, do CPC), protesto de
decisão em cartório/tabelionato (arts. 517, 528, §§ 1.° e 3.°, e 911 do CPC),
desconto em folha de pagamento (arts. 529 e 912 do CPC), expedição de ofícios
para localização de bens e rendas (arts. 772, III, e 773, do CPC).
Há também certidão processual para averbação no registro de
imóveis, de veículos ou de outros bens sujeitos a penhora, arresto ou
indisponibilidade (art. 828, CPC), mandado de avaliação e penhora (art. 829, §
1.°, CPC), intimação do devedor para indicação de bens à penhora (art. 774, V,
CPC), uso excepcional de suspensão de CNH, retenção de passaporte e bloqueio de
cartão (STJ, REsp 1.788.950/MT, T3, DJe 26/4/2019) etc.
O sistema BacenJud — novo SisbaJud[10] —
é instrumento judicial para concretude da expropriação patrimonial e importante
medida executiva que visa à constrição, à indisponibilidade de ativo financeiro
e à posterior conversão em penhora de valor certo e individualizado (arts. 831
e 854, § 1.°, do CPC), de modo que decretar indisponibilidade de valores em
quantia exacerbadamente superior à executada configuraria infração penal, mas
não pelo exercício normal da medida.
Mas como saber se há bloqueio de valor impenhorável ou
excessividade no valor constrito, acima do valor estimado para satisfação da
dívida?
O indigitado art. 36 da LAA é norma penal em branco
homogênea, de modo que seus elementos normativos devem ser interpretados com o
uso de outros diplomas legais. O CPC traz luz ao debate.
O art. 854 do CPC registra que:
Para possibilitar a penhora de dinheiro em depósito ou em
aplicação financeira, o juiz, a requerimento do exequente, sem dar ciência
prévia do ato ao executado, determinará às instituições financeiras, por meio
de sistema eletrônico gerido pela autoridade supervisora do sistema financeiro
nacional, que torne indisponíveis ativos financeiros existentes em nome do
executado, limitando-se a indisponibilidade ao valor indicado na execução.
Perceba os detalhes dos §§ 1.° e 2.°:
§ 1.° No prazo de 24 (vinte e quatro) horas a contar da
resposta, de ofício, o juiz determinará o cancelamento de eventual
indisponibilidade excessiva, o que deverá ser cumprido pela instituição
financeira em igual prazo.
§ 2.° Tornados indisponíveis os ativos financeiros do
executado, este será intimado na pessoa de seu advogado ou, não o tendo, pessoalmente.
Caberá ao devedor executado comprovar que as quantias
tornadas indisponíveis são impenhoráveis ou excessivas (§§ 3.° e 4.° do art.
854 do CPC), além da maior onerosidade da execução ou de medida executiva
(arts. 805, parágrafo único, 829, § 2.°, e 847 do CPC).
O art. 36 da LAA só se caracterizaria ante a
demonstração, pela parte, da excessividade da medida e, ainda assim, o magistrado
deixasse de corrigi-la, conforme previsto nos arts. 854 e 907 do CPC.
O SisbaJud tem por escopo rastrear ativos em nome
do devedor e torná-los indisponíveis, medida efetiva e apta à satisfação da
dívida, de modo que só haverá incidência da lei penal se houver evidente
configuração dos elementos objetivo e subjetivo (dolo específico), ou seja,
manutenção da constrição mesmo após demonstração da impenhorabilidade ou
excessividade do valor.
Assim, deve haver indisponibilidade e bloqueio de valor específico,
e não de todo e qualquer valor localizado. Caso ainda haja indisponibilidade de
valor impenhorável ou excessivo, poderá o devedor comprovar tal fato (art. 25,
1, da CADH) e afastar excesso na indisponibilidade por ordem judicial, à qual
estará vinculada a instituição financeira (§ 8.° do art. 854 do CPC).
A utilização do SisbaJud ou BacenJud é
exercício estrito da jurisdição. A indisponibilidade eletrônica de ativos para
posterior penhora é medida executiva típica (art. 837, CPC) e legítima, salvo situações
de uso abusivo e autoritário, o que não ocorre pela simples utilização
jurisdicional, mas após um procedimento legalmente previsto.
Deve ser adotada como regra (art. 835, inc. I e § 1.°, do
CPC), e não indeferida no simples exercício da jurisdição e da independência
judicial (art. 35, I, da LOMAN), garantia da própria sociedade.
Fonte: Consultor Jurídico