Após a humanidade vivenciar os horrores e as graves
violações de direitos trazidos pelas duas grandes guerras e pela ascensão de regimes
autoritários no século XX, como o nazismo e o fascismo de Mussolini, criaram-se
esforços mundiais para que se consolidasse uma forma de governo mais justa e
que garantisse maior pacificidade à comunidade global. Foi assim que a
democracia liberal se tornou a "menina dos olhos" e foi adotada
por diversas nações, tornando-se o modelo político ideal a ser seguido.
A democracia contemporânea se caracteriza, entre outros
fatores, pela pretensão de garantir direitos fundamentais e liberdades
individuais, bem como pela utilização de um sistema representativo. A
representação política, por meio do voto, é uma das principais formas da
população participar das decisões políticas, sendo considerada por muitos a
materialização da soberania exercida pelo povo e, logo, da própria
democracia [1].
Em grande parte, tal sistema se baseia e se legitima,
portanto, no livre arbítrio que possuímos em escolher quem queremos para nos
representar. Todavia, a exponencial produção de dados dos últimos anos, bem
como sua coleta e processamento por empresas, podem estar ameaçando esse
alicerce democrático.
Há muito se diz que os dados pessoais são o novo petróleo.
Isso se explica porque estamos cada vez mais imersos no mundo da internet e das
redes sociais e cada movimento que realizamos nesse ciberespaço, desde curtidas
até dados fornecidos em cadastros, são processados por algoritmos e utilizados
para os mais diversos fins, muitas vezes sem que os titulares tenham qualquer
consciência de tais práticas. Todos esses dados que, aparentemente, isolados
não fornecem nenhuma informação relevante, quando combinados podem ser
utilizados para perfilizações (profiling) e marketing personalizado, ambos cada
vez mais precisos.
Daí se extrai um grande insumo econômico e político: a
capacidade de manipular nossas emoções e identificar nossos medos, ódios e
desejos para nos venderem alguma coisa ou, ainda mais alarmante, para manipular
eleitores em suas decisões de voto [2]. O emblemático caso da Cambridge
Analytica escancarou ao mundo o perigo que a exploração desregulada de
dados pode gerar ao processo democrático:
"A Cambridge Analytica era uma empresa privada
que minerava e analisava dados com o objetivo de realizar comunicação
estratégica para processos eleitorais. Em 2018, estourou um escândalo com a
revelação de que ela coletou dados de cerca de 50 milhões de usuários do
Facebook, sem conhecimento ou consentimento deles, e os utilizou para
influenciar nas eleições presidenciais dos Estados Unidos de 2016 [3]. Os dados teriam sido usados para
perfilização dos usuários e, então, direcionar, de forma mais personalizada,
materiais pró-Trump e contrários à Hillary Clinton. Ademais, a empresa também
exerceu influência no Brexit e nas eleições presidenciais do Quênia, dentre
outros casos ainda pouco esclarecidos" [4].
Diante desse cenário, ainda podemos falar de completo livre
arbítrio nas nossas escolhas políticas e de nossos representantes? Como fica,
em vista disso, a legitimidade do processo democrático?
Para além disso, como já mencionado no início do texto, a
democracia também se baseia na garantia de direitos fundamentais e de
liberdades individuais. Sendo assim, como nossa liberdade fica quando
algoritmos nos classificam de acordo com nossos dados e tomam decisões acerca
da nossa vida com base nisso? Já é sabido, por exemplo, que algoritmos muitas
vezes são usados para decidir acesso à crédito e à seleção de um candidato para
preencher a vaga de uma empresa. Assim, decisões importantes para a vida das
pessoas são tomadas com base em critérios gerais, que desconsideram suas
individualidades, o que pode ser entendido como uma espécie de discriminação [5].
A situação fica ainda mais crítica quando essas decisões
automatizadas podem reforçar e se basear em preconceitos sociais ao, por
exemplo, estabelecer um perfil ideal para ocupar um cargo profissional ou um
perfil mais propenso à criminalidade. Nesse sentido, algoritmos podem perpetuar
discriminações raciais, de gênero, classe e entre outros. Não devemos esquecer
que esses algoritmos são feitos por humanos e, como tais, são produtos de uma
determinada visão de mundo que pode ser carregada de preconceitos.
Tendo em vista a situação aqui exposta e a tendência de
produzirmos cada vez mais dados e termos inteligências artificiais cada vez
mais capacitadas em nos conhecerem mais e melhor, adentrando ainda mais em
aspectos da nossa intimidade, é que se percebe a importância de haver uma
regulação acerca do uso de dados pessoais, como o General Data
Protection Regulation (GDPR) na União Européia e Lei Geral de Proteção
de Dados (LGPD) no Brasil.
Faz-se importante ressaltar que a LGPD não possui o objetivo
de impedir a coleta e o processamento de dados, já que essas ferramentas também
podem proporcionar grande avanços tecnológicos positivos, capazes de melhorar a
qualidade de vida dos cidadãos. Isso posto, nas palavras de Ana Frazão, a lei
possui o papel de:
"(...) Reforçar a autonomia informativa dos titulares
dos dados e o necessário e devido controle que estes precisam exercer sobre
seus dados, a fim de se colocar um freio nas vicissitudes que possibilitaram a
consolidação do estágio atual da economia movida a dados" [6].
Ademais, devido aos possíveis impactos na esfera existencial
do cidadão, o STF, em maio de 2020, elevou a proteção de dados pessoais a um
status de direito fundamental [7]. Indo no sentido dessa visão, a Proposta
de Emenda Constitucional (PEC) nº 17/2019, que, na data de redação deste
artigo, já foi aprovada no Senado e aguarda votação na Câmara, inclui
expressamente o direito de proteção dos dados pessoais no rol dos direitos fundamentais
da Constituição Federal.
Para além da regulamentação, é importante que se crie uma
cultura de proteção de dados, em que as empresas verão a conformidade como forma
de agregar valor e competitividade [8]; e os titulares entenderão seus direitos
em ter controle, ou ao menos transparência, acerca do uso de seus dados. Assim
como a entrada em vigência do Código do Consumidor em 1990 trouxe uma mudança
de cultura, espera-se da LGPD esse mesmo impacto ou um ainda maior, já que,
além das relações comerciais, tal lei também possui em seu escopo as relações
de trabalho e o setor público [9].
Estamos, portanto, nos endereçando ao caminho correto para
lidar com o desafio tecnológico do big data e seus impactos sociais,
econômicos e políticos, sendo necessária especial atenção à legitimidade e à
estabilidade da própria democracia. Apesar do avanço da LGPD, ainda temos muito
o que percorrer e, nesse viés, gostaria de finalizar este artigo com a seguinte
citação de Yuval Harari:
"Assim, faríamos melhor em invocar juristas, políticos,
filósofos e mesmo poetas para que voltem sua atenção para essa charada: como
regular a propriedade de dados? Essa talvez seja a questão política mais
importante da nossa era. Se não formos capazes de responder a essa pergunta
logo, nosso sistema sociopolítico poderá entrar em colapso" [10].
Fonte: Consultor Jurídico