A última semana foi um tanto agitada: Na terça-feira (25), a
Câmara dos Deputados finalmente votou e aprovou a Medida Provisória 959/2020,
texto que pretendia adiar a entrada da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD)
para maio de 2021. Para a surpresa de muitos, a MP foi alterada propondo uma
redução no adiamento, estabelecendo a vacatio legis para 31 de
dezembro deste ano.
No dia seguinte (26), foi a vez do Senado apreciar o
projeto, e, adivinhe: os senadores decidiram eliminar o artigo que tratava da LGPD.
Com isso, a norma brasileira de proteção de dados deve entrar em
vigor assim que a 959/2020 for sancionada ou vetada pelo presidente Jair
Bolsonaro — independentemente de sua escolha, o regulamento entrará
imediatamente em vigor.
As emoções não pararam por aí. Na quinta-feira (27), foi
publicado no Diário Oficial da União o decreto que aborda a estrutura
regimental da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), órgão que será
responsável por garantir o cumprimento da lei. Mas, visto que as penalidades da
LGPD só poderão ser aplicadas a partir de agosto de 2021, o que tudo isso
significa na prática?
Essa movimentação política desenfreada causou um frenesi
entre os internautas e certo desespero entre as empresas que ainda não se
adequaram à norma. Ninguém sabe ao certo como serão os próximos
meses depois que a lei finalmente entrar em vigor, após tantos meses de
espera.
No intuito de esclarecer essas questões, conversamos com
Adriano Mendes, do escritório Assis e Mendes, advogado com mais de dez anos de
experiência em direito digital. Confira as explicações do especialista a
respeito de três pontos-chaves a respeito do futuro da LGPD.
The Hack: com a recente aprovação da MP 959/2020, mas com
veto do trecho que dizia respeito à LGPD, a lei passará a vigorar assim que a
medida for sancionada ou vetada pela presidência. Porém, de qualquer maneira,
as penalidades só poderão ser aplicadas a partir de agosto de 2020. O que
podemos esperar da LGPD em vigência nesses primeiros meses? O consumidor final
sentirá alguma diferença e poderá requisitar seus direitos?
Adriano Mendes: a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais do
Brasil veio na esteira de regulamentações internacionais sobre privacidade.
Outros 137 países já possuem leis, e as mais citadas a California Consumer
Privacy Act (CCPA), da Califórnia, e a General Data Protection Regulation
(GDPR), para toda a Europa.
Sabíamos que a LGPD teria alguns obstáculos na sua
implementação, porque optamos por uma lei tão boa quanto a europeia mesmo não
tendo as experiências anteriores e conceitos de privacidade que já fazem parte
da cultura do continente.
A partir da sanção do Presidente Bolsonaro da Lei resultante
da MPV 959, a LGPD passará a novamente valer, com efeitos imediatos para todos
os artigos, exceto para possibilidade de aplicação das multas. A sanção do
presidencial deve ocorrer até o dia 17 de setembro. A partir de então, todas os
negócios e empresas, incluindo o governo e administração pública, deverão
seguir os princípios, fundamentos e regras previstas na lei.
Dentre os pontos que geram efeitos imediatos estão os
direitos dos titulares ao acesso, oposição/revogação ao tratamento de alguns
tipos de tratamento, bem como as obrigações de transparência, eliminação de
dados desnecessários e da aplicação do princípio do security and privacy
by design.
As empresas também deverão colocar os usuários, consumidores
e pessoas físicas de qualquer tipo como peça-chave na relação e interesses,
sempre que houver coleta e tratamento de dados pessoais, ou dados pessoais sensíveis.
Em casos de incidentes ou vazamentos, as empresas deverão passar a notificar os
titulares sobre o ocorrido, além de implementarem procedimentos e técnicas de
segurança que mitiguem os riscos do negócios.
Assim, mesmo ainda pendente de certas regulamentações que
são o papel da ANPD, a partir de setembro, os titulares passarão a perceber que
negócios de todos os tipos passarão a pedir novas autorizações para coisas
atualmente triviais. Aplicativos instalados vão deixar claro que tipos
permissões irão solicitar ou utilizar ao serem instalados nos celulares,
empresas vão avisar como e para qual finalidade utilizarão os dados etc.
Embora não seja obrigatório ou sempre recomendável, sites
que instalam cookies e captam informações de navegação poderão optar por
instalar barras de notificações para conhecimento ou aceites, que chamadas
de cookies consent ou cookies notice.
Mas o principal direito que passa a valer é a
impossibilidade de negócios usarem os dados de pessoas físicas para outras
finalidades que não previstas nas relações originais ou sem informação dos
titulares. Por exemplo, um site de aplicativo de celular gratuito não poderá
mais vender informações dos seus usuários para empresas do mercado financeiro
sem que o conhecimento dos usuários que baixaram, por exemplo, um jogo de
xadrez.
Um dos pontos críticos da LGPD é que, enquanto não houver a
regulamentação de muitas questões ou a padronização pela ANPD de como fazer
correto, cada empresa irá agir de uma forma e nada impede que todos as boas e
más intenções geram reclamações nas redes sociais ou demandas nos órgãos de
proteção e judiciário.
Além disso, lei sem sanção no Brasil não funciona e
provavelmente muitos negócios irão preferir esperar mais para se adequarem. Não
só pelo ausência de regulamentação, mas também pelos riscos de investirem mais
do que o necessário ou verem que a LGPD pode ser algo como o eSocial, que não
deu certo.
TH: Um dos principais argumentos contra a vigência imediata
da LGPD é o de que as empresas não tiveram tempo hábil e nem recursos para se
adequar à norma por conta da pandemia da COVID-19. Observando o mercado como um
todo, qual é a sua opinião sobre essa afirmação?
Adriano: o real motivo pelo qual as empresas não seguiram
com a adequação foi o governo não priorizar o assunto e passar a mensagem de
que a LGPD poderia ser como eSocial ou outras iniciativas que geram custos e
obrigações sem serem necessárias. A privacidade compensa, mas deve ser
acompanhada da transparência e de um grande esforço das pessoas e pessoas para
mapearem os dados pessoais.
Falar que a COVID-19 foi causa para a prorrogação da LGPD
não é verdade. Se fosse, mesmo neste momento, a ANPD que já estava prevista no
orçamento de 2020 já poderia ter sido constituída e estrutura. Além disso, o
Governo Federal poderia ter tomado medidas para deixar de compartilhar nossos
dados, enquanto cidadãos com empresas públicas ou privadas sem seguir os
princípios e fundamentos da lei, ou mesmo conhecimento das pessoas envolvidas.
Dizem que Governo Federal parece analógico e não afeito às
questões digitais e que pesou na decisão de não estruturar a ANPD alguns pontos
como a incapacidade das empresas públicas se adequarem à lei e as eleições
municipais que se aproximam e que, como no caso do Cambrige Analytica, impediria
que candidatos usassem perfil do eleitorado para influenciar o resultado da
talvez primeira eleição virtual que teremos.
Claro que há outros interesses políticos também, mas grande
parte das empresas prefere ter uma lei de proteção de dados próxima ao do primeiro
mundo para seguir um padrão do que deixar o Brasil à margem de negócios com
países que exigem o mesmo nível de adequação à proteção de dados para
oferecimento de produtos e serviços.
TH: a aprovação desta quarta-feira (26) pelo Senado também incentivou
o governo a publicar a estruturação da ANPD, o que mostra que a autoridade vem
sendo esboçada há tempos, mas teve seu desenvolvimento descongelado apenas
agora que há necessidade imediata do órgão. Como você avalia o desenvolvimento
da ANPD e a demora excessiva para sua fundação?
Adriano: a estrutura da ANPD está prevista na própria LGPD.
Desde setembro de 2019 houvesse mencionar que o decreto já estava pronto
aguardando detalhes e ajustes antes de sua promulgação.
Embora tenha sido publicado no dia 27, os principais pontos
dele ainda não saíram do papel. Falta a indicação do presidente, dos cinco
diretores da Autoridade, bem como a decisão sobre quais serão as entidades que
vão compor a lista de membros do Conselho Nacional de Proteção de Dados (CNPD).
Pelo texto da lei, as indicações dos nomes para diretores da
ANPD pelo presidente Bolsonaro deverão ser aceitas pelo Senado. Em outras
palavras, quem decide na realidade quem irá exercer as funções não é o
presidente, e sim os senadores. Por isso a queda de braço. Existem posições
esperando desde outubro de 2019 para as sabatinas pelo Senado e este processo
não deve ser rápido.
Em minha análise, depois da nomeação dos diretores, deverá
ser necessário um prazo mínimo de três meses para que consigamos obter as
confirmações do Senado, nomear os 23 membros do Conselho Nacional de Proteção
de Dados e editar as primeiras instruções e regulamentação da ANPD.
É muito tempo para algo em que já estamos atrasados e que
ainda pode mudar com a PEC 17/19, que pretende federalizar as demandas sobre
proteção de dados e privacidade no Brasil e, de novo, pode implicar na
alteração da estrutura da ANPD de órgão da administração direta para uma
agência/autarquia autônoma e, por causa disto, implicar novamente na prorrogação
da entrada em vigor da LGPD ou poderes da ANPD.