A Lei Geral de Proteção aos Dados (LGPD) deve entrar em
vigor no fim de setembro. Mas a Autoridade Nacional de Proteção de Dados
Pessoais, órgão que tem poder de fiscalização, ficará subordinada à presidência
da República, levantando questões de falta de autonomia e de independência
Era agosto de 2018 e o Brasil parecia que finalmente estava
no caminho certo para se alinhar com os parâmetros de proteção de dados em
nível internacional. Com a Lei nº 13.709/18 sancionada, era hora de iniciar os
preparativos e adequações para a entrada em vigor da nova regulamentação,
chamada de Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD).
Mas como quase nada na história do país acontece sem
imprevistos ou adaptações meio duvidosas, no famoso “jeitinho brasileiro”,
vimos que não seria fácil implementar a legislação aqui nos mesmos moldes
europeus e talvez até tenhamos subestimado o prazo para que isso pudesse
ocorrer, visto que a lei chegou no meio de uma tormenta política envolvendo
mudança de administração e início de um novo governo.
Passamos um primeiro ano de 2019 praticamente em discussões
relacionadas à necessidade de se ter o início da atividade da Autoridade
Nacional de Proteção de Dados Pessoais, a ANPD, e foi dado o devido
encaminhamento legislativo com a regulamentação pela Lei nº 13.853 de julho de
2019. Mas apesar de todos os pleitos da sociedade e das instituições, o
Executivo não fez a nomeação dos cargos e viramos 2020 sem a ANPD.
Para agravar, começamos o ano com uma grande crise causada
pela pandemia da Covid-19, o que provocou novamente um debate sobre a entrada
em vigor da LGPD, visto que é uma regulamentação que exige investimentos e,
novamente, o momento não se mostrava o mais favorável.
Sendo assim, em abril, o Senado apresentou o Projeto de Lei
1.179/2020 para criar um regime jurídico emergencial enquanto durasse a
epidemia do coronavírus no Brasil, que adiava tanto a entrada em vigor da LGPD,
como o prazo para aplicação de multas e sanções. O imbróglio aumentou com a
Medida Provisória 959, de abril de 2020, editada pelo Presidente, também com o
propósito de prorrogar a LGPD, mas para maio de 2021.
Como a MP iria perder seus efeitos se não fosse convertida
em lei até 26 de agosto, entrou em Sessão Deliberativa na Câmara dos Deputados
no último dia 25 de agosto. Para ser aprovada, foi proposto um acordo com o
governo de alterar a entrada em vigor da LGPD para 31 de dezembro deste ano.
Com a mudança, ela foi para o Senado como Projeto de Lei de Conversão (PLV)
34/20, já que qualquer alteração feita no texto da Medida Provisória transforma
essa matéria em PLV.
Na sessão deliberativa do dia 26, o presidente do Senado,
Davi Alcolumbre, acolheu questão de ordem apresentada pelo MDB para que a
prorrogação da entrada em vigor da LGPD fosse considerada questão preclusa, já
que foi avaliada anteriormente pelo Senado (quando da votação do Projeto de Lei
nº 1.179/20, convertido na Lei nº 14.010/20), e retirou o art. 4º do PLV 34/20.
Com isso, a MPV 959/20 mantém sua vigência até que o texto
do PLV 34/20 seja sancionado ou vetado pelo Presidente, o que deve ocorrer em
até 15 dias úteis após seu recebimento, sob pena de ser considerado tacitamente
aprovado (e, por conseguinte, sancionado) o texto. Isso quer dizer que o art.
65 da LGPD (que trata sobre sua vigência) retornará à redação original.
Havendo todo este encaminhamento, provavelmente, a LGPD
entra em vigor no dia 18 de setembro de 2020. Parece o ponto final de um embate
de longa data, que passou por diversas proposições legislativas, escancarando
uma desarmonia entre os Poderes Legislativo e Executivo. Mas, nos bastidores de
tudo isso, estava ainda a articulação para efetivar a Autoridade Nacional de
Proteção de Dados Pessoais (ANPD), fator determinante para garantir a aderência
à regulamentação.
Circularam informações de estudos internos para incorporar a
ANPD na estrutura do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade). A
ideia seria alterar a legislação e fazer mudanças no órgão antitruste para que
pudesse incluir as atribuições da agência de dados. Também foi ventilada a
possibilidade vincular a ANPD à Senacon (Secretaria Nacional do Consumidor),
que integra o Ministério da Justiça.
Porém, mesmo com a derrota no Senado sobre o adiamento da
vigência da LGPD, a atual administração federal mostrou mais uma vez a intenção
clara de manter tudo sob seu “controle”. Tanto é que menos de um dia após a
aprovação do PLV 34/20, o presidente assinou o decreto que cria a ANPD e que
surge como um órgão da Presidência da República. A estrutura de cargos e as
funções estão descritas no Diário Oficial da União do dia 27.08.2020, pelo
Decreto 10.474.
Conforme previsto pelo Decreto, a Autoridade fica
subordinada à Presidência da República, vinculada à Casa Civil. Interessante
observar que praticamente todas as nomeações são feitas pelo Presidente, não
apenas do Conselho Diretor, como também a decisão final sobre as indicações
para o Conselho Consultivo, e não havendo indicação ele pode nomear por sua
livre escolha, conforme artigo 15.
E curiosamente voltamos às questões que eram entrave quando
o órgão foi criado, há quase dois anos, de falta de autonomia e independência
da Autoridade. Mas parece que não haveria outra maneira de sair do papel.
Breve histórico
Na época da sanção da LGPD (2018), a criação do órgão fiscalizador
por meio de iniciativa da Câmara mostrava-se inconstitucional e, por isso, foi
incluída por meio da Medida Provisória nº 869/18. Porém, a MP 869 criou a
agência reguladora vinculada à Presidência da República, podendo ser autônoma
somente do ponto de vista técnico, o que seria incompatível com a própria
natureza do órgão que deve ser um ente de independente, inclusive em seu
orçamento.
A Autoridade deveria ter sido constituída e empossada em
2019, e já poderia estar atuando e acumulando experiência em diferentes funções
desde então. Tanto ao interagir com a sociedade civil, responder consultas
públicas, receber protocolos de códigos de conduta, regulamentar a legislação,
realizar campanhas educativas e, principalmente, neste momento atual de crise, estar
atuante até para liderar os trabalhos de flexibilização e ajustes necessários,
dialogando com outras Autoridades similares, como tem ocorrido nos demais
países em que já há lei de proteção de dados em vigor.
Toda a LGPD foi pensada em dar mais autonomia e fortalecer a
proteção da privacidade do titular dos dados. O respeito, a garantia da
segurança e transparência ao usuário foram os pontos-chave que nortearam as
normas da regulamentação. Atribuir as funções de monitoramento e fiscalização a
profissionais que não levem em conta a perspectiva do indivíduo, pode acarretar
em decisões conflituosas e distantes do propósito da legislação.
Vale lembrar que a ANPD foi elaborada para ajudar a proteger
o mercado e a implementar a proteção de dados, numa atuação de garantir o
cumprimento e o melhor proveito da regulamentação, seja por meio de normas
complementares, pareceres técnicos e procedimentos de inspeção. Por isso o
mundo ideal seria ter uma autoridade nacional independente, com meios de
alcançar eficiência e sustentabilidade, para inclusive estarmos de acordo com o
General Data Protection Regulation (GDPR), conforme previsto na lei.
Confira como são as Data Protection Authority em outros
países do mundo:
União Europeia
Autoridades de proteção de dados (APD):autoridades públicas
independentes que controlam, através de poderes de investigação e de correção,
a aplicação da legislação relativa à proteção de dados. Existe uma em cada
Estado-Membro da UE.
Portugal
Comissão Nacional de Protecção de Dados: entidade
administrativa independente com poderes de autoridade, que funciona junto
da Assembleia da República. É constituída por membros de integridade e mérito
reconhecidos, cujo estatuto garante a independência das suas funções.
Bélgica
Autoridade de Proteção de Dados (APD): é um órgão de
supervisão independente, responsável por garantir o cumprimento dos princípios
fundamentais de proteção de dados pessoais. A Autoridade foi criada dentro da
Câmara dos Representantes da Bélgica pela lei de 3 de dezembro de 2017.
França
Comissão Nacional de Informática e Liberdades (CNIL): é uma
autoridade administrativa independente, composta por um Colégio de 18 membros e
uma equipe de agentes contratuais do Estado. Tem como missão geral informar as
pessoas sobre os direitos e responder às solicitações de particulares e
profissionais.
Estados Unidos
As leis de segurança e privacidade de dados nos EUA são
promulgadas em níveis federal e estadual. A principal autoridade federal na
proteção e segurança de dados é a Federal Trade Comission (FTC), e tem como
missão proteger as informações pessoais dos consumidores, e garantir que tenham
confiança para tirar proveito dos benefícios do mercado.
Por certo, esta autoridade terá muito poder além de reunir a
capacidade arrecadatória em um período pré-eleitoral. Apesar da recomendação
ser de que seja um órgão dotado de autonomia e que tenha um corpo técnico
seleto, considerando a matéria especializada que deverá tratar, há muitas
dúvidas que pairam sobre como será de fato, a personalidade e o “tom” da
autoridade de proteção de dados à moda brasileira.
Fonte: Neo Feed