1.
Introdução
A
desjudicialização de procedimentos judiciais vem ganhando destaque no
ordenamento jurídico brasileiro como meio de conferir celeridade e eficiência à
tutela de direitos. No final de 2023, esse movimento ganhou mais um capítulo
por meio do chamado marco legal das garantias (lei 14.711, de 30/10/23),
que alterou o decreto-lei 911/1969, incluindo os arts. 8º-B a 8º-E,
com o fito de viabilizar que o procedimento de consolidação e busca e apreensão
de veículos e de bens móveis em geral por meio dos cartórios de registro de
títulos e documentos.
Desde
que haja previsão expressa em contrato e observância de certas etapas como a
notificação, para oportunizar a quitação pelo devedor, o judiciário não precisa
mais ser única porta disponível ao credor fiduciário para fazer com que o bem
ofertado como garantia a um crédito inadimplido seja utilizado para esse fim
que lhe é próprio, reduzindo os riscos das operações de crédito no Brasil. Esse
novo regime normativo insere-se no contexto mais amplo de modernização das
cobranças de dívidas, buscando reduzir a morosidade judicial e o custo do
crédito, alinhando à já citada tendência de desjudicialização de procedimentos
tradicionais, como exitosamente já visto nas experiências do inventário
extrajudicial; do divórcio extrajudicial e da consolidação extrajudicial da
propriedade imobiliária, por exemplo.
Metodologicamente,
o presente artigo adota um enfoque dedutivo, partindo de premissas
constitucionais para avaliar a compatibilidade da inovação legal com a Carta de
1988. Inicialmente, delimita-se como problema jurídico a seguinte indagação: é
constitucional arbitragem regulatória que permite a busca e apreensão
extrajudicial de veículos executada pelos cartórios de Registro de Títulos e
Documentos, sob supervisão do Judiciário/CNJ e, em paralelo, por empresas
privadas credenciadas no ecossistema dos Detrans, através do regime da
resolução Contran 1.018/2025?
Para
responder a essa indagação, o trabalho estrutura-se em três eixos analíticos
principais. Primeiro, procede-se a uma análise constitucional da matéria,
examinando a jurisprudência pertinente, em especial os votos dos ministros Dias
Toffoli e Flávio Dino nas ADIns 7.600, 7.601 e 7.608.
Na
seção seguinte abordar-se-á o conflito regulatório instaurado pelas normas
infralegais: de um lado, o provimento CNJ 196/25, que regulamenta a
execução extrajudicial nos cartórios de registro; de outro, a resolução Contran
1.018/25, que disciplina procedimento análogo via Detrans. Nessa parte,
analisar-se-á a regularidade de coexistência de estruturas regulatórias
concorrentes para a uma mesma finalidade, sustentando padrões de controle
diferentes.
Por
fim, no terceiro segmento explora-se o fenômeno do forum shopping e da
arbitragem regulatória, fazendo uso desses conceitos para análise do fenômeno
ora estudado. Assim, a partir da lente destes dois instrumentos, em conjunto
com análise Econômica do Direito e da teoria regulatória, avaliar-se-á se a
abertura de uma via privada paralela à registral gera incentivos disfuncionais
e compromete valores fundamentais de nosso ordenamento jurídico.
2.
Análise constitucional: Desjudicialização, controle público e os votos nas
ADIns 7.600/DF, 7.601/DF e 7.608/DF
2.1
A posição do ministro Dias Toffoli
A
execução extrajudicial de garantias no Brasil não é propriamente novidade.
Desde o decreto-lei 70/1966 (execução extrajudicial de créditos
hipotecários) até a lei 9.514/1997 (consolidação extrajudicial de
propriedade fiduciária de imóveis), admite-se que determinados bens dados em
garantia sejam retomados sem intervenção judicial direta.
O
STF firmou jurisprudência no sentido de que tais procedimentos são compatíveis
com a Constituição, desde que não eliminem o acesso ao Judiciário nem as
garantias mínimas de defesa. Nesse sentido, vale conferir o RE 627.106/DF,
no qual o STF declarou recepcionado o decreto-lei 70/1966 e, bem assim, o
RE 860.631/SP (Tema 982 de repercussão geral), em que o foi
reconhecida a constitucionalidade da execução extrajudicial de imóveis pela
lei 9.514/1997, firmando-se a seguinte tese: "É constitucional o
procedimento da lei 9.514/1997 para a execução extrajudicial da cláusula de
alienação fiduciária em garantia, haja vista sua compatibilidade com as
garantias processuais previstas na Constituição Federal".
No
julgamento conjunto das ADIns 7.600, 7.601 e 7.608, que
impugnaram diversos dispositivos da lei 14.711/23, o STF novamente
analisou a validade de um procedimento de execução extrajudicial, mas desta
feita incidente sobre bens móveis. Nessa senda, discutiu-se na referida
ADIn o novel procedimento de busca e apreensão extrajudicial de bens
móveis, de modo que o ministro Dias Toffoli, Relator, votou pela
constitucionalidade da essência do marco legal das garantias, sustentando que a
mera possibilidade de execução extrajudicial não contraria, por si, os direitos
fundamentais do devedor. Ainda segundo o relator:
"[B]em
compreendido o procedimento instituído no art. 8º-B, nota-se que não prosperam
as alegações dos autores. Esse procedimento se desenvolve perante oficial
registrador, autoridade imparcial cujos atos estarão sempre sujeitos a controle
judicial - possibilidade decorrente diretamente da Constituição de 1988 e que
está explicitada no § 11 do art. 8º-C do decreto-lei 911/1969, inserido pela
lei 14.711/23, segundo o qual "o procedimento extrajudicial não impedirá o
uso do processo judicial pelo devedor fiduciante". (Grifo nosso)
Essa
posição reflete a já mencionada jurisprudência da Corte, que admite a
desjudicialização desde que o ordenamento forneça um trilho institucional
adequado para substituir a tutela jurisdicional, mantendo o contraditório e a
possibilidade de revisão judicial. No voto do ministro Toffoli, embora não haja
menção explícita ao art. 8º-E, delineou-se a premissa de que tais medidas
executivas devem ocorrer sob supervisão de agentes públicos dotados de fé
pública e responsabilidade institucional, à semelhança do modelo de execução
extrajudicial já validado para os imóveis.
O
relator enfatizou que a nova lei não afasta o controle judicial, pois o devedor
lesado poderá recorrer ao Judiciário, e que os procedimentos extrajudiciais
previstos estão ancorados em garantias fundamentais (privacidade, honra,
inviolabilidade de domicílio, proteção de dados pessoais, etc.), cuja
observância deve ser assegurada durante a busca e apreensão.
Desse
modo, denota-se que a constitucionalidade da inovação foi afirmada na medida em
que o ambiente extrajudicial reproduz, em alguma medida, a confiança e a
imparcialidade esperadas do processo judicial, razão pela qual delimita-se a
utilização da estrutura dos cartórios extrajudiciais, regulados pelo Poder
Judiciário, como via idônea para essas execuções.
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Fonte:
Migalhas